Uma moeda e três corações

O anúncio chinês Change for good condiz com a tradição dos contos morais orientais. Dois rapazes irmãos amealham, com esforço, moedas com o objetivo de comprar um telemóvel para falar com a mãe distante. Prestes a conseguir, o mais novo perde o calçado. Gastam o dinheiro amealhado na compra de um par de sapatilhas. Desfaz-se o sonho do telemóvel. Mas o comerciante dá uma moeda de troco e altera o preço do telemóvel. O troco dá para comprar o telemóvel.
Nós, ocidentais, também temos lendas, com moedas, de elevado valor moral, por exemplo, a fábula com Jesus, São Pedro, uma ferradura, moedas e cerejas.
Carregue na imagem para aceder ao anúncio.

A Lenda da Ferradura
Quando ainda obscuro e desconhecido
Nosso Senhor andava na terra
Muitos discípulos o seguiam
– Que raras vezes o compreendiam,
Amava doutrinar as massas
Nas ruas amplas e nas praças,
Pois à face dos céus a gente
Fala melhor e mais livremente.
Ali, dos seus divinos lábios
Fluíam os ensinamentos mais sábios;
Pela parábola e pelo exemplo
Faziam de cada mercado um templo.
Certa vez quando, em paz e santidade,
Chegava com os seus a uma cidade,
Viu qualquer coisa luzir na estrada;
Era uma ferradura quebrada.
Disse a São Pedro com brandura:
– “Pedro, apanha essa ferradura!”
Porém São Pedro, no momento,
Tinha ocupado o pensamento
E absorto em êxtase profundo,
Sonhava-se o dominador do mundo,
Rei, papa, ou tal que se pareça.
Aquilo enchia-lhe a cabeça;
E havia de dobrar a espinha
Por uma coisa tão mesquinha?
Se fosse um cetro, uma coroa,
Mas uma ferradura à toa…
E foi seguindo, distraído,
Como se não tivesse ouvido.
Curvou-se Cristo, com doçura
Celeste, angélica, humilde,
E ergueu do chão a ferradura;
E quando entraram na cidade
Vendeu-a em casa de um ferreiro.
Comprou cerejas com o dinheiro.
Guardando-as, à sua maneira,
Na manga – em falta de algibeira.
Dali saíram por outra porta.
Fora a campanha estava morta;
Nem flor nem sombra; ao longe, ao perto
Era o silêncio, era o deserto,
Era a desolação; ardia,
Torrava, o sol do meio-dia.
Que não valia em tal secura
Um simples gole de água pura!
Nosso Senhor caminha à frente.
Deixa cair discretamente,
Furtivamente, uma cereja
Que Pedro apanha, salvo seja,
Com cabriolas de maluco.
A frutinha era mesmo o suco.
Outra cereja no caminho
Atira o Mestre de mansinho,
Que Pedro apanha vorazmente.
E assim por diante, não uma vez somente,
Fê-lo o Senhor dobrar a espinha
Tantas vezes quantas cerejas tinha.
Durou a cena um bom pedaço.
Por fim, disse o Senhor com ar prazenteiro:
– “Pedro, se fosses mais ligeiro
Não tinhas tido este cansaço.
Quem cedo e a tempo ao pouco não se obriga,
Tarde por muito menos se fadiga.”
(1797)
Johann Wolfgang von Goethe (1749-1832).