Nascer
Num trabalho para a disciplina de Sociologia da Cultura, duas alunas escrevem espécie de guião para produção de uma história de vida: ”Quando começa a sua história?”. Escrever sobre isso e, se necessário, perguntar a pessoas próximas como ocorreu o seu nascimento. Descrever tudo minuciosamente, ilustre com fotos, caso existam”. Nada que o anúncio Life, dos Médecins du Monde, não contemple. Carregar na imagem ou no seguinte endereço para aceder ao anúncio: http://www.culturepub.fr/videos/medecins-du-monde-life/.

Quando a causa é justa…

“Le dégoût et les soucis naquirent de l’abondance” (Píndaro, poeta grego).
A causa ecologista destaca-se como uma das maiores causas da história da humanidade. Pelo alcance e pela mobilização. As grandes causas convocam tanto a nossa bondade como a nossa maldade. A elevação e o disgusto. A causa ecologista cresce na publicidade. Se a causa é boa, o resto pode ser reciclável. Uma espécie de efeito PETA.
No anúncio alemão Unverpackt, da cadeia de supermercados Edeka, uma mulher em trabalho de parto dá à luz um boneco envolto em plástico. Na realidade, está a ter um pesadelo provocado pelo homem a abrir uma embalagem plástica com fruta. Existem imensos diabos. Nunca os contei. Plástico é o mais recente.
A mulher, o cavalo e o burro
Alguém pediu um grotesco? Aqui vai um shot com alguns tópicos grotescos em espaço e tempo mínimos: parto anormal; baixo corporal; burro acabado de nascer; e cavalo enganado…
Marca: Horsebox Brewery. Título: Black Stallion. Agência: Filmakademie Baden-Württemberg. Direcção: Lars Timmermann. Alemanha, Outubro 2017.
O parto na Idade Média (revisto)
« J’étais presque mort quand je vins au jour » (Chateaubriand, 1899 [1848-50], Mémoires d’Outre-Tombe, Tome I, Paris, Garnier Frères, Libraires Editeurs, p. 24).
Faz 26 anos que numa praia alentejana um amigo brincou com o teste de gravidez: “Que vais fazer a Odemira? Urina em água com camarões; se morrerem, estás grávida!” Assim se arremedam as artes de divinação medievais, tão infalíveis quanto o balde de marisco. Na verdade, na Idade Média, um dos testes de gravidez mais populares consistia em “regar com urina sete grãos de trigo, sete grãos de cevada e sete favas; aquele que não conseguir fazê-los germinar em sete dias será incapaz de germinar a sua própria semente” (Franck, Manuela, La représentation de la stérilité, du moyen âge aux temps modernes: https://perso.helmo.be/jamin/euxaussi/famille/steril.html).
Há desígnios de Deus que pedem consagração terrena. Por exemplo, a procriação, missão capital do cristão medieval, nas esferas económica, social, política e religiosa. A ausência de filhos era um estigma que raiava o pecado. A culpa é sistematicamente atribuída à mulher, herdeira de Eva e de Madalena. A infertilidade não é fado, nem vontade de Deus, nem capricho da Natureza; radica no mau comportamento da mulher. A infertilidade é, assim, encarada como uma punição.
O nascimento de uma criança representa uma bênção na Idade Média. Um casal sem filhos perde posição, poder e prestígio. Impõe-se como uma preocupação global, tanto do servo como do rei.
“Ao contrário das ideias correntes, a criança na Idade Média é amada e, sobretudo, desejada. Sendo, na época, a mortalidade infantil extremamente elevada, tenta-se conceber o maior número possível de crianças. Filipe de Navarra escreve em Les quatre âges de l’Homme, em 1260, que a criança é considerada como o herdeiro que renova as gerações, garante a continuidade da linhagem e perpetua a memória dos antepassados. Assevera-se, assim, crucial para as famílias ter vários filhos, em particular, machos” (Grossesse et accouchement au Bas Moyen Age. La médecine au Bas Moyen Age en Europe : https://medecinemedievaleeurope.wordpress.com/2015/04/05/62/).
Não faltam receitas e rituais para propiciar a gravidez. A maior parte, de pendor mágico-religioso. Por exemplo, rodear-se de talismãs ou de bonecas, comer determinados alimentos, beber ou banhar-se em fontes milagrosas, mormente sulfurosas, tocar ou esfregar-se em menires (Figuras 03 e 04), ferrolhos das portas e badalos do sinos das igrejas, sem descartar a bruxaria e, apesar da “falha” feminina, o recurso a sementes alheias (Ver La grossesse au Moyen Age, entre rituels et croyances: http://www.racontemoilhistoire.com/2014/09/02/devenir-mere-au-moyen-age-croyances-rituels/).

05. Ambroise Paré. Oeuvres. Paris. G. Buon. 1575. Na Idade Média, o realismo coexiste com a fábula. À primeira vista, a gravura lembra uma ilustração de uma nova técnica para sustentar o ventre. Mas a inscrição não engana, a barriga é mesmo hiperbólica; “Coisa admirável uma mulher carregar vinte crianças vivas”. Fabuloso!
As práticas (…) mais frequentes na idade média para curar a esterilidade são de foro religioso. É a via mais evidente para as mulheres que aprenderam que é na tibieza da sua fé que está a origem das suas desgraças e que, portanto, o Céu revela-se todo potente para as curar. É, essencialmente, pela oração que as mulheres estéreis se dirigem a Deus, a homens mortos e oficialmente santificados com a esperança de vencer a esterilidade. As práticas meio religiosas, meio supersticiosas da idade média que aliam magia, medicina e religião são infinitas (…) A tradição popular atribui importância às águas termais para a cura da esterilidade. Estas águas foram durante muito tempo mal vistas pela autoridade eclesiástica, porque as fontes quentes, por sinal as mais úteis, parecem aquecidas pelo fogo do inferno (as águas dos diabos), o que resulta confirmado pelo cheiro a enxofre que, por vezes, exalam” (Franck, Manuela, La représentation de la stérilité, du moyen âge aux temps modernes: https://perso.helmo.be/jamin/euxaussi/famille/steril.html).
A gravidez era encarada como um estado excepcional, de ordem quase sagrada. Isentava a mulher grávida de obrigações, tais como assistir às cerimónias religiosas ou ser citada, ou castigada, em justiça. Devia respeitar uma rigurosa abstinência sexual, mas não era dispensada de trabalhar até ao dia do parto. As roupas queriam-se largas, sem cintura, de feição a não apertar o ventre.
Ontem como hoje, a mulher grávida confronta-se com uma panóplia de preceitos e interditos, nomeadamente alimentares. Abundavam os rituais mágicos. Desfaziam-se, por exemplo, todos os nós da casa para evitar que o cordão umbilical se enrodilhasse. Tinham, como hoje, direito aos seus caprichos, que competia ao marido satisfazer.
Durante a gravidez, justifica-se a devoção a Nossa Senhora do Ó, a “Virgem barrigudinha” (http://silentstilllife.blogspot.pt/2010/05/o.html). Naquele tempo, era mais arriscado parir do que guerrear. A mortalidade era elevada, para a mãe e para a criança.
“A mortalidade endógena (que corresponde aproximadamente à mortalidade perinatal dos nossos dias) é muito familiar às pessoas de outrora: em média, até ao início do século XX, 25% dos falecidos antes do primeiro ano de vida morriam durante o nascimento ou nos dias seguintes (hoje, apenas 0,2%). Em certos casos, esta morte é pressentida e esperada. Muitos dos nascidos débeis (…) são considerados como perdidos. O destino dos mais fracos é morrer” (Morel, Marie-France. « La mort d’un bébé au fil de l’histoire », Spirale, 31. 3, 2004, p. 18).
Acrescente-se, como complemento, que na Idade Média acima de uma em cada quatro crianças nascidas morria antes do primeiro aniversário e cerca de metade não chegava aos vinte anos de idade.
Eram correntes os partos em posição sentada (Figuras 08 e 09). Por vezes, a parturiente permanecia de joelhos ou, eventualmente, de pé (Figura 02). (http://www.racontemoilhistoire.com/2014/09/02/devenir-mere-au-moyen-age-croyances-rituels/). Havia cadeiras próprias para o efeito.
O parto não era propriamente um acontecimento íntimo. Assistem familiares, amigas, matronas e parteiras (Figura 10). Importante era a presença de mulheres “experientes” que sobreviveram a muitos partos. Durante o parto, tudo pede ritualização, mais mágica do que médica. Atente-se nos seguintes procedimentos:
“Espalham-se maus odores ao nível da cabeça e bons odores ao nível da bacia a fim de incitar o bebé a sair” (Grossesse et accouchement au Bas Moyen Age. La médecine au Bas Moyen Age en Europe : https://medecinemedievaleeurope.wordpress.com/2015/04/05/62/).

11. Miniatura do livro de horas de Catherine de Cleves. Utrecht, c. 1440
“A matrona vai, então, cortar o umbigo com o comprimento de 4 dedos e enlaça-o. Acontece, frequentemente, quando é um rapaz deixar-se um pouco mais de 4 dedos de cordão, para precaver a sua virilidade. A criança é, de seguida, lavada com vinho ou álcool e esfregada com sal, mel ou uma gema de ovo. Se nenhum destes produtos se encontra disponível, recorre-se a palha húmida e morna” (http://www.racontemoilhistoire.com/2014/09/02/devenir-mere-au-moyen-age-croyances-rituels/).
Por último, enfaixa-se o recém-nascido, para manter as suas costas e as suas pernas direitas. Lembra uma múmia egípcia (Figuras 11 e 12).
“A parteira [ventrière] envolve cuidadosamente o pequeno corpo frágil em “tecidos macios” ou “blancos paños” para que os membros fiquem mais firmes (…) De facto, o bebé, na idade média, não podia mexer nem os braços nem as pernas devido ao receio que estes se deformassem. Há quem vislumbre um significado místico: mal nasce, o homem já é prisioneiro dos seus pecados” (Salvat, Michel, L’Accouchement dans la littérature scientifique mediévale, Presses universitaires de Provence: http://books.openedition.org/pup/2704?lang=fr).
Volvidos três dias, o recém-nascido é baptizado.
Se algo corre mal durante o parto, o que não é raro, existe o recurso à cesariana, operação já praticada na Antiguidade. Mas na Idade Média a cesariana só é permitida quando a parturiente já está morta. Trata-se de uma cesariana post-mortem (Figuras 13 e 14).
“O concílio de Trèves, em 1310, estipula que “quando uma mulher grávida morre, é preciso tentar de imediato a operação cesariana e batizar a criança se ainda vive. Se está morta, dever-se-á enterrá-la fora do cemitério. Se se presume que a criança está morta no ventre da mãe, não há motivo para fazer a operação e enterra-se a mãe e a criança no cemitério”” (Delotte, J. et alii, Une brève histoire de la césarienne: http://www.edimark.fr/Front/frontpost/getfiles/13084.pdf).
“O que importa, portanto, é que a criança viva e que, segundo a tradição cristã, seja batizada e escape ao poder de Satanás. A prática da cesariana post-mortem foi sempre encorajada, ver institucionalizada, como foi o caso sob os reis de Roma. Mas, em contrapartida, a incisão de uma mulher viva constitui um ato temerário, senão um sacrilégio: não se precipita a morte daquela que a natureza ainda pode resgatar? (…) Se a cesariana post-mortem se torna, efetivamente, uma intervenção admitida e frequentemente realizada, a incisão de uma mulher viva surge como um assassinato e colide com resistências enraizadas (Laget Mireille. La césarienne ou la tentation de l’impossible, XVIIe et XVIIIe siècle. In: Annales de Bretagne et des pays de l’Ouest. Tome 86, numéro 2, 1979. La médicalisation en France du XVIIIe au début du XXe siècle. pp. 177-189; pp. 178 e 184 ; http://www.persee.fr/docAsPDF/abpo_0399-0826_1979_num_86_2_2975.pdf).
Prática já documentada no século XVI, será necessário aguardar pelo século XVIII para que a cesariana em mulher viva faça caminho : «O século XVIII constitui em França, em toda a Europa, um período fundamental da história da cesariana: enquanto que a única intervenção admitida pelas mentalidades coletivas era a cesariana em mulher morta, a prática da cesariana sobre uma mulher viva difunde-se e impõe-se: evolução dos espíritos e progresso das técnicas” (Laget Mireille. La césarienne ou la tentation de l’impossible, XVIIe et XVIIIe siècle. In: Annales de Bretagne et des pays de l’Ouest. Tome 86, numéro 2, 1979. La médicalisation en France du XVIIIe au début du XXe siècle. pp. 177-189; p. 177; http://www.persee.fr/docAsPDF/abpo_0399-0826_1979_num_86_2_2975.pdf). Mas a oposição à cesariana, uma impotência técnica ou mental traduzida, de algum modo, na disposição de “não matar e deixar morrer”, perduraria por longos anos.

15. O nascimento de Júlio César. Bellum Gallicum, 1473-1476. Cirurgiões em vez de parteiras. A mãe aparenta estar viva. Embora a miniatura retrate a realidade medieval, remete para Antiguidade romana.
Para terminar, uma sugestão: a consulta do artigo O Parto na Modernidade Avançada, no Tendências do Imaginário. Para aceder, carregar na imagem seguinte ou no endereço: https://tendimag.com/2015/08/18/o-parto-na-idade-media-e-na-modernidade-avancada-ii-a-bussola-semiotica/.
Pisar o risco
A morte é central no imaginário grotesco. A gravidez e o nascimento, também. Multiplicam-se os anúncios que recorrem a estes temas. Umas vezes, aproximando-os, como no anúncio Champagne da XBOX (ver O parto na modernidade avançada ), outras, separando-os, como no anúncio Ultrasound, da Doritos, para o Superbowl. Gravidez e parto, sem morte, mas com gula. O apetite excessivo associado à gravidez; o apetite deslocado do pai; o apetite prodigioso de bebé, no ventre da mãe. Tudo possível graças às maravilhas mágicas da técnica. O anúncio mergulha-nos no âmago do grotesco: a gravidez, o nascimento, a gula, o corpo e a técnica. Faltam, por exemplo, a morte, a religião e o poder. Alguém anda a saltitar nos limiares da conveniência? Trata-se de uma obsessão do grotesco: pisar o risco.
Marca: Doritos. Título: Ultrasound. Direcção: Peter Carstairs. Austrália, 2016.
O parto na Modernidade Avançada
A comunicação audiovisual é para a actualidade aquilo que as iluminuras foram para a Idade Média. Umas e outras compõem a nossa paisagem sensorial e simbólica, convocam a vida e constroem a realidade. Comparando as imagens do parto medieval com os vídeos actuais, constata-se uma mudança do olhar. As iluminuras medievais são sérias e realistas, os vídeos são fictícios e cómicos. Na Idade Média, o parto não dava vontade de rir. O parto bem-disposto é apanágio da Modernidade Avançada. Contanto que o homem medieval fosse mestre na arte do riso e do absurdo. Os gracejos (droleries) nas margens dos manuscritos (marginália), bem como as festas tresloucadas, rivalizam com as fábricas de humor dos nossos dias. Na Idade Média, tinha-se medo de não ter filhos e temia-se a morte durante o parto. Na modernidade, tem-se receio de ter filhos e os riscos de mortalidade durante o parto são ínfimos. Uma característica une, no entanto, a Baixa Idade Média e a Modernidade Avançada: constituem dois picos históricos de propagação da imagem.
Marca: Volkswagen. Título: Delivery. Agência: Red Urban. Direcção: Curtis Wehrfritz. Alemanha, 2013.
Concentremo-nos na representação do parto na Modernidade Avançada. Selecionei quatro anúncios, que dizem pouco sobre o parto e muito sobre a nossa bússola semiótica.
Marca: XBOX. Titulo: Champagne. Agência: BBH. Direcção: Daniel Kleinman. UK, 2002.
Autores como Paul Virilio e David Harvey consideram a “velocidade” e a “compressão do espaço e do tempo” expressões-chave do nosso modo de ser e de estar no mundo. No anúncio da Volkswagen, graças ao poder de aceleração do automóvel, o trabalho de parto é quase instantâneo. Dispensa tempo e espaço. No anúncio da Xbox, o bebé passa, em 45 segundos, do ventre da mãe para a sepultura, num processo de envelhecimento vertiginoso. No anúncio da MTS, a criança tem um crescimento físico e intelectual acelerado. No anúncio da B!, da Compal, o pai grávido dá à luz uma filha já adolescente.
Marca: MTS. Título: Internet Baby. Agência: Creativeland Asia. Índia, 2014.
A dependência das máquinas constitui outro traço relevante da Modernidade Avançada. No anúncio da Volkswagen, a parteira é o automóvel. No anúncio da XBOX, a mãe lembra um canhão e o filho, um projétil. No anúncio da MTS, as máquinas digitais recebem um bebé viciado em comunicação e Internet.
A desmaterialização fascina-nos. No anúncio da Volkswagen, o parto resulta virtual. No anúncio da MTS, só falta substituir o cordão umbilical por um dispositivo sem fios.
Marca: B! Abacaxi. Título: É uma menina. Agência: Brandia Central(Lisboa). Portugal, 2007.
Estes anúncios têm um ar barroco a descair para o grotesco. Tudo se oferece estranho e excessivo: o parto assistido pelo automóvel; o disparo do bebé que voa em direcção à morte; o bebé que nasce viciado em Internet. E, por último, o anúncio português, grotesco e barroco até não poder mais. Um anúncio profuso! Tal como a sociedade. E se a sociedade, para além de líquida, hipermoderna, hiper-real, pós-moderna, acelerada e desmaterializada, também se configurasse como uma sociedade da profusão? Profusão de bens, de cenários, de símbolos, de desejos, de identidades, de contradições e de frustrações. Mais que uma sociedade de consumo, do espectáculo ou da abundância, participamos numa sociedade da profusão! Ou talvez não. Ouvi falar de um reino que visa poupar nos partos e no apoio às crianças. Para além da poupança com tantos jovens e adultos que vão criar os filhos além fronteiras.
O parto na Idade Média
Há 25 anos, numa praia alentejana, um amigo brincou com o teste de gravidez: “Que vais fazer a Odemira? Urina em água com camarões; se morrerem, estás grávida!” Assim se arremedavam as artes de divinação do Antigo Egipto, cujo teste consistia “em urinar durante alguns dias para cima de sementes de trigo ou de cevada, se a cevada crescesse nasceria um rapaz, se crescesse o trigo, seria uma rapariga. Se não crescesse nada era porque a mulher não estava grávida” (http://apontamentoshistoriamedieval.blogspot.pt/2010/10/gravidez-na-idade-media.html).
Na Idade Média, também existiam “testes de gravidez”. Tão infalíveis como o dos camarões. A fecundidade era um valor prezado pela sociedade, sendo mais desejado um rapaz, um varão, do que uma rapariga. A ausência de filhos era uma falta próxima do pecado. A culpa era sempre da mulher. Não faltavam as mezinhas, mais ou menos mágicas, para engravidar. Por exemplo, deitar-se rodeada de bonecas.
A gravidez era encarada como uma situação excepcional, de ordem sagrada. Isentava a mulher grávida de obrigações, tais como assistir às cerimónias religiosas ou ser citada, ou castigada, em justiça.
Eram correntes os partos em posição sentada. Por vezes, a parturiente permanecia de joelhos ou, eventualmente, de pé. (http://www.racontemoilhistoire.com/2014/09/02/devenir-mere-au-moyen-age-croyances-rituels/). Havia cadeiras próprias para o efeito. Durante a gravidez era habitual a devoção a Nossa Senhora do Ó, a “Virgem barrigudinha” (http://silentstilllife.blogspot.pt/2010/05/o.html). Esta devoção justificava-se. Naquele tempo, era mais arriscado parir do que guerrear. A mortalidade era elevada, para a mãe e para o filho.
Parto com Presunto
A responsabilidade social das empresas consubstanciada em obras de beneficência devidamente publicitadas veio para durar. A Campofrío oferece às parturientes tantos quilos de presunto quanto o peso dos bebés. O papa Bento XVI sugere que os Reis Magos não partiram do Oriente mas da Península Ibérica. São três mas podiam ser quatro: Baltazar, Gaspar, Belchior e Campofrío, cada qual com o respetivo presente: ouro, incenso, mirra e presunto.
Marca: U.N. Navidul/Campofrío. Título: Um jamón bajo el brazo. Agência: McCann Erickson España. Direção: Víctor García León. Espanha, Dezembro 2013.
Parto no Masculino
A OK! teleseguros tem-nos brindado com uma série de anúncios com um humor franco, próximo do teatro de revista à portuguesa. Alguns apostam no equívoco, quer das personagens (e.g., Engano; Mulher; Vingança), quer dos espectadores, como é o caso do novo anúncio Parto, da OK! Saúde. Não falta imaginação! Mas a realidade ultrapassa, muitas vezes, a imaginação. Por estranho que pareça, a figura do homem “parturiente” encontra-se disseminada pelo mundo.
No País Basco medieval, existia a tradição da couvade (incubação): “o pai, durante ou logo a seguir ao nascimento da criança, deitava-se e queixava-se de dores associadas ao parto, chamando a si as atenções e os cuidados normalmente reservados à mulher durante a gravidez e depois do parto” (http://www.jeunepapa.com/grossesse-26.html).
A fazer fé nos testemunhos, o papel do pai durante o parto entre os índios Huichol, do México, assevera-se, no mínimo, desconfortável. “Segundo a tradição Huichol, quando uma mulher estava prestes a ter o seu primeiro filho, o marido agachava-se nas vigas da casa, ou nos ramos de uma árvore, acima da mulher, com cordas atadas ao seu escroto. Mal a mulher começava a sentir as dores de parto, puxava vigorosamente pelas cordas, de modo a que o seu marido pudesse partilhar a dolorosa mas, em última análise, feliz experiência do nascimento” (Berrin, Kathleen, 1978, Art of the Huichol Indians, San Francisco, Fine Arts Museums of San Francisco). O esquema da Figura 1 ilustra claramente o modo como a mulher Huichol tocava os sinos durante o parto.
Marca: OK!Saúde. Título: Parto. Portugal, Setembro 2013.
Partos extravagantes
Embora o parto seja um dos atos humanos mais íntimos, não escapa ao humor da publicidade. Em 2002, num anúncio da X-box o nascimento de um bébé assemelha-se à abertura de uma garrafa de champanhe. Neste Birth, do álbum Pocket Symphonies de Sven Helbig, o trabalho de parto é acompanhado por uma orquestra.
Fantasiar a propósito do parto, parodiar o nascimento, não é apanágio do nosso tempo. François Rabelais, num livro escrito em 1534, descreve deste modo o nascimento do gigante Gargântua, pai de Pantaguel: Gargamelle, a mãe, grávida de onze meses, empanturra-se com tripas de boi. Tanto comeu que acaba por dar à luz as próprias tripas. Com as saídas de baixo obstruídas, a criança, Gargântua, “entra na veia cava e, trepando pelo diafragma até acima dos ombros (onde a dita veia se divide em duas), tomou caminho à esquerda e saiu pela orelha esquerda. Acabado de nascer, não gritou como as outras crianças: ‘Mies! Mies! Mies!’ , mas a alta voz: ‘A beber! A beber! A beber!’, como se estivesse a convidar todo o mundo a beber.” Mas há casos mais complicados do que o de Gargântua. Nascer, por exemplo, de uma costela ou de uma coxa masculina.
Marca: Sven Helbig’s Pocket Symphonies. Título: Birth. Agência: Kolle Rebbe, Hamburg. Direção: Kai Schonrath. Alemanha, Março 2013.
Marca: Xbox. Título: Champagne. Agência: Bartle Bogle Hegarty. Reino Unido, Janeiro 2002.