O lado feio
Eva quase asfixiou Adão com um caroço de maçã. Deus condenou ambos ao trabalho e à morte. O filho Abel mata o irmão Caim. A humanidade é, desde o início, semente de violência. Hegel assinala-o e Freud enfatiza-o. Norbert Elias, que tanto estudou o autocontrole e o recalcamento da violência, duvida que seja domesticável. A violência arrebata-nos e enfeitiça-nos. À semelhança do sexo e da beleza, não conseguimos desviar o olhar da violência. Uma aflição e uma excitação permanentes. Na vida como no ecrã: nos telejornais, nos filmes, nos videojogos, nas ruas e nas casas. Urbi et Orbi.
O anúncio Couldn’t Be Less Nice, da Nike, convoca a violência, com os estereótipos do costume: a oscilação entre simpatia e agressividade; a figura do violento bom vizinho e amigo dos animais; e a profecia do vencido de que a força está do lado do inferno. O protagonista é uma versão do Alex, o vilão do Laranja Mecânica (1971). A própria música do anúncio convoca a banda sonora do filme. A abertura de O Barbeiro de Sevilha (1816), de Gioachino Rossini, condiz com a abertura de La Gazza Ladra (1817) e a abertura de Guillaume Tell (1829), do mesmo compositor, incluídas no filme Laranja Mecânica. Não deve ser por acaso. Do Dr. Mabuse (Fritz Lang, 1924) ao Dr. Hannibal Lecter (O Silêncio dos Inocentes, 1991), a violência está no meio de nós; é a nossa tara e o nosso isco.
Marca: Nike. Título: Couldn’t be less nice. Agência: Wieden+Kennedy. Direcção: Keith Mccarthy. Canadá, Dezembro 2017.
De casa até ao ringue, o percurso assemelha-se a um parkour. Por vias, desvios e atalhos, o protagonista supera obstáculos. As palavras que dizem o movimento são carregadas de sentido. O jogging, a caminhada, o deslize, a maratona e o parkour comportam praticantes com propriedades, disposições e valores distintos (ver Gonçalves, Albertino, “O desporto do nosso contentamento”, Boletim Cultural de Melgaço, nº1, 2002, pp. 127-161). Algumas oferecem-se como metáforas da mobilidade social: ascensão, rebaixamento, impasse; navegação, desvio, travessia; velocidade, deambulação; exploração; seguir, empatar ou abrir caminho… No parkour, o traceur faz carreiro onde este não existe. Supera e contorna obstáculos “por mares nunca antes navegados”. E alcança, mais rápido e por linhas travessas, o destino. O parkour lembra uma ideologia em voga, venerada, empolada e ensinada, inclusivamente, nas universidades: o “empreendedorismo”, herdeiro da “criação destrutiva”, de Joseph Schumpeter (Capitalismo, Socialismo e Democracia, 1942). Estou com uma ânsia de ter netos, só para lhes ler contos de empreendedorismo…
Blue October. Ugly Side. History for Sale. 2003.
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