Etnografia da etnografia. A um professor.

Conversa fiada:
Nos anos setenta, num corredor da Sorbonne, Georges Balandier comenta:” A relação dos portugueses com a distinção social é estranha. Nem nas autoestradas aceitam ser confundidos…”
Esperei uma alusão à “doutorite”, o socalco linguístico lusitano. Mas não, contentou-se com os automóveis. Ainda me assombra o reparo de Georges Balandier. Para cúmulo, vindo de um francês… Em férias, estou confinado a fumar na varanda. Vejo os carros passar. Georges Balandier tinha alguma razão. Hoje, passou um carro espalmado vermelho com o símbolo de um cavalo. Talvez me engane, mas Portugal é uma jardim de desigualdades onde as estradas são passerelles.

Georges Balandier (1920-2016) é um nome marcante da sociologia francesa. Foi meu professor três anos consecutivos. Um professor de respeito. Falava como escrevia, de um modo exímio. Escreveu romances. No livro Afrique Ambigüe, relata um encontro com um indígena apostado em lhe vender uma máscara. Um episódio heurístico. Quando um investigador aprende com os outros é garantido que aprenderemos com ele.


A presença aflitiva
Encontrava-me há alguns dias no acampamento do Monte Nimba, quando um jovem de uma aldeia vizinha veio ter comigo ao anoitecer. Exigiu ver-me em privado (…).
Disse-me em tom solene :
“Cala-te, é perigoso, repara!”
Em seguida, acrescentou:
“Trago-te Nyon Néa.”
De uma velha peça de roupa rota, embrulhada por baixo do braço, retira uma máscara aconchegada num invólucro de ráfia. Os traços convencionais, que viria a aprender a reconhecer, estavam respeitados: face longa oblonga cujas estrias paralelas marcam o contorno; olhos esticados, simplesmente recortados, como se estivessem semicerrados; boca proeminente ornamentada com dentes de alumínio. Mas era uma máscara desleixada, talhada em madeira medíocre e mole, toda besuntada com uma tinta violeta inseparável, no que me respeita, das recordações da mercearia-papelaria campestre. Apesar de respeitar as convenções, nada restava daquilo que concedia valor às formas antigas; e o artesão, na falta de tinta negra que a velha paciência sabia compor, contentou-se com esta tinta comprada a um tratante da aldeia. O objecto fazia pensar num exercício de aprendiz. Recusava-me a acreditar que pudesse albergar o suporte das forças que moravam nos modelos do passado. Parecia demasiado caricato que se pudesse aplicar a velha fórmula da transferência de potência:
Sémè yabé nyon ploki zuki éto yiké zu.
« Que a força (semè), que estava na máscara antiga, entre na nova!” (…)
Tentei interrogar o meu interlocutor. Segundo ele, tudo era conforme: sim, os sacrifícios tinham sido realizados (mas a máscara não comportava na fronte nem marcas de sangue de frango sacrificado, nem fragmentos de cola mascada pulverizados pelo oficiante); sim, a máscara tinha nome: “Aquela-que-dá-a-paz”; sim, a primeira saída pública teve lugar. Tantas afirmações suspeitas, mas quis prosseguir:
- Quem é Nyon Méa?
- É a mulher.
- Mas que mulher? A mulher de quem?
- Ah ! isso, patrão, os « pequenos » como eu não conhecem os feitos das máscaras como outrora… Talvez seja a mulher dos iniciados.
Tivemos que ficar por aqui. O meu interlocutor tinha apenas uma preocupação: queria algum dinheiro pela sua máscara – esta obsessão prendia-se com uma história confusa de honorários a pagar a um médico-mágico. Cedi perguntando-me se, por qualquer tipo de subterfúgio, os objectos tornados feios e disponíveis a quem assim o entender não iriam impor-me uma presença aflitiva (…).
Mal souberam da minha aquisição da horrível figura violeta (…) as pessoas da aldeia pensaram ter descoberto uma das minhas fraquezas. Tiraram dos cestos, onde guardavam as máscaras antepassadas em desuso, algumas peças para negociar. Eles delegaram-me emissários”.
Ballandier, Georges (2008), Afrique ambiguë, Paris, Plon. Primeira edição, 1957, pp. 137 e seguintes.