Um pouco de céu

Hoje, foi dia de pequenas coisas. Ressonâncias que não pesam no juízo final. Memórias sem história. Nada para arquivar. Quando escrevi, há 10 anos, o artigo Lembranças tinha mais memória e menos barriga. Mas agrada-me. Centra-se no insignificante. Amanhã, recomeçam os vazios importantes. Aumenta a pose e encolhe a pessoa. Entretanto, apetece-me ouvir Mafalda Veiga.

Mafalda Veiga. Um pouco de céu. Tatuagem. 1999.

Lembranças

Neto de comerciante, foi-me dado assistir à morosa hesitação da escolha dos postais ilustrados. Não deixa de constituir tarefa penosa, quase um milagre, conseguir acomodar, num rectângulo tão exíguo, emissor, destinatário, pretexto, mensagem e imagem. Lembro-me, também, da recepção de alguns postais. Ao estremecimento e à comunhão iniciais, com o postal a passar de mão em mão, sucedia-se a exposição num “altar improvisado” e o recolhimento numa gaveta, caixa ou álbum destinado às relíquias memoráveis. Quase todos nós, apesar dos anos e das mudanças, preservamos alguns destes tesouros semi-privados. Compõem uma espécie de bálsamo para as rugas da nossa identidade.

Postal 3

Postal 3

Os postais ilustrados comportam uma vertente estética. Podem ainda apresentar uma aura de magia, virtualidade, aliás, própria de um objecto que se interpõe entre duas pessoas. Absorvem o emissor que neles se inscreve (“estou aqui!”) e convocam o destinatário que neles se adivinha (“Esta menina és tu a pedir à Nª Sª pª vires passar as férias a casa”: postal 1). Podem, inclusivamente, aspirar a uma certa tangibilidade das almas ou, se se preferir, a um magnetismo dos corpos separados: “Se o pensamento fosse visível, ver-me-hias sempre ao teu lado” (postal 2). Muitos postais ilustrados são dádivas. Antes de mais, dádivas de si. São lembranças, “something between a message and a present” ( Andrew Martin:http://blogs.guardian.co.uk/travelog/2008/07/postcards_back_from_the_edge.html). 

Postal 4

Postal 4

São prendas! Apreciadas, exibidas e guardadas. Pessoalizadas em sintonia com o outro, pedem criatividade, dedicação e sentido de oportunidade. Confesso nutrir alguma predilecção pelos postais ilustrados anteriores a 1902, aqueles em que “de um lado só se escreve a direcção”. Reduzem o importante ao essencial. E o essencial, como bem sabemos, cabe no buraco de uma agulha. As soluções, variadas, oscilam entre a incontinência de letras que afoga a imagem e o gesto discreto e precioso que lhe acrescenta valor. Mesmo com a possibilidade de escrita no reverso do postal, as marcas e as inscrições na imagem perduraram, como uma espécie de luxo ou de requinte pessoal ( atente-se no postal 3 e, sobretudo, no pormenor do postal 4: estes postais podem ser vistos no blogue Postais Antigoshttp://postais.do.sapo.pt/). É certo que, na maioria dos casos, estas prendas são surpresas esperadas, ao sabor das efemérides ou das viagens. Se tardam, sente-se a falta, num misto de frustração e inquietação.

Tags: , , , ,

3 responses to “Um pouco de céu”

  1. Beatriz Martins says :

    Que delícia de tema, nunca o tinga visto por cá. Essas origens familiares que também tive, adoro postais, e os seus escritos.Dos 9 filhos, foi quem guardou essas fantasiosas ilustrações(algumas quase iguais a essas). Como diz, têm tanto de tudo, e apesar de não ter conhecido os autores.

  2. Isabel Victor says :

    Exce(lente)

Trackbacks / Pingbacks

  1. Estar no céu: Vinicius de Moraes | Tendências do imaginário - Agosto 2, 2020

Leave a Reply

%d bloggers like this: