Amar após a morte

O anúncio mexicano Nunca Es Tarde Para Ser Quien Eres, da Doritos, estreado em vésperas do día de los muertos, quase me deixa sem palavras. Costuma dizer-se que “nem a morte nos separa” (ver https://tendimag.com/2014/02/03/nem-a-morte-nos-separa/), pois, agora, convém acrescentar que “até a morte nos reúne” (ver: https://tendimag.com/2015/12/07/so-a-morte-nos-reune/)! Apraz-me registar que, segundo a Doritos, entre o mundo da vida e o mundo da morte não existe apenas um espelho (ver: https://tendimag.com/2021/10/07/o-espelho-da-morte/), mas também um armário.
A dança da morte não se reume a uma fantasmagoria medieval. Continuamos a dar as mãos nessa sarabanda diabólica. Concluo este artigo com La Danza de los Muertos, dos Calexico.
O espelho da morte
Considerado o “símbolo dos símbolos” (Robert Régor Mougeot, Le miroir, symbole des symboles. Éditions du Cosmogone, 2011), habituámo-nos a associar o espelho à reflexão, à verdade, à realidade, ao conhecimento de si, ao puro, à alma e ao divino..
“Que reflete o espelho? A verdade, a sinceridade, o conteúdo do coração e a consciência: Como o Sol, como a Lua, como a água, como o ouro, lê-se num espelho chinês do museu de Hanói, sê claro e brilhante e reflete o que está no teu coração” (Jean Chevalier & Alain Gheerbrant, Dictionnaire des Symboles, Paris, Éditions Robert Laffont S.A., 1982, p. 536).
O espelho brilha, também, como “emblema da pintura” (Soko Phay-Vakalis. Le miroir comme emblème de la peinture : ses figurations et transfigurations de Vermeer à Richter. Thèse de Doctorat en Arte et Archéologie, Université de Paris VIII, 1999):
“Por isso costumo dizer entre os meus amigos que aquele Narciso que, de acordo com os poetas, se transformou em flor, foi o inventor da pintura. Como a pintura é a flor de toda arte, a ela se aplica bem toda a história de Narciso. Que outra coisa se pode dizer ser a pintura senão o abraçar com arte a superfície da fonte?” (Leon Battista Alberti, De Pictura, 1435, 1989.p. 96-97).
01. Edvard Munch. Dança da Morte (Autorretrato). 1915. 02. René Magritte. Reprodução proibida. 1937.
Este recurso ao espelho como modo de representação fidedigna da realidade assoberbou a pintura do renascimento; será preciso aguardar o século XX para que, em obras como as de Edvard Munch e René Magritte, o espelho em vez de refletir distorce a realidade.
Todos estes atributos são luminosos, solares. Mas existe o outro lado da lua. Mais obscuro, que remete para o impuro, a tentação, a desgraça, o submundo, o diabo e a morte. Narciso não é apenas aquele que se descobre no espelho de água, é também aquele que, na sequência, morre por inanição.
O espelho é caraterizado pela duplicidade. Reúne dois mundos. Quem vê e o que é visto; de fora e de dentro, o aqui e o além.
“Na Idade Média, sustentava-se que os demónios se refugiavam nos espelhos. Quebrá-los liberta todos os maus espíritos dispostos a exercer os seus malefícios” (Daniel Lacotte, Éviter de briser un miroir. Historia, À l’origine des superstitions, special N°6 daté Juillet-août 2012: https://www.historia.fr/il-%C3%A9tait-une-superstition/%C3%A9viter-de-briser-un-miroir). “Existe um costume popular que consiste em cobrir todos os espelhos na divisão da casa onde o morto repousa antes da sua última viagem porque se pensa que o espelho tem a faculdade de reter a alma do defunto” (Thomas Grison, Le symbolisme du miroir, MdV éditeur, 2015). Neste e noutros casos, o espelho absorve.
O espelho pode, também, situar-se no limiar, na transição entre o aqui e o além, entre mundos distintos, senão opostos. Por exemplo, o mundo e o submundo, a vida e a morte, o real e a fantasia (como no romance de Lewis Carroll, Alice Através do Espelho, editado em 1872). Neste sentido, o espelho costuma assumir-se como símbolo de uma porta que, como o portal da ficção científica, permite a transição de um para outro mundo. Na peça de teatro Orfeu de Jean Cocteau, estreada em 1926, o anjo Heurtebise, antes de conduzir Orfeu ao submundo, confidencia:
“Confio-vos o segredo dos segredos. Os espelhos são as portas pelas quais a Morte vai e vem. (…) Olhe-se, aliás, num espelho e verá a Morte a trabalhar como as abelhas num cortiço de vidro” (Jean Cocteau,1926).

