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Jejum guloso

Não faltam fatores de desigualdade. Alguns beneficiam de uma enorme visibilidade: o género, a raça… Outros, não sendo menores, permanecem discretos: de idade, de língua… Não tenho, contudo, memória de hegemonia tão aceite, entranhada e global como, atualmente, a da língua inglesa.

Como as demais, a hegemonia do inglês é solar. Conforme o lado, ofusca ou ensombrece. Jejuar resume-se a um gesto simbólico. Óculos escuros não apagam o sol, ainda menos uma peneira. Mas propicia-se mais do que dar luz à luz.

Christoph Weidiz. Dança mourisca.1530

O simbólico não é inócuo. Interfere na nossa visão do mundo, logo no nosso modo de (re)agir. Jejuar pode contribuir para rasgar horizontes e “dar novos mundos ao mundo”, torná-lo mais rico, complexo e diversificado. Dispensar o que nos enfarta pode revelar-se salutar e, até, estimular a gula. As sombras ganham vida e entregam-se a ritmos, sonoridades e coreografias admiráveis. Acomete-nos a vertigem da descoberta e vacila ligeiramente a dominação que nos submete.

A música é outra. O ar assobia pelas frinchas das janelas e o sobrado range novos ritmos. E noite dentro, em regime lunar, espelham-se nos vidros os nossos próprios fantasmas. Ressoam outras línguas, de uma estranheza que ressoa familiar. Por exemplo, o sefardita, mas também o mourisco e o luso-árabe.

Acontece-nos visitar poesias e canções cuja origem nem sonhamos: o “Belo Manto”, de José Peixoto e Sofia Vitória; a “Hortelã Mourisca”, de Amália Rodrigues; “O Pastor”, dos Madredeus…

E surpreendemo-nos a cismar: como nos empobrece a riqueza que nos dão!

José Peixoto & Sofia Vitória – Belo Manto. Belo Manto — Música para Poesia Luso-Árabe e Poesia Medieval Portuguesa. 2017
Amália Rodrigues – Hortelã Mourisca. 1977
Madredeus – O Pastor. Existir. 1990. Ao vivo, O Pastor, seguido de A Vaca de Fogo e Os Senhores da Guerra, no Palais des Beaux-Arts, Bruxelas, Bélgica, 24 de abril de 1995

Inflação, poder de compra e desigualdades sociais

Evolução do poder de Compra. França, 2015 a 2022. Fonte: Xerfi Canal, 19.01.2023

O Xerfi Canal (https://www.xerficanal.com/) é uma “revista online sobre o mundo da economia, a estratégia e a gestão das empresas”. Publica diariamente um comentário temático conciso e claro, hoje, 19.01.2023, dedicado à evolução recente da relação entre a inflação, o poder de compra e os rendimentos. O foco é a França, mas estou em crer que a análise é extensível aos demais países da União Europeia, incluindo Portugal. Partilho o vídeo, em francês, seguido por uma tradução livre e algo apressada.

Alexandre Mirlicourtois. Un pouvoir d’achat en chute libre? La réalité des chiffres. Xerfi Canal. 19.01.2023

“Sondagem após sondagem, o poder de compra ocupa o primeiro lugar nas preocupações dos franceses. Isso não tem nada de surpreendente uma vez que há meses que os agregados domésticos evidenciam uma degradação clara da sua situação financeira e não aguardam nenhuma melhoria a curto prazo. Os dados do INSEE [equivalente francês do INE] comprovam-no. É verdade que o rendimento real dos franceses embora ameaçado não sofre uma quebra expressiva. Convém equacioná-lo por unidade de consumo de modo a contemplar o fato de, por um lado, se repartir por um número crescente de habitantes e, por outro, de a vida em comum permitir, graças a economias de escala, reduzir determinadas despesas tais como as do alojamento. A evolução da dimensão dos agregados domésticos possui também alguma importância.

Sob esta luz, a tendência resulta menos favorável: o poder de compra baixou 0,6% no ano passado, o que não é muito. Recuando um pouco no tempo, o poder de compra por unidade de consumo mantém-se acima do nível anterior à crise e, recuando ainda mais, o refluxo de 2022 não tem comparação com o registado entre 2011 e 2013. A estatística é, mais uma vez, posta à prova pela experiência da vida quotidiana e surge desfasada da realidade vivida por muitos cidadãos.

