Perto do sol
À Zé Gomes
Se tiver tempo, descanse a ver este artigo! Pela companhia aérea Emirates, pelo Elias e, principalmente, pelos Antony and The Johnsons com Franco Battiato. Este blogue pode ser discreto, mas é rico em coisas raras. Se não puder parar, passe ao largo, e não olhe para trás, como em noites de bruxedo.

Apetece-me ouvir a canção Fistful of love, dos Antony and The Johnsons. Procuro no Tendências do Imaginário e encontro um retângulo negro com o seguinte letreiro: “Este vídeo não está disponível devido a uma reivindicação de direitos autorais”. Paciência! Substituo o link por outro, por sinal, melhor: uma atuação ao vivo, de 2007 (https://www.youtube.com/watch?v=1-524bnuYdM). O Tendências do Imaginário está cheio de retângulos negros. Na maioria dos casos, por um motivo inocente: o link foi, entretanto, desativado. As pequenas contrariedades dão-me vontade de brincar, de me divertir com maneirismos. Por exemplo, criar um falso gémeo, Perto do sol, a partir do artigo amputado, o Voo dos sentidos (https://wordpress.com/post/tendimag.com/40706).
O impressionante anúncio da companhia aérea Turkish Airlines (5 senses With Dr. Oz) é substituído pelo faraónico, We ‘re on top of the world, da congénere Emirates: uma hospedeira de bordo dá as boas-vindas à Expo 2020 Dubai no topo do edifício mais alto do mundo. Lembra um novo Ícaro com trejeitos de Estátua da Liberdade. A canção Revolution permuta com Thinking of you, ambas de Elias. Por último, a canção Firstful of love, dos Antony and The Johnsons, dá lugar à canção Del suo veloce volo, também dos Antony & The Johnsons, interpretada com Franco Battiato, no concerto da Arena de Verona, em 2013. Uma raridade! Como quem conta um conto acrescenta um ponto, ainda sobra espaço para um link do álbum (áudio) completo deste espetáculo.
Aula imaterial 5. Maneirismo e surrealismo 2. Humanoides
Isto não é uma aula. Uma aula, hoje, requer outros suportes. Se alguém aprender alguma coisa, é por engano.
O barroco é profundamente sensorial e naturalista, apela gozosamente para as seriações fruídas na variedade incessante do mundo físico, ao passo que o maneirismo, sob o domínio do “disegno” interiore, da Idea, se distancia da realidade física e do mundo sensório, preocupado com problemas filosófico -morais, com fantasmas interiores e com complexidades e subtilezas estilísticas; o barroco é uma arte acentuadamente realista e popular, animada de um poderoso ímpeto vital, comprazendo-se na sátira desbocada e galhofeira, dissolvendo deliberadamente a tradição poética petrarquista, ao passo que o maneirismo é uma arte de elites avessa ao sentimento “democrático” que anima o barroco, anti-realista, impregnada de um importante substrato preciosista e cortês, representado sobretudo pelo filão petrarquista; o barroco caracteriza-se pela ostentação, pelo esplendor e pela proliferação dos elementos decorativos, pelo senso da magnificência que se revela em todas as suas manifestações, tanto nas festas de corte como nas cerimónias fúnebres, contrariamente ao maneirismo, mais sóbrio e mais frio, introspectivo e cerebral, dilacerado por contradições insolúveis; o barroco tende frequentemente para o ludismo e o divertimento enquanto o maneirismo aparece conturbado por um “pathos” e uma melancolia de raízes bem¬ fundas (Vítor Aguiar e Silva, Teoria da Literatura).
Alguns traços do maneirismo ressurgem no surrealismo: a exacerbação criativa do artista, a distância face à realidade, a valorização da “subtileza estilística”…
Quando participei, em 2007, na organização de uma exposição de homenagem a Jerónimo Baía, monge poeta do Mosteiro de Tibães, interessei-me pelo maneirismo. Para esta aula de diálogo entre o maneirismo e o surrealismo, convoco três gravuristas: o alemão Wenzel Jamnitzer (1508-1585); o alemão Lorenz Stoer (1537-1621); e o italiano Giovanni Battista Braccelli (1584-1650). É uma tentação associar estes três gravuristas a alguns artistas surrealistas.
