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Vida à distância

Samsung. The Awesome Product Adventure, abril 2022.

Cúmulo de grotesco, fantasia e magia, o anúncio The Awesome Product Adventure, da Samsung é, parafraseando Luc Boltanski (La souffrance à distance, 1994), uma paródia criativa e desenfreada de uma vida à distância refastelada num sofá ubíquo. A instalação Emoções Confortáveis da exposição Vertigens do Barroco, no Mosteiro de Tibães, em 2007, já convocava o fenómeno: chamava-se Emoções confortáveis. Esta género de paródia tem precedentes na própria publicidade, por exemplo, o anúncio chileno Digital Tv, da VTR CABEL TV (2008). Mas existe quem aprecie abandonar o sofá para desfrutar de outras vidas.

Marca: Samsung. Título: The Awesome Product Adventure. Agência: Wieden + Kennedy (Amsterdam). Direção: Keith Schofield. Reino Unido, abril 2022.
Marca: VTR CABEL TV. Título: Digital Tv. Agência: Lowe Porta Santiago. Direção: Cucho Olivares. Chile. 2008.

Uma moeda e três corações

Goethe

O anúncio chinês Change for good condiz com a tradição dos contos morais orientais. Dois rapazes irmãos amealham, com esforço, moedas com o objetivo de comprar um telemóvel para falar com a mãe distante. Prestes a conseguir, o mais novo perde o calçado. Gastam o dinheiro amealhado na compra de um par de sapatilhas. Desfaz-se o sonho do telemóvel. Mas o comerciante dá uma moeda de troco e altera o preço do telemóvel. O troco dá para comprar o telemóvel.

Nós, ocidentais, também temos lendas, com moedas, de elevado valor moral, por exemplo, a fábula com Jesus, São Pedro, uma ferradura, moedas e cerejas.

Carregue na imagem para aceder ao anúncio.

Anunciante: Tencent. Título: Change for good. Agência: Topic. China, Outubro 2020.

A Lenda da Ferradura

Quando ainda obscuro e desconhecido

Nosso Senhor andava na terra

Muitos discípulos o seguiam

– Que raras vezes o compreendiam,

Amava doutrinar as massas

Nas ruas amplas e nas praças,

Pois à face dos céus a gente

Fala melhor e mais livremente.

Ali, dos seus divinos lábios

Fluíam os ensinamentos mais sábios;

Pela parábola e pelo exemplo

Faziam de cada mercado um templo.

Certa vez quando, em paz e santidade,

Chegava com os seus a uma cidade,

Viu qualquer coisa luzir na estrada;

Era uma ferradura quebrada.

Disse a São Pedro com brandura:

– “Pedro, apanha essa ferradura!”

Porém São Pedro, no momento,

Tinha ocupado o pensamento

E absorto em êxtase profundo,

Sonhava-se o dominador do mundo,

Rei, papa, ou tal que se pareça.

Aquilo enchia-lhe a cabeça;

E havia de dobrar a espinha

Por uma coisa tão mesquinha?

Se fosse um cetro, uma coroa,

Mas uma ferradura à toa…

E foi seguindo, distraído,

Como se não tivesse ouvido.

Curvou-se Cristo, com doçura

Celeste, angélica, humilde,

E ergueu do chão a ferradura;

E quando entraram na cidade

Vendeu-a em casa de um ferreiro.

Comprou cerejas com o dinheiro.

Guardando-as, à sua maneira,

Na manga – em falta de algibeira.

Dali saíram por outra porta.

Fora a campanha estava morta;

Nem flor nem sombra; ao longe, ao perto

Era o silêncio, era o deserto,

Era a desolação; ardia,

Torrava, o sol do meio-dia.

Que não valia em tal secura

Um simples gole de água pura!

Nosso Senhor caminha à frente.

Deixa cair discretamente,

Furtivamente, uma cereja

Que Pedro apanha, salvo seja,

Com cabriolas de maluco.

A frutinha era mesmo o suco.

Outra cereja no caminho

Atira o Mestre de mansinho,

Que Pedro apanha vorazmente.

E assim por diante, não uma vez somente,

Fê-lo o Senhor dobrar a espinha

Tantas vezes quantas cerejas tinha.

Durou a cena um bom pedaço.

Por fim, disse o Senhor com ar prazenteiro:

– “Pedro, se fosses mais ligeiro

Não tinhas tido este cansaço.

Quem cedo e a tempo ao pouco não se obriga,

Tarde por muito menos se fadiga.”

(1797)

Johann Wolfgang von Goethe (1749-1832).

Telemóveis

Countdown

No filme Countdown, uma aplicação de telemóvel alerta as pessoas para o tempo que lhes resta de vida (ver trailer). O telemóvel é, deste modo, associado à ameaça e à morte. Não é o único vídeo em que o telemóvel possui uma aura fúnebre. Nos anúncios The Afterlife Bar, da Transport Accident Commission Victoria (2019: https://tendimag.com/2019/08/13/um-bar-do-outro-mundo/) e nos dois anúncios da AT&T, The Face of Distracted Driving (2018: https://tendimag.com/2018/05/28/o-discurso-do-morto/) e The Unseen (2016: https://tendimag.com/2016/09/12/distracao-fatal/), os falecidos contam como encontraram a morte devido ao abuso do telemóvel.

Countdown | Official Trailer [HD] | Now In Theaters

À perdição opõe-se à salvação. Nada de espantar! Como repete Moisés Martins, citando o poeta Holdërlin, “Lá onde está o perigo também cresce o que salva”. Do drama, saltamos para a apologia. O telemóvel Good Vibes app, do anúncio Caring for the Impossible, permite aos cegos, surdos e mudos comunicar. A espanhola Claro consegue, no anúncio Qué le dirías (https://tendimag.com/2014/12/22/telemovel-magico-novo-conto-de-natal/), conectar, graças ao telemóvel, familiares e amigos que não se encontravam há décadas. E, assim, de prodígio em prodígio.

Marca: Samsung. Título: Caring for the impossible. Agência: Cheil WW India. Índia, Outubro 2019.

Para além do drama e da apologia, existem outros estilos de anúncios com telemóveis. Por exemplo, a ironia, o humor e a fábula. A série de anúncios Les Dumas, da Bouygues Telecom, aposta no humor e na ironia. Nem drama, nem apologia, mas dentro e fora, com focagem variável e palavras que lembram Prévert. Os anúncios Les Dumas estrearam em 2012. O mesmo humor e a mesma ironia percorrem o anúncio Phone History, da Three (2018: https://tendimag.com/2018/10/21/parada-de-mitos/).

Marca: Bouygues Telecom. Título: Les Dumas et les portables. Agência : DDB (Paris). Direcção : Rudi Rosenberg. França, 2012.

Existem anúncios de telemóveis que são fabulosos. Polissémicos e com várias camadas de leitura. A estetização é cuidada. Imagens de sonho. Acresce a polissemia. Perfila-se uma ambiguidade nos cenários e nos comportamentos, que propicia uma espécie de currículo oculto. Os episódios do anúncio Real people, Real vacations, da Motorola, convoca pessoas absortas ao telemóvel nos locais mais maravilhosos e interessantes do planeta. Pressupõe-se que passam as férias mais atentos aos telemóveis do que aos locais que visitam. Que efeito produz este anúncio no público. As imagens, verdadeiras protagonistas, são esteticamente fantásticas. O alheamento das pessoas constitui uma nota de humor. Beleza e humor geram boa disposição, face a quem? Face à Motorola. Navegamos nas águas da fábula e da ilusão.

Marca: Motorola. Título: Real people, Real vacations. Agência: Ogilvy & Mather. Estados Unidos, Janeiro 2018.

O rabo do diabo

Sem para-quedas. De 24 a 28 de Junho as escolas municipais trabalharam com os alunos o tema de Combate ao uso de drogas. Prefeitura Municipal de Campo Magro.

Vós, que sois os ministros do nosso bem, livrai-nos de todo o mal! Da violência, do sexo, do álcool, do tabaco, da droga, da obesidade, dos maus pensamentos, do chupa-chupa e do sorvete. Um rosário de imagens feridas de prazer nefasto. Uma mesa mais pesada do que a mesa dos sete pecados mortais de Hieronymus Bosch. Quer-me parecer que a árvore do mal mais do que da ciência é do prazer. Deus não condenou Adão e Eva à ignorância mas ao sacrifício. Mais Eva do que Adão. Filhos de Adão, Filhas de Eva é o título de um livro João de Pina Cabral (1989). Somos todos filhos de Eva.

Galeria: Mal-aventurados

Pensei acompanhar este rosário de doze imagens com um requiem, funesto, ou com uma valsa, vital: o Lux aeterna (Requiem for a Dream), de Clint Mansell (https://www.youtube.com/watch?v=CZMuDbaXbC8); ou Sylvia, Intermezzo and Slow Waltz, de Leo Delibes (https://www.youtube.com/watch?v=rmOdU0o8Ke8). Como somos todos belas pessoas, escolhi Beautiful People, de Marilyn Manson.

Marilyn Manson. Beautiful People, Antichrist Superstar. 1996.

Um bar do outro mundo

Lega double face mask , D.R.CONGO. Old collection – Catawiki.

No além, existe um bar frequentado por mortos célebres, entre os quais Shakespeare, John Lennon, Frida Kahlo, a Princesa Diana, Che Guevara e Steve Jobs. Numa espécie de sessão de grupo, cada cliente revela a causa da sua morte. Chega a vez de um jovem, que, embaraçado, confessa que morreu “texting”, a teclar no telemóvel. “Estúpido”! Exclamam, em conjunto, os outros clientes. O vício é tão terrível que o jovem, mesmo morto, continua agarrado ao telemóvel. O anúncio The Afterlife Bar, da Transport Accident Comission, é criativo, consistente e incisivo. A realizadora tem 20 anos de idade.

Pelos vistos, o telemóvel nasceu com uma semente do mal. Socorre-nos o exorcismo mediático dos pecados e das ameaças que rondam os incautos. Mas o exorcismo coexiste com a celebração. O telemóvel é o maior maná, a maior pérola técnica, da história da humanidade. É acessível, mágico, adorado, disponível e fácil de consumir. Colmatou abismos, egoístas, lúdicos e comunicacionais, antes insuspeitos. Oferece-se, no entanto, como uma máscara bifacial: perfeito no geral, perigoso no particular; benéfico, por princípio, maléfico, por consequência.

Oportuno, o anúncio Netflix, da Bouygues Telecom, aponta soluções para contrariar o vício do telemóvel. A bateria e a televisão, por exemplo. O vídeo, que dura 90 segundos, assume-se como um jogo: contém 20 referências as séries Netflix. Enfim, existem pormenores que sensibilizam: Bella Ciao, uma das canções mais emblemáticas da resistência italiana durante a Segunda Grande Guerra.

Marca: Transport Accident Commission Victoria. Título: The Afterlife Bar. Agência: Taboo. Direcção: Alyssa De Leo. Austrália, Agosto de 2019.
Marca: Bouygues Telecom. Título: Netflix. Agência: BETC Paris. Direcção: Adrien Armanet. França, Julho 2019.

Telemóvel: O mundo na mão

World of Distraction Nissan Rogue. 2019

Os meus artigos mais lidos não são nem os mais bem escritos nem aqueles que têm conteúdo mais interessante; os meus artigos mais lidos são aqueles que têm um título mais apelativo e são publicados à hora, no dia e no canal certos.

Todas as sociedades cultivam as suas ameaças. Receios reais ou imaginários. Os judeus, no reinado de Don Manuel e no triunfo totalitário de Hitler. Os revisionistas, na era Estaline, e os comunistas, durante o Macarthismo. Hoje, as ameaças tendem a associar-se mais a objectos, eventualmente, técnicos. No pós-guerra, a bomba atómica era o quinto cavaleiro de Apocalipse. Nos anos sessenta, os cabos de mar perseguiam os biquínis nas praias. A televisão era a mãe de todas as alienações; o maço do tabaco, um caixão funesto em vala comum; a Internet, uma aranha pérfida à escala global; e, agora, os telemóveis, um malefício portátil generalizado.

Quino. Ni arte ni parte. Lumen.1982.

Face aos riscos dos telemóveis, existe a convicção de que urge fazer tudo e a sensação de que nada há a fazer. Situação propícia à inutilidade histérica do Estado. Por generalização abusiva, todo cidadão é um caso particular do geral. Esboce-se um “exemplo teórico”: Fulano faleceu ao engolir um telemóvel (notícia de primeira página); conclusão: todos somos passíveis de engolir um telemóvel (prognóstico); contra-ordenação preventiva: falar com o telemóvel a menos de um metro da boca é passível de multa; campanha: o telemóvel é um comestível fatal, mantenha-o longe do tubo digestivo.

Na época balnear, pior do que o telemóvel, só o peixe-aranha. Se for ao mar, vá e volte, mas sem telemóvel: pode electrocutar os caranguejos. Estou a brincar, mas a coisa manifesta-se séria; é, literalmente, a primeira vez que “temos o mundo na mão”!

“Canta, canta, amigo canta
Vem cantar a nossa canção
Tu sozinho não és nada
Juntos temos o mundo na mão!!!”
(António Macedo. Canta, amigo canta. 1974)

Em suma, se quer sobreviver à décima primeira praga, a praga dos teleles, conduza um Nissan Rogue, com música de Conan Osíris (Telemóveis, 2019). Afigura-se-me, contudo, que a praga dos telemóveis se pauta por um medo irónico. Menos drama, menos tragédia, menos profecia; mais humor, ambivalência, reflexividade e abertura dialógica.

Marca: Nissan Rogue. Título: World of Distraction. TBWAChiatDay (New York). Direcção: Tom Kuntz. Estados Unidos, Julho 2019.
Conan Osíris. Telemóveis (Lyric Video). Festival da Canção 2019.

Telemóvel Superstar. Parada de mitos

Não sei se o homem e a mulher são religiosos, mas adoram ídolos e símbolos. Até na cozedura do pão! O anúncio Phone History, da Three, comprova-o o valor dos ídolos e dos símbolos. O naufrágio do Titanic, a fome na pré-história, as esposas de Henrique VIII, a Serpente de Eva, o incêndio de Roma, Moisés no mar Vermelho, todos estes episódios teriam sido diferentes se, no seu tempo, existissem telemóveis. Nem roda, nem máquina a vapor. Glória! Graças ao telemóvel, vivemos uma viragem excepcional na história da humanidade. Vai mais uma paródia de um mito? O rei Don Sebastião, o Encoberto, foi finalmente descoberto graças ao GPS de um telemóvel. Estava à espera de um barco no Entroncamento.

O anúncio é criativo e o ritmo das sequências é admirável. Felizes as marcas que se expõem ao próprio humor.

Marca: Three. Título: Phone History. Agência: Wieden+Kennedy (London). Direcção: Ian Pons Jewell. Reino Unido, Outubro 2018.

 

A família, um valor tradicional

Ronald Inglehart and Christian Welzel, Modernization, Cultural Change and Democracy. 2005. page 63

Gráfico 01. Ronald Inglehart and Christian Welzel, Modernization, Cultural Change and Democracy. 2005. page 63

No final da Idade Média, acreditava-se que, na hora da morte, os moribundos reviviam os momentos mais marcantes de suas vidas. Esta crença não desapareceu. O anúncio Una vida por ver, da Movistar, operadora de telemóveis ibero-americana, é distinto. Não se trata de uma “revisão do passado” mas de uma “visão do futuro”, da vida que a morte amputou. Não é um rewind nem um forward, mas um retrocesso do futuro para o presente.

Que vida desperdiçou o jovem acidentado? Uma vida em família. Anos e anos, em companhia da mulher e da filha. Nem mais, nem menos. A família é encarada como um importante valor tradicional. Curiosamente, a cobertura da Movistar incide sobre um agregado de países latinos caracterizados, segundo Ronald Inglehart e Christian Welzel, pelo apego aos valores tradicionais (ver gráfico 01).

Marca: Movistar. Título: Una vida por ver. Agência: Young & Rubicam Santiago. Direcção: Diego Núñez Irigoyen. Chile, Setembro 2018.

 

Contacto à distância

Quino

Quino

Gregarismo humano: as pessoas têm tendência a fazer companhia a quem a tem; logo, a não fazer companhia a quem não a tem. Respeitamos a solidão.

Quem dera escrever como o Quino desenha. Um homem e uma mulher não param de falar ao telemóvel. Regressados a casa, permanecem em silêncio ou aproveitam o facto de estar juntos para cada um comunicar pelo telemóvel com outras pessoas. Estamos telemobilizados, formatados para o contacto à distância.

Se fosse o Quino, fazia dois desenhos: 1) uma série de ilhas, cada uma com uma pessoa a falar ao telemóvel; 2) um casal a dormir com a cabeça repousada em almofadas com forma de telemóvel. Como não sou o Quino, limito-me a partilhar anúncios publicitários. Existem muitos anúncios dedicados aos usos do telemóvel. Alguns, de consciencialização, encenam catástrofes, designadamente acidentes rodoviários. O motivo dos anúncios da Levi’s e da Durex afigura-se-me mais interessante e, porventura, mais grave: a insularidade afectiva do ser humano.

Este artigo nasceu pequeno. Para não descarregar a bateria.

Marca: Levi’s. Título: Sea of Blue. Agência: FCB West. Estados Unidos, Fevereiro 2017.

Marca: Durex. Título: Turn off to turn on. Internacional, Março 2014.

Biomecanóides e robots

Motorola

O meu rapaz mais novo está, há longos meses, a construir a perna de um robot. Fiquei a conhecer a complexidade dos nossos parceiros de um futuro que começou há décadas. O telemóvel é uma extensão biomecanóide? O anúncio Expedition, da Morotorola Droid, não tem dúvidas. Biomecanóides e robots não são uma ficção, cruzamo-nos com eles todos os dias. Seguem um excelente anúncio de Noam Murro e um clássico dos Kraftwerk.

Marca: Motorola. Título: Expedition. Agência: Mcgarrybowen (New York). Direcção:  Noam Murro. Estados Unidos, 2010.

Kraftwerk. The Robots. The Man Machine. 1978.