Falar com as imagens

Há católicos que falam com as imagens dos santos. Mais, afigura-se-lhes que estes lhes respondem. Em casa, tenho um busto da República original. Herança de meu avô. Acontece-me falar com ela. Às vezes, tento dialogar. Perdeu o cocuruto. Não tem vida fácil. Gostava muito de lhe dedicar uma canção. Mas não sei cantar. Peço a outros. Por exemplo aos The Who.
As imagens interpelam-nos, o busto da República interpela-nos. Num século, perdeu o cocuruto. É vulnerável. A república é vulnerável.

O consumo da violência
A violência sempre acompanhou o homem. Diz-se que é bíblica. Uma égua do apocalipse. Ambivalente, provoca atração e repulsa. Não desejamos ser nem carrascos nem vítimas, mas assistimos ao espectáculo. A violência é ubíqua: aparece nos ecrãs, nas estradas, nas manifestações, nos atentados, nos tiroteios, na escola, no desporto e, até, dentro de casa. Ambivalentes e ambíguos, proibimos um anúncio com uma menina sentada numa ferrovia mas facilitamos o acesso às armas. Nos ecrãs, convivemos mais facilmente com a violência do que com o tabaco: nos livros e nas séries do Lucky Luke, a palhinha não substitui a pistola mas o cigarro. Maná ecránico, a publicidade encena e parodia a violência, em princípio gratuita, mas, presumivelmente, com custos.
Apetece “virar o bico ao prego”. Abraçar a contradição. Nos anos sessenta, apreciava-se os filmes violentos. As pessoas riam com as cenas violentas dos filmes Péplum (e.g., Hércules), de terror (e.g., O Exorcista, 1973), de guerra (e.g., O dia mais longo, 1962) ou western (e.g., Trinitá, cowboy insolente, 1970; o filme é italiano, bem como os actores Terence Hill e Bud Spencer). No entanto, nenhum dos meus amigos se tornou serial killer. Autores como Georg F. W. Hegel, Friedrich Nietzsche, Sigmund Freud, Georges Bataille ou Lewis A. Coser consideram a violência fundacional e funcional. Na Idade Média, acreditava-se que a contenção excessiva da violência podia desembocar numa explosão de violência. Recomenda-se a catarse, a excitação (Norbert Elias) e a homeopatia (Michel Maffesoli). A violência existe, mas coloquem um filtro, um véu ou óculos para não se ofuscar.
O gnomo, a gula e a ira

O anúncio tailandês The Box, da marca Voiz Cracker, é um presente criativo cheio de boa disposição. Duração longa, pouca história, repetida com variantes, interpretada por “gnomos” sósias, numa espécie de paródia da magia. Receita apropriada para a destilação de um humor insólito, que namora o pecado. Neste caso, dois pecados capitais, a gula e a ira, tudo por causa de uma bolacha.
Gula e violência
A observação de anúncios ensina-nos o que se já sabe: 1) tudo pode servir para motivo de um anúncio; 2) entre o conteúdo do anúncio e a natureza do produto pode não existir relação; 3) há conteúdos que se prestam a tudo, por exemplo, o sexo e a violência. O anúncio Nacho Fight, da Taco Bell, convoca a violência (carnavalesca ou não). O anúncio sugere, porém, uma sentença digna da Arte da Guerra de Sun Tzo: o que faz a guerra também faz a paz; basta passar da carência à abundância.
A fibra do guerreiro

O filósofo grego Filóstrato (séculos II-III d.C) escreve no Tratado sobre a ginástica:
“Estes antigos atletas tomavam banho nos rios e nas fontes, dormiam no duro, uns sobre peles, outros sobre ervas que cortavam nas pradarias. Os seus alimentos consistiam em maza e em pão mal cozido e não fermentado; alimentavam-se ainda de carne de boi, de touro, de bode e de antílope. Untavam-se com óleo de azeitonas vulgares ou de outras espécies de azeitonas; permaneciam assim resguardados de doenças e retardavam a devastação da velhice. Alguns participaram nos confrontos durante oito olimpíadas, outros durante nove, e tornaram-se hábeis no manuseamento de armas pesadas. Batiam-se como se fossem donos de uma fortaleza, e não se mostravam inferiores nesta espécie de combates; eram julgados dignos do prémio da valentia e de troféus; faziam da guerra um exercício para a ginástica, e da ginástica um exercício para a guerra” (Philostrate, Traité sur la gymnastique, Paris, Librairie de Firmin Didot Frères, Fils et Cie, 1858).
Norbert Elias fala em etos guerreiro (Elias Norbert. Sport et violence. In: Actes de la recherche en sciences sociales. Vol. 2, n°6, décembre 1976, p. 8; pdf anexo). Mas, agora como dantes, nem todos os desportos pressupõem disposições guerreiras.
“Em suma, desta breve comparação entre as características dos desportos mais populares e dos desportos mais novo-burgueses ressalta uma oposição paradigmática entre ascese (áskësis) e estese (æsthësis). Enquanto que muitas das práticas mais típicas dos desportos populares parecem movidas por um éthos guerreiro as dos desportos novo-burgueses remetem mais para o éthos do mestre ou do artista (Gonçalves, Albertino, Imagens e Clivagens, Porto, Afrontamento, 1996, p. 114); pdf anexo).
O anúncio The only way is through, da Under Armour, é uma ilustração concisa do etos guerreiro: esforça-te, castiga-te, resiste, treina, concentra-te, supera-te, enfrenta e vence. Under armour. Mas, ao contrário das olimpíadas da antiguidade, não podes, em princípio, nem estropiar nem matar o adversário.
Estética da guerra

Bruno Aveillan é o Bernini da publicidade. Habituou-nos a vídeos belos, lentos e poéticos. Não é o caso deste “Eternels”, para o parque temático Puy du Fou, o segundo mais visitado em França a seguir à Disneylândia. O anúncio é brutal, acelerado e fragmentado. A sucessão de cenários lembra o anúncio Handle Doors, do Ford S-Max (incluído no vídeo A Construção do Impossível). De violência em violência, o anúncio regride desde as trincheiras da I Guerra Mundial até a um circo romano, para regressar no fim ao início: uma mulher despede-se do homem compartilhando uma fotografia rasgada, presente em todos os episódios. Bruno Aveillan, mais que um contador, é um encantador de histórias.
O anúncio de Bruno Aveillan Dolce Vita, para a Gaz de France, fecha a sequência de anúncios associada à comunicação “A Construção do Impossível” (2009), que versa sobre o espaço nos anúncios publicitários. Creio que ainda não a coloquei no Tendências do Imaginário. Como nenhum tesourinho deprimente merece aparecer só, acrescento o artigo correspondente: “Como nunca ninguém viu – O olhar na publicidade” (in Martins, Moisés de Lemos et alii, Imagem e Pensamento, Coimbra, Grácio Editor, 2011, pp. 139-165).
O pacifismo das coxas de frango

Nada supera uma coxa de frango! Nem sequer as de Hollywood. Conciliam inimigos, protegem os fracos, resgatam os vencidos, evitam a guerra e impedem o pecado original. Artes mágicas numa viagem no tempo de um homem banal. A ser verdade, a coxa de frango merece o prémio Nobel da paz ou, no mínimo, o rótulo da Chicken Licken.
O espectáculo da violência

Quem só vive de ideias alheias é um cemitério do pensamento (AG).
No tempo em que escrevia artigos para revistas, classifiquei o futebol e o rugby como “simulacros de batalha” (“O desporto do nosso contentamento”, 2002, acessível em https://tendimag.com/2011/10/30/o-desporto-do-nosso-contentamento/). Seguia as pegadas de Johan Huizinga, Roger Caillois, Jean-Marie Brohm, Pierre Bourdieu e Norbert Elias.
Peguei na ideia, coloquei-a numa garrafa (de madeira) e lancei-a ao estuário. Afastou-se, aproximou-se, afastou-se aproximou-se, até que desapareceu. Surgem, entretanto, outras garrafas que lembram a minha. É o caso, ilustrativo, do anúncio Be Their Armour, da O2 Sports:
At O2, we’ve always believed that the power of support can help England overcome any obstacle, and your support during this autumn is no different. It acts like armour for the players; every tweet is another link of chainmail, every roar of support is another piece of armour and together we can make them stronger.
As flores do mal

Não procurem mais o meu coração, as bestas comeram-no (Charles Baudelaire. Les Fleurs du Mal. 1857).
Que besta devo adorar ? Que imagem santa atacar ? Que corações destroçarei? Que mentira devo sustentar? Em que sangue marchar ? (Arthur Rimbaud. Une Saison en enfer. 1873).
Somos filhos de Caim. O mal está arreigado na arqueologia do ser. Quem não pisou uma formiga? Quem não fez mal a uma mosca? Quem amou o próximo como a si mesmo? Não resistimos à maldade. Empolga-nos a crueldade nos cartoons, nos filmes, nos anime, nos videojogos e nas campanhas eleitorais. Os programas de informação mostram o mal e esquecem o bem. Cordeiros do demo, apascentamos a ruindade. Somos consumidores do mal.
O anúncio Ski, da Laca 5Star, brinda-nos com um cocktail do mal num cálice de expiação. “Uma explosão de sabores e texturas ». O mal sabe bem. À semelhança do anúncio ski, T-Rex, da Collective du Lait, faz parte de uma série de anúncios. Ensina que o mais fraco (tu e eu) resulta grotescamente vulnerável ao mal. Para concluir, o anúncio Dumb Ways to Die, da Metro Trains Melbourn, é uma ternura de dança macabra à moda do terceiro milénio.
O mal é uma tentação? Algo de bom deve ter! Recorrendo a línguagem suculenta de Thomas Müntzer, o monge revolucionário líder da Guerra dos Camponeses (1524-1525): o bem e o mal lembram “duas serpentes que fornicam em conjunto”. O bem e o mal dançam no mesmo baile. O mais avisado é aprender a « homeopatia do mal », a lidar com a “parte do diabo” (Michel Maffesoli). Até porque, a fazer fé na sabedoria popular, “há males que vêm por bem”.