Fábula das formigas sabichonas

A versão original desta fábula foi publicada no jornal ComUm online: Fábula comUM. Este texto apenas lhe acrescenta as ilustrações e um ou outro pequeno complemento.
FÁBULA DAS FORMIGAS SABICHONAS
Naquele tempo, as formigas gostavam de maçãs, o fruto da ciência. Eram formigas sabichonas. Um dia, estavam no pomar, nos ramos das árvores, quando soou uma voz de trovão: “Chegou a hora de pôr termo ao caos original, de vos distinguir e hierarquizar”. Quem assim falava era o Grande Manitú Fórmico: “Aquelas que, neste momento, estão a comer maçãs pequenas valem menos (1/40) do que aquelas que estão a comer maçãs médias (1/20) e ainda menos do que aquelas que estão a comer maçãs grandes (1/10). Esta nova nomenclatura de castas (n.c.) ditará o sustento que providenciarei a cada grupo. Se o orçamento for de 700 moedas, 400 moedas serão pelas formigas das maçãs grandes, 200 pelas formigas das maçãs médias e 100 pelas formigas das maçãs pequenas”. E as formigas acataram a vontade do Grande Manitú Fórmico. Passaram-se anos e anos, os formigueiros, entretanto, mudaram, mas a palavra manteve-se, cada vez mais abstracta mas com a força simbólica acrescida de uma letra viva de uma língua morta.
As formigas eram trabalhadoras e organizadas. As formigas sabichonas assumiam várias missões: ensinavam as formiguinhas aprendizes, exploravam os arredores, apoiavam a comunidade e desempenhavam tarefas administrativas. Sempre no respeito da nomenclatura de castas fixada pelo Grande Manitú Fórmico. Ensinavam as formiguinhas por turmas. Numa dada turma, por exemplo, com quarenta aprendizes, se a formiga sabichona pertencesse à casta das maçãs pequenas, justificava-se apenas uma formiga mestre. Mas, para ensinar o mesmo às mesmas 40 formiguinhas, já eram necessárias duas formigas mestres maçãs médias, número que subia para quatro no caso das formigas mestres maçãs grandes.
Não era raro as diferentes castas de formigas sabichonas colaborarem na educação de uma mesma falange de um mesmo carreiro de formiguinhas aprendizes ou, para ser mais técnico, partilharem a mesma unidade de sabedoria fórmica. Do ponto de vista das formiguinhas aprendizes, era uma experiência estranha. Consoante a casta do mestre (grande, média ou pequena maçã), assim as formiguinhas assumiam valores distintos. Pareciam pisca-piscas. Ora inflacionavam, ora deflacionavam. Quando a formiga mestre era uma formiga sabichona maçã pequena, a falange de formiguinhas aprendizes encolhia-se que nem um caracol. Quando a formiga mestre era uma formiga sabichona maçã grande, a mesma falange nem cabia na paisagem. Lembravam a Alice no País das Maravilhas a mingar e a crescer consoante os efeitos da mezinha do Grande Manitú Fórmico. Destes prodigiosos efeitos dependia o sustento das diversas castas das formigas sabichonas, bem como o provimento dos tão prezados lugares cativos no quadro da sabedoria fórmica. Por outro lado, as formiguinhas aprendizes adquiriam consciência de que o seu peso no universo da sabedoria dependia da origem das respectivas formigas mestres. O que muito as confundia. Parecia uma espécie de milagre da multiplicação condicional dos mestres. E os milagres não se explicam, sobretudo quando não se vêem. E muitas formiguinhas aprendizes não os viam nem sequer imaginavam. Desconheciam quanto valiam no rateio da sabedoria fórmica.
A nomenclatura de castas é um prodígio permanente. As formigas praticavam desporto, o que as ajudava a manter a forma. Era um regalo assistir aos jogos de futebol entre clubes de diferentes castas. Quando jogavam as formigas maçãs pequenas contra as formigas maçãs médias, alinhavam 11 contra 22; no caso das maçãs grandes, alinhavam 11 contra 44. E se, competição por competição, em vez de futebol fossem eleições? As formigas sabichonas teriam inventado a democracia em plano inclinado.
As formigas eram racionais. Quando os preceitos da nomenclatura de castas previam duas ou, até, quatro formigas sabichonas para uma unidade de sabedoria fórmica, nem todas a ministravam, dedicando-se as sobrantes a outras tarefas tais como explorar os arredores, apoiar a comunidade ou ocupar-se da gestão. Todas estas actividades eram alvo de avaliação, sendo corrente o ensino não ser a dimensão mais relevante. O que significa que a desigualdade inerente à nomenclatura de castas se alastrava, como um fractal que se avoluma, aos vários domínios de missão das formigas sabichonas.
Os tempos eram de rigor e exigência. Quando alguém não sabia que dizer, proclamava “excelência”, e logo tinha o entusiasmo do auditório garantido. Estava em voga um novo ofício: o dos avaliadores, mais conhecidos no formigueiro como Xamãs de Pele de Alpaca. Tinham e seguiam critérios que aplicavam a todos por igual. Como afirmou uma célebre formiga sabichona, “conseguiam a medida de quase tudo e a relevância de quase nada”. Pouco importava que as entidades avaliadas se diferenciassem no que respeitava a condições, recursos ou oportunidades. Tais contingências não cabiam na imparcialidade burocrática. Uma equipa tem oitenta formigas sabichonas de maçã grande? Outra tem vinte formigas sabichonas de maçã pequena? Pois, em termos ideais, rezam os parâmetros que devem render o mesmo com a mesma qualidade. Que se penitencie a formiga sabichona que sustentava que “sem igualdade de condições, não há igualdade de oportunidades”! E sem igualdade de oportunidades, não há igualdade de resultados. Aplicar a todos por igual a insuspeita grelha arbitrária. Cortar a direito com o gládio da certeza. Hierarquizar o que já está hierarquizado. Ser profeta criador. Separar o trigo do joio, as maçãs grandes das maçãs pequenas. Alimentar o fogo da ilusão e da violência simbólica. O que estava em causa era indiscutível: a reputação de todos os formigueiros do reino. As conclusões e as recomendações consubstanciadas nos relatórios dos Xamãs Pele de Alpaca eram, assim, tão taxativas quanto previsíveis. Começavam e terminavam com as seguintes sentenças: 1) para a consolidação e a competitividade do formigueiro, importa que as formigas sabichonas de maçã pequena emagreçam tornando-se formigas sabichonas de maçã ainda mais pequena; 2) as formigas sabichonas de maçã ainda mais pequena devem juntar-se umas às outras para parecerem maiores. A avaliação promovida pelos Xamãs de Pele de Alpaca era a cereja no cimo do bolo da nomenclatura de castas concebida pelo Grande Manitú Fórmico.
Foi uma velha formiga sabichona de maçã pequena quem me contou estas maravilhas do formigueiro. Consta que, uma noite, após as aulas da formação pós-laboral, enrolou o cansaço nos lençóis e apagou a esperança.
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