No próximo vídeo, os desenhos da obra Perspectiva Corporum Regularium (1568), de Jamnitzer, e os desenhos de M. C. Escher cotejam-se, desprendendo-se a sensação de um certo ar de família. O facto de Escher possuir uma gravura de Jamnitzer acresce como um indício factual.
As construções mentais de Lorenz Stoer, designadamente as paisagens urbanas com figuras geométricas, revelam alguma afinidade com as gravuras de Escher. Jamnitzer, Stoer e Escher são “artistas conceptuais”. Ver o vídeo Paisagens Geométricas, com gravuras da obra Geometria et Perspectiva (1567) de Lorenz Stoer.
A galeria de imagens de M. C. Escher complementa o vídeo de Stoer. Não se pretende sugerir que Escher se inspirou em Stoer. Apenas sustentar que ambos partilham determinados esquemas mentais, tais como a propensão para a geometrização da realidade, geometrização, por vezes, distorcida, inteletiva e idiossincrática.
Escher. Tower of Babel. 1928 Escher. Life and street. 1937 Escher. Cycle. 1938 Escher. Balcony. 1945 Escher. Up and down. 1947 EScher. The waterfall. 1961 Escher. Côncavo e convexo. 1955
Dos gravuristas maneiristas considerados, Braccelli é aquele que mais se aproxima do surrealismo. Distingue-se pela construção fantástica de figuras humanoides estilizadas, publicadas em Bizzarie di varie figure (1624).
É uma tentação esboçar pontes entre Braccelli, M. C. Escher e Salvador Dali. Comecemos, porém, com Giorgio di Chirico, precursor do surrealismo. Os seres solitários e melancólicos, de Giorgio di Chirico, e as figuras bizarras de Braccelli convergem, pelo menos, no seguinte aspecto: retratam humanoides, compostos por objectos, sem rosto e descarnados.
Giorgio di Chirico. Le rêve transformé. 1913 Giorgio di Chirico. Hector and Andromache. 1917 Giorgio di Chirico. The disturbing muses. 1918 Giorgio di Chirico. La commedia e la tragedia. 1926
Confrontar obras de arte descontextualizadas não é recomendável. Não obstante, ousamos suspender temporariamente a sociologia e a semiótica para dar asas à imaginação.
Braccelli p 27 M.C. Escher, Ring. 1955
Braccelli p 42 M.C. Escher. Bond of Union. 1956
Braccelli p 45 Salvador Dali. Ilustração da edição de 1946 do Don Quixote de Cervantes
Salvador Dali assume as suas afinidades e ligações. Convocou François Desprez, convoca, também, Braccelli. Deu o nome Braccelli a uma gravura e a uma peça de design (Braccelli Lamp). Assinou a escultura de homenagem a Braccelli no Château de Vascoeil (ver imagens).
Braccelli Lamp, by Salvador Dali. Conceived in the 1930’s, first production in the 1990’s Château de Vascoeuil Hommage à Braccelli par Salvador Dali Salvador Dali. ‘Braccelli’ the Warrior with a Corpse. Torero Series. 1985
Este texto aproxima-se de um exercício ou de um divertimento. Aprende-se com o divertimento? A infância é, porventura, a idade da vida em que mais se aprende, aprende-se o mundo, a brincar.
Peregrinámos um longo percurso para saber o que já se sabe: a afinidade entre o maneirismo e o surrealismo. Valeu a pena? Depende da maneira como se caminha. Pode-se ir em fila ou pelos muros. Quem descobre o descoberto desfruta do treino e do prazer de descobrir. A excelência actual aposta mais na didáctica do descoberto e menos na didáctica da descoberta.
Isto não é uma aula. É um contributo original para a sociologia e a semiótica da arte. Corre-se o risco de aprender.
Termino com um documentário sobre o surrealismo, que tem a lucidez de começar pelo dadaismo.
Aula imaterial 4. Maneirismo e Surrealismo. Sonhar o pesadelo

Esta aula é polivalente. Destina-se aos alunos de Sociologia e Semiótica da Arte, do mestrado em Comunicação, Arte e Cultura, mas também, como exemplo de uma pesquisa documental extensiva, aos alunos de Práticas de Investigação Social, do mestrado em Sociologia.