Para explicar este hiato, importa reconsiderar o fator atual que mais pesa sobre o rendimento: a descolagem dos preços no consumo. Trata-se de uma inflação geradora de desigualdades profundas. A progressão dos preços não é homogénea e incide, nos dois últimos anos, num núcleo principal, a energia, e num núcleo secundário, a alimentação. Por seu turno, os aumentos dos preços dos produtos manufaturados e dos serviços têm revelado maior contenção. Acontece que a exposição dos agregados domésticos, bastante elevada e muito concentrada, varia significativamente consoante o respetivo nível de vida, devido à estrutura do consumo acentuadamente diferenciada.

A fatura energética é um dos elementos inerentes ao alojamento. Para os mais desfavorecidos representa acima de 6% das suas despesas totais contra menos de 4% no topo da escala. O mesmo sucede no que respeita à despesa alimentar cujo peso diminui à medida que o nível de vida aumenta. A situação pode resumir-se da seguinte forma: a baixo nível de vida, preços altos; a nível de vida alto, preços baixos. Acresce uma amplificação conforme se seja rural ou urbano, por causa da progressão dos preços dos carburantes. Não existe, portanto, apenas um mas vários poderes de compra consoante o grau de exposição ao lote dos consumos mais inflacionistas.

Mas este não é o único fator de desigualdade. Subsiste outro mais importante associado à parte do rendimento consagrada ao consumo, logo diretamente impactada pela subida dos preços: 20% dos agregados domésticos mais modestos gastam mais de 97% dos seus rendimentos contra menos de 72% dos mais favorecidos, uma diferença de 26 pontos. Dito de outro modo, a quase integralidade do rendimento dos mais pobres é alocada às despesas quotidianas; em contrapartida, os mais favorecidos conseguem poupar cerca de 30%. O impacto é duplo. Primeiro, os franceses do topo conseguem manter o seu nível de despesas modificando a sua dosagem entre consumo e poupança; segundo, uma proporção dos seus rendimentos é parcialmente preservada pela evolução da remuneração das suas poupanças. Ocorre o contrário quando nos posicionamos no baixo da escala: quando os rendimentos não acompanham até à vírgula, ou quase, a evolução dos preços do respetivo cabaz, torna-se então necessário efetuar cortes claros nas despesas quotidianas porque não existe, ou existe muito pouca, gordura para ajustamento. Apenas um euro em cada três de despesas comprimíveis para estes; um euro em dois para os outros.

Em suma, para uma parte crescente da população rematar o fim do mês acaba por ser impossível sem recurso ao crédito renovável, também chamado crédito permanente ou revolving, modalidade de pagamento, uma espécie de reserva, geralmente associada a um cartão de crédito, cada vez mais mobilizada pelos agrupamentos domésticos para as suas compras correntes, cujas pendências estão em forte crescimento, embora partam de uma base baixa. A outra solução consiste no recurso às contas a descoberto, tendência manifesta no aumento explosivo da curva das contas correntes de débitos que já ultrapassam os 10 bilhões de euros e representam mais de 5% do conjunto dos créditos ao consumo, alcançando o nível mais alto dos últimos 20 anos. Constituem, porém, práticas onerosas que comportam um peso acrescido no orçamento dos agregados domésticos mais modestos. O sobre endividamento, que não parou de recuar desde meados dos anos 2010, corre seriamente o risco, neste contexto, de regressar em força nos próximos meses, apesar de um poder de compra, em aparência, em estado de Resistência.” (Alexandre Mirlicourtois. Un pouvoir d’achat en chute libre? La réalité des chiffres. Xerfi Canal. 19.01.2023: https://wordpress.com/post/tendimag.com/55467. Consultado em 19.01.2023.

Translucidez

“Demasiada luz ofusca” (Blaise Pascal)

Storytel’s 1984 / 2022 sounds like 1984. B-Reel Stockholm. Suécia, agosto 2022

Esta breve e ligeira reflexão foi estimulada pela leitura do texto “Quando vigiado se torna vigilante”, de Pedro Rodrigues Costa, e por dois anúncios. No meu caso, os anúncios publicitários revelam-se, muitas vezes, fontes de inspiração. Os anúncios “Data Auction”, da Apple, e “Storytel’s 1954″, da agência B-Reel Stockholm, são acompanhados pelo vídeo musical ” Every Breath You Take”, dos Police.

Vivemos numa sociedade da informação, para utilizar a noção adotada, entre outros, por Alain Touraine (La Société post-industrielle, 1969) e Daniel Bell (The coming of post-industrial society, 1973). A informação ter-se-ia tornado recurso preponderante, cuja produção, posse e circulação passaria a marcar a configuração e a vida das sociedades contemporâneas. Este alcance exponenciou-se com o incremento das TIC (Tecnologias de Informação e Comunicação). A informação representa um poder cuja distribuição é desigual, não só em termos de posse e acessibilidade, mas também em termos de meios, modos e possibilidades de uso e mobilização. Desigualdade que parece não diminuir com o aumento da informação. Com a tendência para a generalização da vigilância, o abuso do escrutínio e o desígnio de transparência, todos passamos a vigilantes vigiados e validadores validados. Esta banalização da vigilância, caraterística dos regimes totalitários, insinua-se como uma ameaça aos regimes democráticos. Se uma sociedade totalmente transparente, sem privacidade e com escrutínio absoluto, não se assevera possível, perfila-se, não obstante, como limite para o qual propendem os totalitarismos. Constitui, aliás, sua vocação.

Marca: Apple. Título: Data Auction. Produção: Smuggler. Direção: Ivan Zacharias. Estados-Unidos, maio 2022
Título: Storytel’s 1984 / 2022 sounds like 1984. Agência: B-Reel Stockholm. Suécia, agosto 2022
The Police. Every Breath You Take (Official Video). 1983

Desigualdade de género nos videojogos

Women in Games Argentina. Novembro 2022

As mulheres são discriminadas negativamente quando participam em videojogos partilhados? É provável. Assim o sugere o teste promovido pela associação Women in Games Argentina apresentado no anúncio Switch Voices.

“La acción constó de un experimento en el cual tres gamers profesionales jugaron con un modulador de voz femenino para vivir en primera persona lo que sienten las mujeres cada vez que intentan jugar. / En el mundo del gaming, las mujeres son víctimas de insultos, menosprecios y hasta complots para eliminarlas del juego. / Esto afecta a las jugadoras que quieren divertirse y principalmente a las que buscan profesionalizarse, porque en esas condiciones su rendimiento y sus posibilidades de ascender en los rankings se torna mucho más complicado. / Para generar conciencia sobre esto, BBDO Argentina y Women in Games Argentina realizaron un experimentó en el cual tres gamers profesionales jugaron con un modulador de voz femenino para vivir en primera persona lo que sienten las mujeres cada vez que intentan jugar. El resultado fue el esperado: los jugadores bajaron notablemente su promedio de victorias y declararon como “imposible” jugar bajo esas condiciones” (https://www.adlatina.com/publicidad/preestreno-switch-voices-bbdo-argentina-women-in-games-y-la-violencia-de-genero-en-el-gaming; consultado em 05.11.2022).

Anunciante: Women in Games Argentina. Título: Switch Voices. Agência: BBDO Argentina. Direção: Christian Rosli y Joaquín Campins. Argentina, novembro 2022

Notável e notório. A formiga e a cigarra, o galo e a galinha

Moledo, domingo. Proporciona-se um mergulho no adubo humano.

Notável é aquilo que é “digno de nota”, “merecedor de consideração e apreço”; notório, o que é notado, “conhecido por um grande número de pessoas”. Pode-se ser notável sem ser notório; e notório, mas não notável. Numa sociedade da imagem, da rede e do artifício, prevalece o notório. Chegados a esta encruzilhada, apetece reequacionar a fábula de La Fontaine: hoje, quem morre de fome não é a cigarra, notória, mas a, a formiga, notável. A cigarra polariza o reconhecimento. Sendo esta a verdade mundana, importa refundar as pragmáticas, as éticas e as teodiceias.

A propósito da cigarra e da formiga, acode-me a relação entre o galo e a galinha, cantada, com inspiração e humor, por Sérgio Godinho.

Sérgio Godinho. O Galo é o Dono dos Ovos. Pano-Cru. 1978. Ao vivo no Centro Cultural de Belém.

Publiquei, em 2011, uma fábula no ComUm, boletim da Universidade do Minho, com o título “Fábula comUM” (contemplada no Tendências do Imaginário com o título “Fábula das formigas sabichonas”). A Universidade tinha a virtude da homeopatia: sabia digerir o “mal”, a adversidade, expondo-se à crítica mordaz e sarcástica. É certo que as farpas se afogavam na gordura académica. Destilada e delirante, a escrita enferma de um vício que não me larga: discorrer sem explicitar o assunto. O leitor que adivinhe e o resto reverbere. O “segredo” remetia para a implementação da política dos rácios alunos/docentes consoante os cursos, depressa extrapolada, abusivamente, para os departamentos. Um veneno que as universidades, em particular a do Minho, devoraram. Este desvio de uma fórmula de financiamento para uma forma de governo desvirtuou o mundo académico, resultando numa legitimação e num reforço dos interesses e privilégios instalados ou em vias de instalação. Uma deformação que, a par do controverso processo de Bolonha, contribuiu estruturalmente para o atual desequilíbrio institucional das universidades portuguesas.

Para aceder à “Fábula das formigas sabichonas”, carregar na imagem seguinte ou no endereço https://tendimag.com/2011/11/13/fabula-das-formigas-sabichonas/

Desequilíbrio fórmico

Anúncios de bolso

Com poucas imagens se ilustra muito. Publicidade vintage.

Anunciante: Bancos de alimento. Título: Palomas. Agência: McCann Erickson. Direção: Mario Garcia. Espanha 1999.

Para aceder ao segundo anúncio, carregar na imagem seguinte.

Anunciante: Journée Mondiale du Refus de la Misère. Título: Donnons la parlole aus pauvres. Agência: TBWA. França, 1998.

Maternidade. O cordão umbilical e o ursinho de peluche

Equal Pay Day. The Umbilical Cord. 2022

“Na UE, as mulheres recebem em média 14,1% menos por hora do que os homens. Isso equivale a quase dois meses de salário. É por isso que a Comissão Europeia marca o dia 10 de novembro como um dia simbólico para aumentar a conscientização de que as trabalhadoras na Europa ainda ganham, em média, menos do que seus colegas do sexo masculino (Comissão Europeia – Dia de igualdade salarial: https://ec.europa.eu/info/policies/justice-and-fundamental-rights/gender-equality/equal-pay/equal-pay-day_en; acedido em 11-08-2022).

Entretanto têm ocorrido alguns progressos no cuidar das crianças. O ursinho de peluche Ector, detetor de fumo de tabaco, parece ser um deles. Aproveito para acrescentar a canção Woman, de John Lennon.

Anunciante: Equal Pay Day. Título: The Umbilical Cord. Agência: Mortierbrigade Brussels. Direção: Lionel Goldstein. Bélgica, março 2022.
Anunciante: Roche Italia. Título: Ector The Protector Bear. Patrocínio: WALCE Onlus – Women Against Lung Cancer in Europe. Agência: Integer, Milan, Italy. Direção: Nico Malaspina. Itália, outubro 2018.
John Lennon. Woman. Double Fantasy. 1980.

O amor pela dúvida

Supradyn. Supradyn memory test. 2022

Geniais! O anúncio e o teste. O valor reside na ideia; a técnica acompanha. O teste é duplamente virtuoso: como revelação e como comunicação: cada um convence-se a si próprio.

O que significa o resultado do teste? Herança de uma história que reservou o acesso à notoriedade aos homens? Uma memória coletiva seletiva que retém os nomes masculinos? Por que não, também, uma idiossincrasia pessoal?

Segue o anúncio Supradyn Memory Test, da Supradyn, bem como uma canção muito especial, com uma letra também inspiradora: Les gens qui doutent, de 1974, por Anne Sylvestre.

Marca: Supradyn. Título: Supradyn Memory Test. Agência: MullenLowe UK. UK, abril 2022.
Anne Sylvestre. Les gens qui doutent. Anne Sylvestre. 1974.

Les gens qui doutent – Anne Sylvestre (Paroles)

J’aime les gens qui doutent

Les gens qui trop écoutent

Leur cœur se balancer

J’aime les gens qui disent

Et qui se contredisent

Et sans se dénoncer

J’aime les gens qui tremblent

Que parfois ils nous semblent

Capables de juger

J’aime les gens qui passent

Moitié dans leurs godasses

Et moitié à côté

J’aime leur petite chanson

Même s’ils passent pour des cons

J’aime ceux qui paniquent

Ceux qui sont pas logiques

Enfin, pas “comme il faut”

Ceux qui, avec leurs chaînes

Pour pas que ça nous gêne

Font un bruit de grelot

Ceux qui n’auront pas honte

De n’être au bout du compte

Que des ratés du cœur

Pour n’avoir pas su dire :

“Délivrez-nous du pire

Et gardez le meilleur”

J’aime leur petite chanson

Même s’ils passent pour des cons

J’aime les gens qui n’osent

S’approprier les choses

Encore moins les gens

Ceux qui veulent bien n’être

Qu’une simple fenêtre

Pour les yeux des enfants

Ceux qui sans oriflamme

Et daltoniens de l’âme

Ignorent les couleurs

Ceux qui sont assez poires

Pour que jamais l’histoire

Leur rende les honneurs

J’aime leur petite chanson

Même s’ils passent pour des cons

J’aime les gens qui doutent

Mais voudraient qu’on leur foute

La paix de temps en temps

Et qu’on ne les malmène

Jamais quand ils promènent

Leurs automnes au printemps

Qu’on leur dise que l’âme

Fait de plus belles flammes

Que tous ces tristes culs

Et qu’on les remercie

Qu’on leur dise, on leur crie :

“Merci d’avoir vécu

Merci pour la tendresse

Et tant pis pour vos fesses

Qui ont fait ce qu’elles ont pu”

Lamento político 1: Os salários nos sectores público e privado em Portugal e na UE

Zé Povinho. Notícias ao Minuto: https://www.noticiasaominuto.com/cultura/584731/museu-bordalo-pinheiro-faz-100-anos-e-ze-povinho-continua-atual

Com a minha ingenuidade natural, acredito que este artigo, contanto denso e extenso, pode ser do seu interesse.

Em conversa por videoconferência com o meu rapaz mais velho emigrado na Holanda, brotou a seguinte intuição: “um dos maiores problemas de Portugal reside na disparidade entre os salários do sector público e do sector privado: a diferença é abismal ao contrário de vários países da Comunidade Europeia em que é mínima, quando não inversa”. Costumam enraizar-se estas conjeturas “espontâneas” em conhecimentos e indícios difusos que levedam na cave da consciência. A intuição estimula a curiosidade: pede pesquisa, confirmação ou infirmação.

Encontrei o artigo “Salaires et emploi dans les secteurs public et privé. Différences et interactions”, da autoria de Jake Bradley, Matt Dickson, Fabien Postel-Vinay & Hélène Turon, publicado na Revue Française de Économie (2016/1 Volume XXXI, p. 65-109). A análise fundamenta-se na “base de dados fornecida pelo European Community Househol Panel, [que abrange países tais como] a Alemanha, a Espanha, a França, a Itália, a Holanda e o Reino Unido”. Deste estudo, retenho dois apontamentos:

                – “O prémio [a diferença] salarial no sector público é positivo em média em todos os países da nossa amostra. Em França, este prémio eleva-se a 14% do salário. Varia desde alguns pontos do logaritmo na Alemanha, na Holanda e na Itália (4,9 e 10 respetivamente), até níveis mais elevados na Grã-Bretanha (13%) e na Espanha (31%). Por outro lado, a variância destes dados salariais é maior no sector privado do que no sector público em todos os países do nosso estudo” (p. 73). Coloca-se, de imediato, a pergunta: Portugal de quem se aproxima? Da Alemanha ou da Espanha?

                – Esta diferença direta deve ser relativizada em função dos fatores que a condicionam, por exemplo, a qualificação dos trabalhadores. “Os empregados do sector público têm, em média, níveis de educação mais elevados do que os do sector privado. O painel europeu ECHP inclui uma medida de educação padronizada segundo a classificação ISCED2 que permite comparar a distribuição de capital humano entre sectores e países, em termos de repartição, em três categorias: “elevado”, que corresponde a todos os tipos de educação terciária, “médio” que corresponde à conclusão de estudos secundários (posteriores à idade limite da escolaridade obrigatória) e “baixo” que corresponde a estudos inferiores à conclusão do secundário (…) A primeira categoria (capital humano elevado) representa cerca de um quarto do emprego global em França, Inglaterra, Alemanha e Holanda. Esta proporção representa um terço do emprego em Espanha e apenas 10% na Itália. Observa-se a maior variação de um país para o outro quando se trata da terceira categoria (capital humano baixo). O valor varia entre 10% na Alemanha e 43% em Espanha. Em todos os países, o sector público assume uma proporção maior de trabalhadores com capital humano elevado. Isto é particularmente verdadeiro no caso da Espanha onde esta proporção é o dobro no sector público relativamente ao sector privado. [Esta maior qualificação dos trabalhadores do sector público] “contribui para a existência de um prémio (“diferença”) “aparente” de salários entre os dois sectores (…) Os resultados mostram que o “verdadeiro” prémio do sector público em matéria de salários instantâneos é fortemente reduzido em relação ao prémio aparente: em França, reduz-se a 3% (contra os 14% do prémio aparente), o que significa que o essencial da diferença de salários entre sectores reflete, de facto, efeitos de composição. Os empregos oferecidos pelo sector público em matéria de salários instantâneos [sem moderação] requerem qualificações e uma experiência que convocam mecanicamente os rendimentos mais altos, sem que, portanto, o sector público pague mais do que o sector privado, permanecendo tudo o resto igual, uma vez que o prémio verdadeiro se reduz a 3%. Nos demais países, este prémio verdadeiro cifra-se em 3% na Grã-Bretanha, 11% na Espanha e -4% na Holanda” (pp. 74-75). Ressalvando a Espanha, para qualificação igual, as diferenças efetivas de salário entre os sectores público e privado são ínfimas. Na Holanda, o salário médio efetivo é, aliás, maior no sector privado do que no sector público.

Qual é a situação em Portugal?

Quem procura quase sempre alcança. Encontrei o artigo “Diferenças salariais entre os setores público e privado no período que antecedeu a adoção do Euro: uma aplicação baseada em dados longitudinais”, de Mário Centeno, ex-ministro das finanças e atual governador do Banco de Portugal, em coautoria com Maria Manuel Campos (Banco de Portugal. Boletim Económico. Inverno 2011, pp. 55-70). “A informação utilizada baseia-se [também] nos dados do Painel de Agregados Familiares da Comunidade Europeia (PAFCE), que cobre os países da EU-15 entre 1993 e 2000” (p. 56).

No gráfico 1, com as diferenças (prémios) “aparentes” entre os salários médios por hora, em euros, entre os sectores público e privado, sem atender à respetiva composição, mormente em termos de qualificações, verificamos que existe, globalmente, uma variação significativa favorável ao sector público. As diferenças são expressivas sobretudo nos países, perdoe-me Deus, etiquetados como PIIGS: 36.6%, em Portugal; 33,5%, na Irlanda; 31,7%, na Grécia; 26,8%, na Espanha; e 17,2%, na Itália. Nos restantes países, as diferenças são menores, entre 6,9%, na Áustria, e 9,1% na Alemanha, revelando-se mínimas na França (1,8%) e na Finlândia (2%). (Pode carregar no gráfico para aumentar a imagem).

Fonte: Painel PAFCE. A partir de Mário Centeno e Maria Manuel Campos, “Diferenças salariais entre os setores público e privado no período que antecedeu a adoção do Euro” (Banco de Portugal. Boletim Económico. Inverno 2011, pp. 55-70).

O artigo de Jake Bradley et alii mostra quanto estas variações aparentes podem ser enganadoras porque escondem a interferência decisiva de outras variáveis, nomeadamente a qualificação dos trabalhadores. Para controlar essas variáveis, neutralizar o seu efeito, Mário Centeno e Maria Manuel Campos socorrem-se de uma metodologia de análise de dados complexa que contempla, para além da escolaridade, entre outros, o género, a idade e a antiguidade. O gráfico 2 apresenta os resultados obtidos para o ano 2000.

Fonte: Painel PAFCE. A partir de Mário Centeno e Maria Manuel Campos, “Diferenças salariais entre os setores público e privado no período que antecedeu a adoção do Euro” (Banco de Portugal. Boletim Económico. Inverno 2011, pp. 55-70).

Com base nestes resultados, a leitura de Mário Centeno e Maria Manuel Campos é mais mitigada do que a avançada por Jake Bradley et alii:

“A evolução do diferencial (condicional às características observáveis) é semelhante à obtida para o diferencial bruto (…) mas o respetivo nível é – em alguns casos consideravelmente – mais baixo. Este facto sugere que, embora os melhores atributos de capital humano evidenciados pelos funcionários públicos expliquem parcialmente o diferencial de salários entre os dois setores, uma parte não-negligenciável permanece atribuível a um efeito puro do setor. Na maioria dos países na amostra este efeito é favorável aos funcionários públicos e representa um prémio salarial, mas os resultados obtidos para os vários países são bastante díspares” (p. 63).

Os diferenciais médios mais elevados em 2000  dizem respeito a Portugal (19.7%), Irlanda (20,5%) e Grécia (18,2%). No extremo oposto, a Áustria aproxima-se do “empate”, enquanto que a França (-3,2%) e a Finlândia  (-1,6) alcançam diferenciais invertidos.

Esta discrepância de leituras não é, porém, anómala. A análise de Jake Bradley et alii não inclui nem Portugal, nem a Grécia, nem a Irlanda, o que introduz um enorme impacto ao nível da variação dos resultados.

À luz destes números, que concluir acerca de Portugal?

A estória do vaso meio cheio versus meio vazio é, aqui, mais complicada. Assevera-se o salário médio substancialmente maior no sector público ou substancialmente menor no sector privado? Qual é o padrão? O salário do sector público ou o salário do sector privado? Devem os salários do sector público descer e/ou os salários do sector privado subir? Deixo a resposta ao critério de cada um. No meu entendimento, devem subir ambos, porventura mais no sector privado. Dos dez países contemplados, Portugal é aquele que se destaca com os salários médios mais baixos tanto no sector público como no sector privado (ver gráfico 1). No sector público, o salário médio da Irlanda é quase três vezes superior ao de Portugal (16,4 contra 5,3 euros por hora); no sector privado, ultrapassa o triplo (10,9 contra 3,4 euros por hora).

Fechado este capítulo sobre os diferenciais dos salários, muito me satisfaria dispor, agora, da informação respeitante aos diferencias dos lucros entre estes mesmos países. Se o conhecimento dos diferenciais efetivos de salários é relevante e oportuno para apreciar as propostas de políticas salariais, o conhecimento dos diferenciais efetivos dos lucros não resulta menos importante para apreciar as propostas de políticas fiscais.

Desigualdades desiguais

Quino.

Género, raça, etnia, território, idade, política, capital social, capital físico, nacionalidade, língua, saúde, profissão, migrações, rendimentos, educação, beleza, gosto… Um sem fim de fatores de desigualdade social. Cada um com a sua capacidade de mobilização. Existe uma desigualdade na luta pela igualdade. Há fatores mais desiguais que outros. Uma lista de anúncios pela igualdade revela que existem fatores quase ausentes enquanto que outros sobrecarregam lista.

O anúncio indiano The Divide, da Paytm, propõe um dispositivo engenhoso para mapear as desigualdades de género. O resultado não engana.

Marca: Paytm. Título: The Divide. Agência: Dentsu Impact. Direção: Ruchi Narain. Índia, março 2021.