O espelho, lugar de passagem, não separa mas conjuga, une, abre o diálogo com o mesmo e com o outro.
“Tal como Heurtebise, que age no ponto de intersecção de dois espaços – o sagrado e o profano – e realiza a perfeita conjunção de ambos, o espelho constitui o ponto de intersecção entre o real e o suprarreal. O espelho seria então a materialização do ponto supremo de que fala Breton em seus Manifestes du Surréalisme:
“Tudo leva a crer que existe um certo ponto do espírito de onde a vida e a morte, o real e o imaginário, o passado e o futuro, o comunicável e o incomunicável, o alto e o baixo deixam de ser apreendidos contraditoriamente.” (Fachin, Lídia. Alguns aspectos da teatralidade em Orphée, de Jean Cocteau. Itinerários: Revista de Literatura, n. 1, 1990: http://hdl.handle.net/11449/107926).

A interação entre mundos, mediada pelo espelho, entre o homem e a morte é dinâmica, imanente, dialógica, irredutível e insuperável.
“O espelho parece absorver, e o ser que nele se reflete, e o ser que olha a imagem. O germe ou o ramo parece absorver tanto a árvore da qual ele provém, quanto a árvore que provém dele” (Gilles Deleuze. Spinoza et le problème de l’expression, Paris, Minuit, Arguments, 1968, p. 300).
A morte refletida no espelho de um ser humano não significa, forçosamente, a hora da partida, antes a oportunidade de se consciencializar da sua finitude e respetivas consequências. Uma advertência semelhante ao dito dos esqueletos músicos da Dança Macabra do Cemitério dos Santos Inocentes, em Paris (sobre as danças da morte ou macabras, ver O Louco e a Morte: https://tendimag.com/2013/09/12/o-louco-e-a-morte/):
Vós, que um destino comum
Faz viver em condições tão diversas,
Vós dançareis todos esta dança
Um dia, os bons como os malvados.
Os vossos corpos serão comidos pelos vermes.
Lamentavelmente! Olhem-nos:
Mortos, podres, pestilentos, esqueléticos;
Como nós somos, assim vós sereis”.
(Fala dos Músicos na Dança Macabra do Cemitério dos Santos Inocentes, segundo gravuras publicadas por Guyot Marchant em 1485).
A morte, o espelho e a vida, os mortos, a porta e os vivos, configuram um todo composto por entidades coexistentes, diferentes, dinâmicas e conflituais, mas interdependentes e interativas. Simbolizam um memento mori. Embora a morte, com a sua procissão de horrores, se anuncie como uma fatalidade, a salvação ou a condenação derivam dos benefícios e dos malefícios da provação terrena.
Nas danças da morte de Wernhe von Zimmern e Matthaeus Merian (figuras 3 e 4), uma nobre bela vê-se a um espelho exibido por um esqueleto. Cada um engloba um duplo memento mori, o primeiro, o espelho da morte, contido no segundo, a dança macabra, dança que exprime a universalidade e a igualdade perante a morte: todos morremos sem distinções estatutárias. Cada “vivo” é precedido e seguido por esqueletos que o conduzem ao túmulo. Entre as figuras mais recorrentes, destacam-se um imperador, um rei, um papa, um monge e uma mulher bela, porventura nobre (Wikipedia: https://pt.wikipedia.org/wiki/Dan%C3%A7a_macabra).

Na Idade Média, havia quem encarasse a beleza feminina como uma bênção. “Para além de um corpo e de um rosto perfeitos, a mulher bela é a incarnação do esplendor divino” (Jean-Jacques Wunenburger, Le Miroir, le Secret et le Sacré: https://ostium.sk/language/sk/le-miroir-le-secret-et-le-sacre/). No Discours de la beauté des dames, publicado postumamente em 1578, Ange Firenzula (1493-1543), escreve: “a beleza é percebida como um reflexo pelo qual se anima e brilha um mundo ideal, o universo da perfeição divina”. Umberto Eco confirma: característica do amor cortês, “a “donna angelicata“ tornou-se na via da salvação (…) um meio de ascender a Deus, já não motivo de erro, de pecado, (…) mas caminho para uma espiritualidade mais elevada” (Histoire de la beauté, 2004). Esta versão positiva da beleza feminina expande-se na arte do Renascimento (para o caso da poesia portuguesa, consultar: Micaela Ramon, «Tratado da beleza feminina segundo Camões. Entre imitação e invenção»: http://hdl.handle.net/1822/61304).

Mas, na Idade Média, predomina outra perspetiva: a mulher, sobretudo bela, presta-se ao pecado. Presa fácil da vaidade e da luxúria, encobre um ninho de tentações, perigos e vícios. O espelho distingue-se, aliás, como um dos principais símbolos da vaidade. Compreende-se, assim, a presença da mulher bela e do espelho nas danças macabras, presença que se presta a várias leituras: ora espelho da morte, ora espelho da vaidade, ora ambos.
07. Detalhe do Políptico da Morte.1775. Museo Nacional del Virreinato,Tepotzotlán, México.
Nas figuras 5 a 7, as pinturas circunscrevem-se exclusivamente a espelhos da morte. Na mais antiga, um excerto de um livro de horas do século XVI, o espelho reflete um rosto esverdeado, no mínimo, de um moribundo. Das três figuras, é a única em que o espelho permanece nas “mãos” de um esqueleto, a “morte seca”. No retrato com o pintor Hans Furtenagel acompanhado pela mulher (1529), surgem no espelho duas cabeças em decomposição, uma espécie de transis (sobre os transis, ver Transi 1: As artes da morte: https://tendimag.com/2017/01/10/transi-1-as-artes-da-morte/). Na terceira figura, um excerto do Políptico da Morte, da coleção do Museo Nacional del Virreinato, aparece no espelho apenas uma caveira. Um dito alude à passagem: “Aprended vivos de mí, que há de ayer a Oy, ver como me ves fuí, y calavera, ya soy”. Estes dois espelhos da morte, mais recentes, dispensam a ajuda dos esqueletos.
No quadro La Muerta Viva (figura 8), “uma dama vê-se ao espelho com metade do corpo como esqueleto, imaginativa representação da proximidade entre a vida e a morte” (Atmósferacine, En las afueras de la Cinelandia de Ramón Gómez de la Serna, conducidos por Jordi Costa: https://atmosferacine.com/2019/10/11/en-las-afueras-de-la-cinelandia-de-ramon-gomez-de-la-serna-conducidos-por-jordi-costa/). Assistimos a uma nova variante de multiplicação de motivos: o espelho da morte reflete a parte esquelética de uma morta viva, metade pele e carne, metade osso, um memento mori bastante comum (ver Vida de esqueleto I: A carne e o osso: https://tendimag.com/2017/09/26/vida-de-esqueleto-i-a-carne-e-o-osso/). Em suma, La Muerte Viva confronta-nos com uma unidade híbrida.
No conjunto, estas quatro figuras ilustram a diversidade de formas passíveis de invocar o indesejável e incontornável destino do ser humano: o moribundo, o transi, a morte seca… Um misto de realidade e imaginação.

É tempo de fazer um intervalo. O excerto da Dança Macabra de Basel (figuras 9 a 11) oferece-se como um bom pretexto para cruzar a realidade mais ou menos imaginada com a ficção mais ou menos fundada. O desvio pode ser o melhor atalho.

Por uma vez, cumpre à pessoa em trânsito, a “nobre bela”, segurar o espelho (figura 9). A posição do espelho, a postura e o olhar da nobre bela e do morto esboçam uma triangulação. Se na gravura a imagem refletida é, do ponto de vista da nobre bela, a do morto, não é de todo inconcebível que o olhar do morto também procure no espelho a imagem da nobre bela. Um morto a ver a vida ao espelho? Ao espelho da morte, corresponderá, no além, um espelho da vida? Certo é que, no imaginário dos vivos, a morte não desdenha ver-se ao espelho. Por exemplo, em pose (na figura 10, face a um espelho de vaidade?), enquanto descansa (na figura 11, a observar a vida?) ou enquanto reza (na figura 13, com os mortos pelos vivos?). O que vê a morte ao espelho? As imagens disponíveis insistem em manter o segredo.


11. Jan Mandijn. A tentação de Santo Antão. 1540–1550. Quadro e detalhe.
Nesta imprudência de cruzar a realidade imaginada com a ficção fundada, aflora a tentação de acrescentar a reciprocidade à interdependência, à interação e ao trânsito entre os mundos da vida e da morte. Esta aberração promete um argumento desafiante para um próximo artigo.

Despeço-me com uma fábula. A vida, a morte e o espelho esboçam um triângulo, uma totalidade plural e problemática. Michel Maffesoli diria uma “harmonia conflitual” (Comunidade de destino, Horizontes Antropológicos, Porto Alegre, ano 12, n. 25, p. 273-283, jan./jun. 2006, p. 273). Basta uma anomalia ou uma falha na triangulação para abalar essa harmonia. O espelho da morte representa uma ameaça, mas no futuro; já a falha num dos vértices provoca uma desgraça, já no presente. Por exemplo, quando o espelho não reflete a imagem, se quebra ou é ignorado.
Na Grécia Antiga, o espelho, reservado às mulheres, era considerado como o reflexo da alma. Nas práticas divinatórias, a quebra do espelho implicava a maldição para aquele que o consultava. Os romanos avançaram com a superstição, ainda atual, de que um espelho partido inicia sete anos de azar. No conto “o espelho da morte”, de Miguel de Unanumo, a jovem enferma Matilde morre precisamente no dia em que não quis olhar-se ao espelho:
“Passou a noite chorando e ansiando e na manhã seguinte não quis olhar-se ao espelho. E a Virgem de Fresneda, Mãe de compaixões, ouvindo os rogados de Matilde, aos três meses da festa levava-a para que brincasse com os anjos.” (Miguel de Unamuno, O Espelho da Morte, conto, 1913).

Ocorre o inverso com o espelho, agora da verdade. da “menina bexigosa” do poema de Sidónio Muralha: “A menina bexigosa viu-se ao espelho / Soltou-se do vestido e viu-se nua / Está agora vestida de vermelho, / Inerte, no passeio da rua”. Juntas, as duas narrativas engendram uma espécie de duplo vínculo: “preso por ter cão, preso por não ter”. Não há arte de escapar à morte!
Menina bexigosa
A menina bexigosa viu-se ao espelho
Soltou-se do vestido e viu-se nua
Está agora vestida de vermelho,
Inerte, no passeio da rua
Antes fora alegria e alvoroço
Mas num baile ninguém a foi buscar
Morreu o sonho no seu corpo moço
Passou a noite a chorar
Tanto chorou que lhe chamaram louca
Cada qual lhe levava o seu conselho
Mas ninguém ninguém ninguém lhe beijou a boca
E a menina bexigosa viu-se ao espelho
Depois, fecharam a janela
Vieram os vizinhos: ‘Pobre mãe…’
Vieram os amigos: ‘Pobre dela…’
‘Era tão boa e simples tão honesta,
… portava-se tão bem’
E dão-lhe beijos na testa
Beijos correctos pois ninguém, ninguém
Soube em vida matar a sua sede
‘A menina bexigosa portava-se tão bem’
O espelho continua na parede.
(Sidónio Muralha, Menina Bexigosa, 1973).
A morte à flor da pele (revisão aumentada)
« [O homem] não é senão (…) o que lhe falta.”
(Bataille, Georges, 1970, « Dossier de l’œil pinéal », Œuvres complètes, II, Paris, Gallimard, p. 35. Tradução livre).“[Os jovens que fazem piercings e tatuagens] procuram “autonomizar-se” do olhar dos pais. Têm o sentimento de não ser eles próprios, mas uma espécie de bem que pertence aos pais. Daqui esta frase repetida inúmeras vezes: “Eu reapropriei-me do meu corpo”, como se o corpo lhes tivesse sido roubado a um ou outro momento. Ao nível simbólico, o facto de fazer uma tatuagem ou um piercing é uma maneira, para o jovem, de assinar o seu corpo, uma maneira de dizer que é só dele” (David Le Breton, “Les jeunes prennent leur autonomie par le piercing”, jornal Le Monde, 25 de Março de 2004).
Neste excerto, David Le Breton, centra-se, a propósito das tatuagens, na relação dos filhos com os pais (para uma visão mais abrangente da abordagem de David Le Breton, 2002, consultar Signes d’identité. Tatouages, piercings et autres marques corporelles, Éditions Métailié. Mas existem outras relações tutelares. Por exemplo, as “tecnologias políticas do corpo” (Foucault, Michel, 1975, Surveiller et punir, Paris, Gallimard) adoptadas, sustentadas e legitimadas pelos dispositivos de saúde, ciência, educação e justiça, bem como pelas instituições e organizações para-governamentais e empresariais. Atente-se nos programas de vacinação, nas campanhas anti tabaco e na recente febre do emagrecimento, fenómeno ímpar na história da humanidade.
A tatuagem não é, em si, prestigiante ou degradante. No mesmo período, finais do século XIX, as tatuagens eram estigma no prisioneiro, emblema no marinheiro e honra no maori da Nova Zelândia. As tatuagens são um assunto polémico, cujo valor varia consoante os homens e as culturas. Oscila também com o vento.
A relação com o corpo não se confina apenas aos pais e ao Estado. Depende, também, dos pares. Pese aos sociólogos, nomeadamente a Émile Durkheim (1897, O Suicídio) a imitação que Gabriel Tarde (1890, As Leis da Imitação) estudou é um fenómeno apreciável. Copia-se ou segue-se o outro significativo, amigo, namorado ou ídolo. Mas a imitação também ocorre, segundo a noção alargada de Gabriel Tarde, de um modo não consciente, conduzido ou não pela corrente:

04. Dança macabra e memento mori, por Stigmatattoo
“Sei bem que não é conforme ao uso ordinário dizer que um homem, que, sem se dar conta e involuntariamente, espelha uma opinião de outrem ou se deixa sugestionar por uma acção de outrem, que imita esta ideia ou este acto. Mas, se é conscientemente e deliberadamente que ele toma de empréstimo ao seu vizinho uma maneira de pensar ou de agir, concorda-se que o emprego da palavra em questão é, aqui, legítimo. Nada é, porém, menos científico de que esta separação absoluta, esta descontinuidade cavada, estabelecida entre o voluntário e o involuntário, entre o consciente e o inconsciente. Não se passa por degraus insensíveis desde a vontade reflectida ao hábito mais ou menos maquinal? E um mesmo acto muda absolutamente de natureza durante esta passagem? Não é que negue a importância da mudança psicológica assim produzida; mas, sob o seu aspecto social, o fenómeno permaneceu o mesmo” (Tarde, Gabriel, 1895, Les lois de l’imitation, Paris, Felix Alcan Editeur, pp. VII e VIII).
A expansão recente das tatuagens e dos piercings está associada à erupção das novas tribos e à sua influência na vida quotidiano dos seus membros (Maffesoli, Michel, 1988, Le temps des tribus, Paris, Méridiens-Klincksiec) . Ao falar das novas tribos, estamos longe da esfera dos pais ou do Estado. Nestes casos, a imitação tende a ser uma adesão, podendo ou não comportar rituais de passagem. Algumas tribos adquirem foros de subculturas e estilos de vida, por exemplo, os punks e os góticos.

06. Tatuagem gótica.
Sem menosprezar estas considerações, a decisão e o acto de fazer uma tatuagem ou um piercing cabem ao indivíduo. São subjectivos e expressivos. Decide-se capturar o desejo e a vontade na própria pele, por vezes, na carne. Uma tatuagem “pontua” uma pessoa, uma ligação, um evento, um talismã, um sentimento… E assim se inscreve o efémero na eternidade pessoal, de cada um (ver Ave Corpo: https://tendimag.com/2012/06/10/ave-corpo/).

07. Jeremy Woodhouse. Holly Wilmeth
Georg Lukács escreveu num um texto de 1910 que Soren Kierkegaard “quis criar formas com a vida” (Lukács, Georg, 2013 [1910], El alma y las formas, PUV Universitat de Valencia, p. 74). Se os filósofos aspiram criar formas com a vida, não pode o homem comum aspirar a fazer arte com o corpo? Esta pergunta não é retórica. Além de subjectivas, as tatuagens podem comportar uma inspiração estética (ver A pele e a máscara: https://tendimag.com/2011/10/22/a-pele-e-a-mascara/). Observa-se, aliás, uma certa homologia entre, por um lado, as tatuagens e, por outro, os graffiti e a street art. Contemporâneos, as tatuagens inscrevem-se na pele dos corpos; os graffitis e a street art inscrevem-se na pele das cidades.
A vaga das tatuagens e dos piercings, parece crescer à revelia do “processo civilizacional” (Elias, Norbert, 1989 [1939], Lisboa, Dom Quixote). Desde a Idade Média, século após século, o corpo humano individualizou-se, rectificou-se, poliu-se e fechou-se (Vigarello, Georges, 1978, Le Corps redressé, Paris, Éditions Armand Colin). Com as tatuagens e os piercings, o corpo é perfurado, gravado e, no caso dos implantes subcutâneos, granulado.
Não se regressa ao passado, mas revisita-se. Há pontes e saltos na história espantosos. Uma parte da sociedade actual, civilizada e moderna quanto baste, resgata o património, as iluminuras medievais, de um tempo que corresponde, precisamente, aos primórdios do processo civilizacional. As imagens macabras da Idade Média estampam-se nos corpos, por exemplo, dos góticos “pós-modernos”. Estes saltos na história não são raros. Tão pouco nos são exclusivos.
Este artigo contempla seis tatuagens, góticas, alusivas à morte. A maioria é confrontada com imagens de outros tempos, designadamente medievais. As duas primeiras (Figuras 2 e 4) copiam, literalmente, as danças macabras do séc. XV (Figuras 1 e 3).
A terceira (Figura 6) lembra, no traço, A Noiva-cadáver de Tim Burton e, na postura, o Zé Povinho de Rafael Bordalo Pinheiro. Na substância, inspira-se na irreverência dos esqueletos e transis das danças da morte (Figura 5).
Na quarta (Figura 7), a caveira aparece tatuada na parte do corpo mais apropriada: a cabeça. Não fosse o rosto de criança, a parte visível do corpo, coberta por caveiras, lembraria um cemitério.
A quinta tatuagem apresenta um espelho da morte (Figuras 8 9), tema recorrente no imaginário medieval e barroco (Michel Vovelle, “A História dos homens no espelho da morte”, in Herman Braet & Wermer Verbeke (eds), A Morte na Idade Média, S. Paulo, Edusp, 1996, pp. 11-26). O corpo surge, agora, como suporte do espelho da morte.
Por último, depois do espelho da morte, uma miniatura minimalista de uma vanitas (Figura 11). A morte aninha-se a um canto de uns lábios carnudos. Uma versão original e estilizada do beijo da morte (Figura 10).
A tatuagem é uma assinatura que subscreve um gesto, um gesto de eventual recusa de corpos conformados, submissos, predefinidos, calibrados, eficientes e, sobretudo, acabados. Perante tanta apologia da perfeição, da certeza e da pureza, importa ser ruído, falha e nódoa. Quando Georges Bataille afirma que “o homem não é senão o que lhe falta”, não está a diminuir mas a exacerbar o ser humano. Embora não esteja nas escrituras, “não nos esterilizemos uns aos outros”.
E depois do adeus
Não se brinca com o fogo, com Deus, com os sentimentos, com a sombra… E com a morte? Num anúncio recente, uma viúva bebe chá com as cinzas do marido defunto (O cão que sabia demais). Neste anúncio, um cadáver é alvo de cosmética inconveniente. Sempre se brincou com a morte, realidade demasiado séria. Em tempos, não se brincou tanto quanto parece: as imagens medievais que, agora, consideramos engraçadas, como as danças da morte, não tinham, então, graça nenhuma. A relação actual com a morte é ambígua. Oscila entre o limpo e o sujo: a morte asséptica convive com a morte poluída. Por exemplo, a cremação de um morto e a exibição de cadáveres nos maços de cigarros.
Marca: National Jazz Awards. Título: Death becomes you. Agência: DDB Toronto. Direcção: Josefina Nadurata / James Davis / Jen Walker. Canadá, 2005.
A morte à flor da pele
“[Os jovens que fazem piercings e tatuagens] procuram “autonomizar-se” do olhar dos pais. Têm o sentimento de não ser eles próprios, mas uma espécie de bem que pertence aos pais. Daqui esta frase repetida inúmeras vezes: “Eu reapropriei-me do meu corpo”, como se o corpo lhes tivesse sido roubado a um ou outro momento. Ao nível simbólico, o facto de fazer uma tatuagem ou um piercing é uma maneira, para o jovem, de assinar o seu corpo, uma maneira de dizer que é só dele” (David Le Breton, “Les jeunes prennent leur autonomie par le piercing”, jornal Le Monde, 25 de Março de 2004).
Há três fenómenos culturais que vieram ao arrepio das minhas expectativas teóricas. As tatuagens, os piercings e a moda da barba apanharam-me desprevenido. Centram-se no corpo: marcam-no e demarcam-no, mas não para o polir ou isolar. Configuram “sinais de identidade”, introduzindo uma nova modalidade de semiose social.
Seleccionei cinco tatuagens, góticas, alusivas à morte. As duas primeiras copiam, literalmente, as danças macabras do séc. XV.
A terceira, lembra, no traço, A Noiva-cadáver de Tim Burton e, na postura, o Zé Povinho de Rafael Bordalo Pinheiro.
Na quarta, a caveira aparece tatuada na parte do corpo mais apropriada: a cabeça.
A quinta tatuagem apresenta um espelho da morte, tema recorrente nas imagens medievais e barrocas (Michel Vovelle, “A História dos homens no espelho da morte”, in Herman Braet & Wermer Verbeke (eds), A Morte na Idade Média, S. Paulo, Edusp, 1996, pp. 11-26). O corpo assume-se como suporte do espelho da morte.
Por último, depois do espelho da morte, termino com a vanitas nos lábios de uma tatuagem. Original. Uma versão contemporânea do beijo da morte?
Um fim-de-semana bem preenchido. Gosto de jogar ténis de mesa com os meus rapazes. São os únicos que me aturam. Gosto, também, de jogar pingue-pongue com a história. Em momentos de lazer, é um prazer visitar a história como quem descasca castanhas. É um desporto que não emagrece. Dá a ver o presente sob outra luz: muita ganga e pouco minério.
A morte saiu à rua
Os gatos têm sete vidas, mas os homens têm mais mortes. A publicidade aposta no tópico da morte. Regressa o espantalho esquelético que a todos abraça sem pudor. Uma morte louca, sinistra, próxima, digital, embalsamada no tempo.
A morte é o nosso fantasma de estimação. Somos uma sociedade mortífera, não porque se mate ou morra mais, mas porque andamos com a sombra da morte na ponta do nariz. É certo que a Idade Moderna esconjurou a morte do quotidiano, mas ela nem por isso deixa de nos dar a mão e de nos guiar como nos frisos das igrejas medievais. Na vida como no ecrã, a morte, essa assombrosa sedutora, dança, dança nos videojogos, nos anime, nos filmes, nas séries televisivas, nos telejornais, nos nossos muitos medos.
O anúncio The man who died the most on movies surpreende com uma avalanche de sequências de mortes. Espera-se que, graças ao cómico, a catarse aconteça: rir da morte. Mas quem costuma rir não é o homem, mas a morte, a “morte risonha”. O nosso riso desbota até ficar amarelo. A morte sai à rua, como nos quadros de James Ensor, Otto Dix ou George Grosz. A morte adora um pé de dança. Dêmos-lhe música: “A morte saiu à rua”, de José Afonso (1972) e “The Untouchables: Death Theme”, do álbum Yo-Yo Ma plays Ennio Morricone (2004).
Anunciante: French Health Department AD. Título: The man who died the most on movies. Agência: DDB, Paris. Direcção: Alexandre Hervé. França, Junho 2015.
José Afonso. A morte saiu à rua. 1972.
“The Untouchables: Death Theme”, do álbum Yo-Yo Ma plays Ennio Morricone (2004).