A aula é conversada. O que não agrada. As aulas conversadas desconversam muito. Não têm coluna vertebral. Em suma, não têm ponta por onde se lhe pegue. Só dá para tocar, ponto aqui, ponto ali. Ouvi dizer que o próprio mundo não tem nem coluna vertebral, nem ponta por onde se lhe pegue. Esta aula está saturada de informação, designadamente, visual. Gosto destas aulas; os alunos não.
Na aula precedente, visitámos o barroco: nos séculos XVII e XVIII e na atualidade. Resulta legítimo falar em barroco nos nossos dias? Não se confina a um período histórico preciso? Para Eugenio d’Ors, o barroco é um eon (palavra grega), uma forma que percorre a humanidade, atualizando-se em cada contexto particular. “Uma certa constante humana”, com vida ora secreta, ora discreta, ora ostensiva. Reconhece-se o barroco no período helenístico, na Contra-Reforma e no mundo contemporâneo (D’Ors, Eugenio, Du Baroque, Paris, Gallimard, 1935). A sugestão de Eugenio d’Ors estende-se, logicamente, ao grotesco, ao trágico e ao clássico.
Assinalei, na última aula, Michel Maffesoli como especialista da “barroquinização actual do mundo”. Cumpre acrescentar Omar Calabrese: A Idade Neobarroca. Pode descarregar.
Vamos comparar duas correntes de arte separadas por mais de três séculos: o maneirismo (1520-1600) e o surrealismo (desde inícios dos anos 1920).
Sou admirador de François Rabelais. Também de Mikhail Bakhtin, que estudou François Rabelais. Um par admirável. Aproveito para disponibilizar o pdf do livro de Mikhail Bakhtin, Cultura Popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais (1968; redigida em 1940), e o livro de Wolgang Kayser, O grotesco (1957), duas sumidades da teoria do grotesco: o primeiro encara-o como rebaixamento e o segundo, como estranhamento. Ambos os livros são úteis para esta aula.
Antes de prosseguir, importa uma breve introdução ao maneirismo. Recomendo o artigo Maneirismo, da página História das Artes (https://www.historiadasartes.com/nomundo/arte-renascentista/maneirismo/).
Às voltas com François Rabelais, deparei com o livro Les Songes Drolatiques de Pantagruel. Publicado em 1565, contém 120 gravuras, da autoria de François Desprez (1530-1587). Como o título indica, as gravuras inspiram-se nas personagens fantásticas do livro Pantagruel. Convido-vos a descarregar esta relíquia. Merece ser folheada. Descarregar!
São excêntricas as figuras disformes e híbridas concebidas por Desprez. Mas não são completamente originais. Deixando de lado os grotescos (ver Desgravitar- Sem Conta, Peso e Medida: https://tendimag.com/2012/02/12/desgravitar-sem-conta-peso-e-medida/), sessenta anos antes, Hieronymus Bosch pintou os quadros Juízo Final (1482), São João Evangelista na Ilha de Patmos (1485), As Tentações de Santo Antão (cerca de 1500), o Jardim das Delícias (1503-1504) e O Carro de Feno (1500-1516). São pinturas que albergam uma turbulência de monstros e híbridos, ilustrada pela galeria de imagens Pesadelos de Bosch. Por acréscimo, pode ver o documentário Genios de la Pintura Hieronymus Bosch El Bosco (Lara Lowe, 2000).
Os pesadelos de Bosch
Documentário Genios de la Pintura. Hieronymus Bosch El Bosco. 2000.
Sessenta anos, numa escala de longa duração, é pouco tempo. Pode-se recuar mais. Por exemplo, aos séculos XII e seguintes. Nesse tempo, multiplicaram-se os livros de horas e os livros de salmos para apoio à oração. Nas iluminuras das margens das páginas (marginália), exorbitavam os monstros e os híbridos (as droleries). Vamos espreitar dois livros de salmos: o Luttrell (1325-1340) e o Rutland (c. 1260).
