O aperto de mão em tempos de pandemia

A publicidade não está imune ao coronavírus. Multiplicam-se os anúncios que aludem à pandemia. Com mais ou menos propósito. Nalguns casos, é preciso algum esforço para descobrir a ligação. Seleccionei dois anúncios em língua portuguesa. O primeiro, brasileiro, Keep your distance, da Universidade do Futebol, assinala como um gesto, a recusa do aperto de mão, pode mudar de sentido, de feio para bom, de ofensa para consciência, consoante o contexto. O segundo, português, It’s Victor Fault, da Lobby, inspira-se na origem, presumivelmente vampírica, do vírus. Dois vampiros conversam sobre as vantagens e as desvantagens do coronavírus. A agência aproveita para fazer auto-promoção.
Lição de moral
O anúncio The Book, do United Overseas Bank, propõe uma comovente lição de moral: 1) não devemos apropriar-nos do que pertence a outrem; 2) o valor sentimental suplanta o valor pecuniário; 3) esta sabedoria deve passar de pais para filhos. Apostado no valor da honestidade, o anúncio lembra as fábulas de Esopo e de La Fontaine. Lembra, também, as histórias dos livros da escola primária: A Carochinha e o João Ratão, o rato do campo e o rato da cidade; São Pedro e a ferradura; as unhas dos candidatos a emprego e outros ensinamentos do género. A retórica das boas maneiras prosseguia no ciclo preparatório com uma disciplina chamada, creio, civilidade.
De pé, colados às carteiras, olhos postos no poder, entoávamos as nossas cantorias:
“Vamos cantar com alegria
E começar um novo dia
Para nós o estudo só nos dá prazer
E faremos tudo, tudo para aprender.
Não encontrei a letra desta canção na Internet. Creio que não a sonhei. Cantar, não a canto, que espanto o gato. Mas, ideologias à parte, não convém apagar a memória que à memória pertence. No que me respeita, vou compassar uma nova cantiga a caminho da Universidade: vamos cantar com alegria e começar um novo dia…
Marca: United Overseas Brank – UOB. Título: The Book. Agência: BBH (Singapura). Singapura, Fevereiro 2018.
Quatro patas e uma cauda

La Fontaine
“Recorro aos animais para ensinar os homens” (Jean de La Fontaine, Dedicace a Monseigneur Le Dauphin, Fables, Livre Premier).
A Eduarda enviou de Bruxelas o anúncio Wiener Stampede, da Heinz Ketchup, do Superbowl 2016. O Superbowl é a final da liga de futebol americano, o evento desportivo com maior audiência nos Estados Unidos e o segundo a nível mundial (ultrapassado pela final da liga dos campeões da UEFA). A emissão de um anúncio de 30 segundos pode custar 5 milhões de dólares. São “anúncios de topo”. O anúncio Wiener Stampede, da Heinz ketchup, apresenta uma debandada de hot dogs com quatro patas. O nosso entusiasmo com estas correrias colectivas deve envolver algum arquétipo tribal guerreiro. De qualquer modo, funciona. Acrescento um segundo anúncio, também da Superbowl, Doritos Dogs, da Doritos, que destaca a astúcia e a persistência caninas.
Marca: Heinz. Título: Wiener Stamped. Agência: David / Miami. Direcção: Jeff Low. USA, Janeiro 2016.
Marca: Doritos. Título: Doritos dogs. Agência: Direcção: Jacob Chase. USA, Novembro 2015.
Mais real do que o real
“Je me sers des animaux pour instruire les hommes” (Jean de La Fontaine).
A Teresa, antiga colega na Universidade, decidiu prosseguir carreira no México. Agradeço-lhe o vídeo dos anúncios Bel été, de Nicolas Deveaux para a France 3.
Nicolas Deveaux é um jovem talentuoso, graduado, em 2003, pela Escola Superior de Infografia “Supinfocom”. Iniciou no mesmo ano a sua carreira de realizador. Tornou-se reputado pelas curtas-metragens e pelos anúncios surrealistas com animais “mais reais do que o real”. Palpita-me que Salvador Dali não se importaria de assinar alguns destes trabalhos. Permito-me seleccionar alguns vídeos:
– Uma série de sequências curtas com animais para a France 3: Bel été (desde 2003);
– “7 tonnes 2”, uma curta metragem com um elefante num trampolim (2004);
– “5m80”, um anúncio espectacular, para a Orange (2013), com girafas que mergulham, acrobaticamente, numa piscina (ver http://tendimag.com/2013/05/22/girafas-na-piscina/);
– O anúncio, Wintertale, para a Cartier (2014).
Marca: France 3. Produção: Cube Créative. Direcção: Nicolas Deveaux. Desde 2003.
“7 tonnes 2”. Produção: Cube Créative, Direcção: Nicolas Deveaux. 2004.
Marca: Cartier. Título: Winter Tale 2014, Direcção: Nicolas Deveaux. 2014.
Correr sentado
A publicidade anda zoófila. “A lebre e a tartaruga” é uma fábula de Esopo (séc. VI a.C), retomada por La Fontaine, no século XVII, e pela Mercedes, no século XXI. Cada versão propõe a sua moral.
Moral de Esopo: “Quem segue devagar e com constância sempre chega à frente”.
Moral de La Fontaine: “De nada serve correr, é preciso partir a tempo”.
Moral da Mercedes: “Correr sentado descansa as pernas”.
Marca: Mercedes. Título: Fable. Agência: Merkley + partners (New York). Direcção: Robert Stromberg. USA, Janeiro 2015.
Amai-vos uns aos outros
Este anúncio da Freeview lembra-me a gata. Os pássaros, os ratos, as lagartixas e as moscas morrem de amores. E trá-los para casa para a família os abençoar.
Uma gata muito livre e muito sábia, que costuma dar alguns conselhos enquanto se ajeita no colo:
– Não peças ao Estado: entras num labirinto e sais num pântano.
– Se o Estado te pede um trabalho, olhos de gato e pernas de rato. O negócio, só por milagre, não resulta em ruinoso investimento.
– Quando comunicas, sabe qual é o teu público. Se local, comunica para os locais; se nacional, para os nacionais, se estrangeiro, para os estrangeiros. À partida, nenhum destes públicos vale mais que o outro. Quando muito, pode ou não ser adequado aos teus propósitos.
– Quando estudas e comunicas o local, é, normalmente, o local quem paga. Quando estudas e comunicas o nacional, é, normalmente, o nacional quem paga. Quando estudas e comunicas o estrangeiro, quem é que paga? Nenhuma destas três fontes deve secar as outras. E qual é o retorno? Não repitas estas perguntas. Serás considerado populista ou “terrorista”. Há quem gaste o dinheiro do povo e não tenha que prestar contas.
– Evita ser um eunuco linguístico. Na tua terra, na tua cultura, com a tua gente, fala a tua língua. Repara no teu blogue: escrito em Português, é acedido por 21,7% de internautas provenientes de Portugal, 37,8%, do Brasil e 40,5% de países não lusófonos. Como seria se fosse escrito em inglês? Não sei como seria, mas não seria certamente o teu blogue. Se calhar, seria o blogue de um conde andeiro qualquer.
– Não existe uma hierarquização? É velha a tendência para inclinar a escada para o lado que convém. De preferência, com a ajuda do vento. Em Portugal, há muitos cataventos.
Já agora, termino com uma brincadeira, com uma farsa: um dia virá em que os nossos nomes serão convertidos para língua estrangeira; será mais fácil dar-nos ordens!
Palavras de uma gata mimada que não exporta pássaros, nem ratos, nem lagartixas, nem moscas. Nem sequer, pêlos.
Marca: Freeview. Título: Cat and Budgie Love. Agência: Leo Burnett. Direcção: Ne-O. UK, Fevereiro 2014.
Galinha
Este anúncio argentino apresenta uma nova versão da fábula de Esopo “A galinha dos ovos de ouro”. Só que o ovo é, agora, uma garrafa. Gosto de galinhas. Em francês, ma poule (minha galinha) é uma expressão de afecto. Em Portugal, “galinha choca” aproxima-se do insulto. Saussure diria que a palavra poule em francês e a palavra galinha em português não têm o mesmo valor. Não se prestam ao mesmo.
Marca: Andes Barley. Título: The miraculous hen. Agência: Delcampo Saatchi & Saatchi. Direção: Agustin Alberdi. Argentina, Outubro de 2013.
Fábula das Abelhas
Em 1714, Bernard de Mandeville escreve a Fábula das Abelhas: ou, Vícios Privados, Benefícios Públicos, um texto tão inovador quanto polémico: se cada um se orientar pelos seus próprios interesses, acabará, no conjunto, por concorrer para o bem comum. Trezentos anos depois, a apicultura continua a aguilhoar os nossos espíritos: se cada abelha contribuir com uma pequena excreção de cera, o resultado pode ser uma maravilha tecnológica. Um belo anúncio de animação da Toshiba.
Marca: Toshiba Kira. Título: Bee. Agência: Goodness Mfg. Direção: Jens Gehlhaar. EUA, Julho 2013.