A descoberta do livro de salmos de Luttrell aproximou-se de uma epifania. Pesquei as páginas uma a uma. Compilei-as como quem colecciona cromos. Procedi à montagem, respeitando a ordem original. Reconstitui o livro até à página 32. Apresentei o conjunto na seguinte animação em PowerPoint. Pode descarregar e abrir. Não perca. O Luttrell Psalter exigiu mais tempo e perícia do que a escrita de um artigo intergaláctico.
As iluminuras do livro de salmos de Rutland também precedem as gravuras de Desprez.
Imagens do livro de salmos de Rutland
Nada nos impede de recuar mais no tempo. Sem nos atardar com os cachorros românicos (ver O triunfo sobre a morte: San Martin de Artaíz: https://tendimag.com/2017/10/05/o-triunfo-sobre-a-morte-san-martin-de-artaiz/), nem com as gárgulas góticas (ver Gárgulas impúdicas: https://tendimag.com/2014/08/10/gargulas-impudicas/), pode-se retroceder ao início da cristandade, ao século I d. C. Sobreviveram frescos fabulosos na Domus Aurea, palácio construído entre 64 e 68 d. C. pelo imperador Nero, e nas ruínas de Pompeia, cidade soterrada pelo Vesúvio em 79 d. C. Ver o artigo Domus Aurea: o sonho enterrado (https://tendimag.com/2017/11/20/domus-aurea-o-sonho-enterrado-revisto/).
É tempo de regressar a François Desprez e, desta vez, andar para a frente. A comparação das gravuras de Salvador Dali com as gravuras de François é surpreendente. Salvador Dali retoma as gravuras de François Desprez, retocando-as com símbolos sexuais.
Salvador Dali. Les Songes Drolatiques de Pantagruel. 1973.
Uma pergunta: não teria sido suficiente começar o artigo no início e acabá-lo no fim, sem tanto devaneio e interlúdio? Confinar-se, simplesmente, a Desprez e a Dali?
Poder, podia, mas não era a mesma coisa. Convoco quatro argumentos, aparentemente, falaciosos:
- Um bom romance policial brilha pelo enredo. Não começa com o crime e acaba logo com a solução.
- Informar é formar. Não se pode ter o esquema de tudo e a substância de nada.
- O livro L’Amour de l’art, de Pierre Bourdieu e Alain Darbel (1966), convenceu-me que a aprendizagem da arte releva mais da massagem do que da mensagem, para empregar os termos de McLuhan.
- A proliferação das obras gera a vertigem das imagens. Sem a vertigem das imagens, não vingaria o seguinte pensamento diabólico: o homem é infinitamente grande pelas suas obras e infinitamente pequeno nas suas possibilidades.
“Afinal que é o homem dentro da natureza? Nada, em relação ao infinito; tudo, em relação ao nada; um ponto intermediário entre o tudo e o nada. Infinitamente incapaz de compreender os extremos, tanto o fim das coisas quanto o seu princípio permanecem ocultos num segredo impenetrável, e é-lhe igualmente impossível ver o nada de onde saiu e o infinito que o envolve” (Blaise Pascal, Pensamentos, 1670).
Continuamos na próxima aula: Maneirismo e surrealismo: O capricho da imagem.
A canção da morte a passo de caranguejo

Figura 01. Igreja de São Virgílio. Pinzolo. Itália

Figura 02. O Baile da Morte na Igreja de São Virgílio. Postal ilustrado. 1903
O vídeo O Desconcerto do Mundo inicia com imagens de danças macabras acompanhadas pela canção Ballo in Fa diesis Minore (Sono Io la Morte, 1977) de Angelo Branduardi, cuja letra corresponde aos ditos da dança macabra de Pinzolo (Itália, 1539), dança situada na Igreja de São Virgílio, na fachada que confina com o cemitério (ver Figura 1). No início do século XX, o cemitério estendia-se até à igreja (ver, na Figura 2, bilhete postal datado de 1903).
Pela localização, junto ao cemitério, a dança macabra de Pínzolo lembra a dança macabra do Cemitério dos Inocentes, em Paris, a primeira dança macabra de que há conhecimento: os frescos percorriam os muros interiores do cemitério, por cima dos ossários (ver Transi 3: Viver com os mortos). Segue canção de Angelo Branduardi, com tradução dos versos iniciais.
Angelo Branduardi. Ballo in fa diesis minore. Versão original: La pulce d’Acqua. 1977.
Descobrir é “coisa corrente”. “De sábios e tolos todos temos um pouco”. Intrigou-me, por exemplo, a afinidade entre alguns autores surrealistas (Salvador Dali, Giorgio de Chirico e M.C. Escher) e vários artistas do séc. XV a XVII, tais como Lorenz Stoer, François Desprez, Wenzel Jamnitzer e Giovanni Battista Braccelli (ver: Arquitectura de paisagem na geometria maneirista: Lorenz Stoer ; Criaturas pantagruélicas 1 ; Criaturas pantagruélicas 3 ; Perspectivas: Wenzel Jamnitzer e M. C. Escher ; Braccelli. À maneira surrealista ).
Estas duas “descobertas”, versos da “canção da morte” e influência do maneirismo no surrealismo, são, de facto, descobertas da pólvora. De algum modo, já se sabia!

Figura 03. Início da dança macabra de Pínzolo. Músicos e primeiros versos
Qual o interesse em descobrir o descoberto? A felicidade e o treino: descobrir é uma experiência grata e uma competência que ganha em ser cultivada. “o acaso só toca os espíritos bem preparados” (Joseph Pasteur). O episódio da letra da canção de Angelo Branduardi deve muito ao acaso, acaso que só toca, contudo, à minoria que lê os versos das danças da morte. “Preparar bem o espírito” não se resume à promoção de estudos exploratórios e à revisão da literatura”. Requer mergulho na realidade e capacidade de discernimento dos “fenómenos anómalos, relevantes e estratégicos” (Merton, Robert K., 1968 [1949], Social structure and social theory, New York, The Free Press, 158).
O risco de descobrir a pólvora tende a diminuir quando o tema da investigação é menos concorrido e mais circunscrito.
Escolhíamos imagens para o livro sobre as Festas d’Agonia (Martins, Moisés, Gonçalves, Albertino & Pires, Helena, 2000, A Romaria da Srª da Agonia, Grupo Recreativo e Cultural dos Trabalhadores dos Estaleiros Navais de Viana do Castelo), quando deparei como uma fotografia com um aeroplano. Em letras muito pequenas, enxergava-se o nome: Quo Vadis. Desde 1913, os programas das festas e os jornais locais anunciam, ano após ano, a exibição de um aeroplano. O cartaz de 1913 “representa uma figura de Zé P’reira, assentando num bombo, admirando basbaquemente, um aero plano que cruza o espaço” (Aurora do Lima, 16.07.1913). Mas foi preciso aguardar pelo ano de 1918 para ver um aeroplano a sobrevoar, durante as festas, Viana do Castelo. O aeroplano chamava-se Quo Vadis… Por mesquinhas que sejam, estas micro descobertas despertam o investigador e a investigação. Podem, ainda, contribuir para o património e a memória locais.
A micro descoberta não programada requer competência, treino e disponibilidade, tanto de tempo como de espírito. Investir em quase nada é uma aventura ousada.
Para o “livrinho” A Idade de Ouro do Postal Ilustrado em Viana do Castelo, recorri à pesquisa na Internet, designadamente páginas de leilão e blogues especializados. A determinada altura, deparo-me com um postal ilustrado, datado de 31 de Agosto de 1911, com a mensagem escrita inesperadamente incompleta. Uma curiosidade. Passei em frente. Alguns dias mais tarde, surge um postal ilustrado com o mesmo emissor e a mesma destinatária, do mesmo dia e com mensagem incompleta, ambos numerados. Coleccionador de selos e leitor de romances policiais, não resisti a prestar atenção este caso anedótico. A missão consistia em descobrir o maior número possível dos doze postais enviados (“mando daqui doze bilhetes postais para assim teres a certeza que vão todos ao destino”) por um visitante de Viana do Castelo a Magdalena Manzoni, de Torres Vedras. Consegui encontrar dez, todos na Internet (ver Galeria de imagens). Faltam o 2 e o 5. Valeu a pena? Não sei, mas ainda me sinto orgulhoso. Não deixa de ser um bom indicador da paixão pelos postais ilustrados no início do século XX.
- Postal 01 Frente. Edifício da Congregação e Hospital de Velhos. Bazar Couto Viana. 1911
- Postal 01 Verso. Edifício da Congregação e Hospital de Velhos. Bazar Couto Viana. 1911
- Postal 03 Frente.. Grupo de camponezas de Santa Martha. Bazar Couto Viana. 1911
- Postal 03 Verso. Grupo de camponezas de Santa Martha. Bazar Couto Viana. 1911
- Postal 04 Frente. Rua Junto ao Mercado Municipal.Couto Viana. 1911
- Postal 04 Verso. Rua Junto ao Mercado Municipal.Couto Viana. 1911
- Postal 06 Frente. Parque no Monte de Santa Luzia e edifício destinado a hotel. Bazar Couto Viana. 1911
- Postal 06 Verso. Parque no Monte de Santa Luzia e edifício destinado a hotel. Bazar Couto Viana. 1911
- Postal 07 Frente. Vivenda da Família Pereira da Cunha. Arcozelo. Bazar Couto Viana. 1911
- Postal 07 Verso. Vivenda da Família Pereira da Cunha. Arcozelo. Bazar Couto Viana. 1911
- Postal 08 Frente. Arco da entrado do Mosteiro de S. Francisco. Bazar Couto Viana. 1911.
- Postal 08 Verso. Arco da entrado do Mosteiro de S. Francisco. Bazar Couto Viana. 1911
- Postal 09 Frente. Praça da República. Bazar Couto Viana. 1911
- Postal 09 Verso. Praça da República. Bazar Couto Viana. 1911
- Postal 10 Frente. Pharol de Montedor. Bazar Couto Viana. 1911
- Postal 10 Verso. Pharol de Montedor. Bazar Couto Viana. 1911
- Postal 11 Frente. Arcos do Fincão na freguesia de Areosa. Bazar Couto Viana. 1911
- Postal 11 Verso. Arcos do Fincão na freguesia de Areosa. Bazar Couto Viana. 1911
- Postal 12 Frente.. Vapor Ella sahindo da coka. Bazar Couto Viana. 1911
- Postal 12. Vapor Ella sahindo da coka. Bazar Couto Viana. 1911
Galeria de Imagens: Postais enviados por um visitante de Viana do Castelo em 1911
Aprecio as fábulas de La Fontaine: a Lebre e a Tartaruga, o Leão e o Mosquito, a Cigarra e a Formiga, o Lobo e o Cordeiro… Por que não o Galgo e o Caranguejo?
A Passo de Caranguejo é uma obra de Umberto Eco (2007, Difel). Segundo o autor, o mundo está a retroceder: regressa à guerra quente, retoma os fundamentalismos… O caranguejo do Umberto Eco anda para trás. Aqueles que conheço tendem a andar para o lado. O galgo corre para a frente sem tirar os olhos do isco e sem sair um milímetro da pista. Na estrada, o galgo acelera nas rectas sem abrandar nas curvas rumo à meta. O caranguejo não resiste a desvios, perde-se em atalhos e demora-se em inutilidades. O caranguejo sabe o que quer, mas relativiza os objectivos. É um “flâneur” (ver Benjamin, Walter, 2012, El Paris de Baudelaire, Buenos Aires, Eterna cadencia Editora). O galgo é racional; o caranguejo, romântico. O galgo aprecia problemas e protocolos; o caranguejo, enigmas e travessias. O cúmulo do galgo é saber os resultados antes de começar a investigação. O cúmulo do caranguejo é acreditar que para ser investigador basta existir. O sociólogo Paul F. Lazarsfeld (ver a colectânea On Social Research and Its Language, The University of Chicago Press, 1993) aproxima-se do tipo ideal do galgo; Georg Simmel (ver a colectânea La tragédie de la culture, Paris, Editions Rivages, 1988), do tipo ideal do caranguejo. Galgo ou caranguejo? Já fui galgo, caranguejo e híbrido. “No estado em que as coisas chegaram”, estou em crer que ser caranguejo dá mais prazer e ser galgo mais poder. Para a frente, para trás ou para o lado, a cada um andar a seu contento. Mais do que formas de estar no ofício de sociólogo, o galgo e o caranguejo são formas de estar na vida.
Surreal: o homem piano
Encontrei no sapatinho das maravilhas este anúncio do Banff Center for Arts and Creativity, do Canadá. Estranho e delirante, vibra nos meus sentidos com uma invulgar ternura surreal. Discute-se nas redes sociais se é ou não arte. Afirma-se mais original, criativo e impactante do que muita arte que tive o privilégio de observar. Mas, se é ou não arte, que o ponderem os juízes da estética. Lembra-me arte. Arte da melhor! Por exemplo, Hieronymus Bosch (ver https://tendimag.com/2016/12/19/hieronymus-bosch-death-metal/) ou François Desprez (ver https://tendimag.com/2012/04/21/criaturas-pantagruelicas-1/).
A lembrança é amiga da vadiagem do espírito. Lembrei-me dos Ban (Irreal Social, Surrealizar, 1988). Conquistaram um apreciável sucesso nacional no final dos anos oitenta. É um grupo com música identificável. Uma das qualidades para ser digno de memória. No Tendências do Imaginário, os visitantes portugueses estão em minoria. Não admira. O blogue fala do mundo em língua portuguesa. Podia falar de Portugal, ou do mundo, em língua estrangeira. Sempre seria mais friendly! Seja como for, Portugal, embora nem sempre pareça, faz parte do mundo. Venham os Ban! Pim-Pam-Pum!
Marca: Banff Center. Título: Things you can’t unthink. Agência: Cossette Toronto. Direcção: Rodrigo García Saiz. Canadá, Abril 2017.
Hieronymus Bosch. Jardim das Delícias. Instrumentos musicais.
Hieronymus Bosch. Jardim das delícias. Inferno. Detalhes. 1503-1504.
François Desprez. Songes Drolatiques. Homens instrumentos musicais.
François Desprez. Songes Drolatiques. 1565.
Ban, Irreal Social, Surrealizar, 1988.
Grandville: Disfarces e Metamorfoses
Jean-Jacques Grandville (1803-1847) é um ilustrador e caricaturista francês da primeira metade do século XIX. Adquiriu fama com as suas metamorfoses envolvendo homens, animais, vegetais e objectos.
Conhecido como o “avô do surrealismo”, Grandvielle convoca o maneirismo, nomeadamente Giovanni Battista Braccelli e Lorenz Stoer (ver figuras 07 e 12). Algumas gravuras antecipam M.C. Escher (ver figuras 1, 7, 8, 9 e 19). Os Queen recorreram aos desenhos de Grandville para as capas do álbum Innuendo (1991) e respectivos singles (figuras 11 a 14.1).
Exceptuando as figuras 1 e 10, ambas de 1847, todas as imagens deste artigo foram extraídas directamente do livro Un Autre Monde, publicado em 1844. Grandville ilustrou vários livros, tais como as Fábulas, de La Fontaine, o Don Quixote, de Cervantes, as Viagens de Gulliver, de Swift, ou Robinson Crusoe, de Daniel Defoe.
Segue a música Innuendo, dos Queen (1991) e uma galeria com imagens de Grandville e do álbum Innuendo, dos Queen.
Galeria de imagens: J.J. Grandville e Innuendo dos Queen.
A técnica e a arte
Na era da aceleração técnica, o projecto tecnológico aproxima-se da obra de arte. Não porque a técnica se converta aos cânones da arte (não faz pinturas, esculturas ou instalações), mas porque a própria técnica se assume como arte, apostando na forma tanto quanto na função. O maneirismo que envolve nos anúncios os objectos técnicos é um sinal claro dessa tendência. Tendência que não se cinge à publicidade. Atente-se nos mistos de arquitectura e técnica que albergam museus, fundações e outras construções congéneres. A forma abraça a função. O edifício rivaliza com a colecção ou a exposição. É arte sobre arte. O público assim o entende, demandando os novos roteiros das maravilhas estéticas da técnica. Falar da técnica como arte é insensato e imprudente. É certo que o assunto se entrevê nas páginas do livro de Jürgen Habermas: A Técnica e a Ciência como “Ideologia” (1968). O que não impede que Walter Benjamin, Theodor W. Adorno, Max Horkheimer, Georg Lukacs ou Lucien Goldmann se indignem no paraíso. Paciência! Se Deus morreu, não é o intelectual que o vai substituir.
O anúncio italiano Mechatronic Harmonies, da Wittenstein, é um exemplo desta aspiração estética. Depurado, estilizado, a marca só no fim aparece discreta e fugidia. Lembra E.C. Escher, Wenzel Jamnitzer e outros gravuristas maneiristas dos séculos XVI e XVII. Estranho? Nem por isso. A inovação e o arcaísmo costumam encontrar-se nas dobras do destino.
Carregar na imagem para aceder ao vídeo.
Marca: Wittenstein. Título: Mechatronic Harmonies. Agência: Negrini & Varetto. Direcção: Luigi Pane. Itália, Janeiro 2016.
Almas danadas
Volta e meia, cruzo-me com autores maneiristas, de Agnolo Bronzino (1503-1572) a Giuseppe Arcimboldo (1527-1593), passando por Francisco de Holanda (1517-1585) e Wenzel Jamnitzer (1507-1585).Calhou a vez a Marten de Vos (1532-1603), pintor de Antuérpia.
O inferno do Juízo Final (1570), de Marten de Vos, é impressionante: fogo, demónios e condenados formam uma corrente rumo à boca do inferno. Os corpos, com os seus movimentos, contorcem-se como labaredas. Trata-se de um fluxo onde não há parte sem todo. Este dinamismo lembra a queda no abismo, no inferno do Juízo Final (1467) de Hans Memling. (1430-1494).
Reencontramos as figuras fantásticas, demoníacas e grotescas na Tentação de Santo Antão (1591-1594), que lembra, por sua vez, a Tentação de Santo Antão, quer de Hieronymus Bosch (1502), quer de Mathias Grunewald (1512-1516). Todos juntos lembram o surrealismo.
Para terminar, uma nota curiosa: o “dinossauro” pintado, antes da data, na parte inferior direita da Tentação de Santo Antão, de Marten de Vos. E Pronto! Quando a vista se regala, a língua cala.
Arquitectura de Paisagem na Geometria Maneirista: Lorenz Stoer
Lorenz Stoer (c.1537-c.1621) nasceu em Nuremberga, mas fez carreira em Augsburgo. Parte da sua obra aproxima-o de Wenzel Jamnitzer (http://tendimag.com/2012/03/26/perspectivas-wenzel-jamnitzer-e-m-c-escher/).
“Tudo indica que os estudos académicos dedicados a Stoer se resumem a um par de textos datados de meados do século XX que o associam a dois ourives de Nuremberga – Hans Lencker [ver Figura 2] e Wenzel Jamnitzer- compondo um trio de artistas maneiristas interessados pelo desenho geométrico e pela perspectiva” (http://bibliodyssey.blogspot.pt/2009/09/geometric-landscape.html).
Uma série de gravuras de Lorenz Stoer foram compiladas na obra Geometria et Perspectiva, publicada em 1567, no mesmo ano que a Perspectiva Literaria, de Hans Lencker, e um ano antes da edição da Perspectiva Corporum Regularium, de Wenzel Jamnitzer. Três obras de “geometria fantástica”, todas publicadas em Nuremberga, com a diferença de um ano. É certo que Stoer desenvolveu uma técnica própria de desenhar poliedros, mas a sua originalidade radica, principalmente, nas gravuras de paisagens geométricas, com figuras minuciosa e caprichosamente dispostas, que antecipam várias práticas artísticas contemporâneas.
“A justaposição de figuras geométricas e cenários de ruínas traz à mente tanto Escher como Piranesi, um anacronismo tornado mais estranho e exacerbado pelas formas elaboradamente decorativas nos primeiros planos de algumas gravuras, que, como George Hart observou, poderiam passar por esculturas abstractas do séc. XX” (http://www.spamula.net/blog/2003/07/geometry_perspective.html).
É difícil percorrer a obra de Stoer sem convocar M. C. Escher (1898-1972), o surrealismo e, porventura, algumas correstes de arte contemporânea.
Greensleeves to a Ground, a música que acompanha o vídeo com as gravuras de Lorenz Stoer, é da autoria de um anónimo do séc. XVI. A interpretação, próxima do original e com instrumentos da época, é de Jordi Savall, com Hesperion XXI (Ostinato, 2001).
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Galeria com gravuras de Lorenz Stoer: