Tempestade

A campanha eleitoral pode não ter sido muito substantiva, foi mobilizadora. E a votação lembra uma tempestade: varreu à esquerda e dispersou à direita, mais ao jeito de Vivaldi do que de Branduardi.
Ecos medievais

Escutamos e estimamos pouco a música medieval, pelo menos, não tanto quanto vale, na sua originalidade e diversidade em várias áreas:
- Ancoragem social: religiosa, trovadoresca, popular, mourisca…;
- Géneros: cantigas, motetos, missas, conductus…
- Cantos: gregoriano, cantochão, polifónico…
- Espaços: igrejas, castelos, praças, banquetes, tabernas…
- Eventos: festas, feiras, procissões, desfiles, bailes, banquetes…
- Instrumentos: rebecas, cítolas, harpas, vielas, saltérios, alaúdes…
- Danças: carolas; tripudium, estampidas, saltarelos, folias…

É verdade que, nos nossos dias, réplicas e sucedâneos nos interpelam, intermitentes, nos eventos e simulacros (e.g. as feiras medievais), no cinema (e.g. os filmes de fantasia) ou na música (e.g. o folk power metal, como os Blind Garden, ou os trovadores contemporâneos, como o Angelo Branduardi). Sublinhe-se que a música medieval é precursora e inspiradora de muitas composições dos séculos seguintes. Atente-se, por exemplo, nas Cantigas de Santa Maria, do século XIII, da corte de Afonso X, escritas em galego-português.
A minha ignorância da música medieval é avassaladora. Felizmente, tem-se manifestado notável o estudo e a recuperação do legado medieval. A ignorância comporta uma virtude para quem prefere descobrir a confirmar: proporciona mais hipóteses de encontrar, com espanto e prazer, por acaso ou pesquisa, novidades, sejam contextos ou obras. Seguem cinco exemplos:
O trovador

Compositor, cantor, multi-instrumentista, “trovador”, Angelo Branduardi destaca-se como um dos artistas mais emblemáticos da Itália contemporânea. Nos anos setenta, obteve um franco sucesso em França. Algumas das suas canções são em língua francesa. É o caso de uma das canções selecionadas (La demoiselle). O intercâmbio entre a Itália e a França não é de menosprezar. A este propósito, Jean Cocteau graceja: “os italianos são franceses com bom humor”. Já coloquei várias músicas do Angelo Branduardi: La Luna; Alla Fiera Dell’ Est; La Pulce D’Acqua; Ballo in fa diesis minore; e Si può fare. Coloquei ainda a música Nelle Palludi di Venezia, com Teresa Salgueiro (ver https://tendimag.com/2015/04/24/a-passo-de-caranguejo-a-cancao-da-morte/). Seria estranho neste ciclo do Tendências do Imaginário dedicado à Itália ignorar Angelo Branduardi. Tem mais de vinte álbuns publicados. Dá para retirar mais três canções: Gli Alberi Sono Alti (1975); La Demoiselle (1979) e Confessioni di un malandrino (1980). É demasiado. A maior parte das pessoas não vai gostar. Mas os outros vão consolar-se.
Virar costas a Castela

Virar costas à latinidade não traz bom vento. Insensatez de Estado, cenoura do povo e oportunismo do resto.
Conhece Angelo Branduardi? Não? E a Billie Eilish? A cereja no bolo do terceiro milénio é a avaliação assente na ignorância electronicamente ruidosa. O Angelo Branduardi é uma espécie de José Afonso da Itália. Ao prestar-lhe atenção, paramos, por um momento, de coçar o mainstream. Boiar na corrente é cómodo, mas nada pessoal. Sem cabeça, coração e estômago, com raízes gastas, sob uma tempestade de gadgets e emblemas, arriscamos o excesso semiótico e o distúrbio gastro-identitário.
Viramos costas à latinidade com o freio nos dentes. Afigura-se estúpido desvalorizar o que somos.
A canção da morte a passo de caranguejo

Figura 01. Igreja de São Virgílio. Pinzolo. Itália

Figura 02. O Baile da Morte na Igreja de São Virgílio. Postal ilustrado. 1903
O vídeo O Desconcerto do Mundo inicia com imagens de danças macabras acompanhadas pela canção Ballo in Fa diesis Minore (Sono Io la Morte, 1977) de Angelo Branduardi, cuja letra corresponde aos ditos da dança macabra de Pinzolo (Itália, 1539), dança situada na Igreja de São Virgílio, na fachada que confina com o cemitério (ver Figura 1). No início do século XX, o cemitério estendia-se até à igreja (ver, na Figura 2, bilhete postal datado de 1903).
Pela localização, junto ao cemitério, a dança macabra de Pínzolo lembra a dança macabra do Cemitério dos Inocentes, em Paris, a primeira dança macabra de que há conhecimento: os frescos percorriam os muros interiores do cemitério, por cima dos ossários (ver Transi 3: Viver com os mortos). Segue canção de Angelo Branduardi, com tradução dos versos iniciais.
Angelo Branduardi. Ballo in fa diesis minore. Versão original: La pulce d’Acqua. 1977.
Descobrir é “coisa corrente”. “De sábios e tolos todos temos um pouco”. Intrigou-me, por exemplo, a afinidade entre alguns autores surrealistas (Salvador Dali, Giorgio de Chirico e M.C. Escher) e vários artistas do séc. XV a XVII, tais como Lorenz Stoer, François Desprez, Wenzel Jamnitzer e Giovanni Battista Braccelli (ver: Arquitectura de paisagem na geometria maneirista: Lorenz Stoer ; Criaturas pantagruélicas 1 ; Criaturas pantagruélicas 3 ; Perspectivas: Wenzel Jamnitzer e M. C. Escher ; Braccelli. À maneira surrealista ).
Estas duas “descobertas”, versos da “canção da morte” e influência do maneirismo no surrealismo, são, de facto, descobertas da pólvora. De algum modo, já se sabia!

Figura 03. Início da dança macabra de Pínzolo. Músicos e primeiros versos
Qual o interesse em descobrir o descoberto? A felicidade e o treino: descobrir é uma experiência grata e uma competência que ganha em ser cultivada. “o acaso só toca os espíritos bem preparados” (Joseph Pasteur). O episódio da letra da canção de Angelo Branduardi deve muito ao acaso, acaso que só toca, contudo, à minoria que lê os versos das danças da morte. “Preparar bem o espírito” não se resume à promoção de estudos exploratórios e à revisão da literatura”. Requer mergulho na realidade e capacidade de discernimento dos “fenómenos anómalos, relevantes e estratégicos” (Merton, Robert K., 1968 [1949], Social structure and social theory, New York, The Free Press, 158).
O risco de descobrir a pólvora tende a diminuir quando o tema da investigação é menos concorrido e mais circunscrito.
Escolhíamos imagens para o livro sobre as Festas d’Agonia (Martins, Moisés, Gonçalves, Albertino & Pires, Helena, 2000, A Romaria da Srª da Agonia, Grupo Recreativo e Cultural dos Trabalhadores dos Estaleiros Navais de Viana do Castelo), quando deparei como uma fotografia com um aeroplano. Em letras muito pequenas, enxergava-se o nome: Quo Vadis. Desde 1913, os programas das festas e os jornais locais anunciam, ano após ano, a exibição de um aeroplano. O cartaz de 1913 “representa uma figura de Zé P’reira, assentando num bombo, admirando basbaquemente, um aero plano que cruza o espaço” (Aurora do Lima, 16.07.1913). Mas foi preciso aguardar pelo ano de 1918 para ver um aeroplano a sobrevoar, durante as festas, Viana do Castelo. O aeroplano chamava-se Quo Vadis… Por mesquinhas que sejam, estas micro descobertas despertam o investigador e a investigação. Podem, ainda, contribuir para o património e a memória locais.
A micro descoberta não programada requer competência, treino e disponibilidade, tanto de tempo como de espírito. Investir em quase nada é uma aventura ousada.
Para o “livrinho” A Idade de Ouro do Postal Ilustrado em Viana do Castelo, recorri à pesquisa na Internet, designadamente páginas de leilão e blogues especializados. A determinada altura, deparo-me com um postal ilustrado, datado de 31 de Agosto de 1911, com a mensagem escrita inesperadamente incompleta. Uma curiosidade. Passei em frente. Alguns dias mais tarde, surge um postal ilustrado com o mesmo emissor e a mesma destinatária, do mesmo dia e com mensagem incompleta, ambos numerados. Coleccionador de selos e leitor de romances policiais, não resisti a prestar atenção este caso anedótico. A missão consistia em descobrir o maior número possível dos doze postais enviados (“mando daqui doze bilhetes postais para assim teres a certeza que vão todos ao destino”) por um visitante de Viana do Castelo a Magdalena Manzoni, de Torres Vedras. Consegui encontrar dez, todos na Internet (ver Galeria de imagens). Faltam o 2 e o 5. Valeu a pena? Não sei, mas ainda me sinto orgulhoso. Não deixa de ser um bom indicador da paixão pelos postais ilustrados no início do século XX.
- Postal 01 Frente. Edifício da Congregação e Hospital de Velhos. Bazar Couto Viana. 1911
- Postal 01 Verso. Edifício da Congregação e Hospital de Velhos. Bazar Couto Viana. 1911
- Postal 03 Frente.. Grupo de camponezas de Santa Martha. Bazar Couto Viana. 1911
- Postal 03 Verso. Grupo de camponezas de Santa Martha. Bazar Couto Viana. 1911
- Postal 04 Frente. Rua Junto ao Mercado Municipal.Couto Viana. 1911
- Postal 04 Verso. Rua Junto ao Mercado Municipal.Couto Viana. 1911
- Postal 06 Frente. Parque no Monte de Santa Luzia e edifício destinado a hotel. Bazar Couto Viana. 1911
- Postal 06 Verso. Parque no Monte de Santa Luzia e edifício destinado a hotel. Bazar Couto Viana. 1911
- Postal 07 Frente. Vivenda da Família Pereira da Cunha. Arcozelo. Bazar Couto Viana. 1911
- Postal 07 Verso. Vivenda da Família Pereira da Cunha. Arcozelo. Bazar Couto Viana. 1911
- Postal 08 Frente. Arco da entrado do Mosteiro de S. Francisco. Bazar Couto Viana. 1911.
- Postal 08 Verso. Arco da entrado do Mosteiro de S. Francisco. Bazar Couto Viana. 1911
- Postal 09 Frente. Praça da República. Bazar Couto Viana. 1911
- Postal 09 Verso. Praça da República. Bazar Couto Viana. 1911
- Postal 10 Frente. Pharol de Montedor. Bazar Couto Viana. 1911
- Postal 10 Verso. Pharol de Montedor. Bazar Couto Viana. 1911
- Postal 11 Frente. Arcos do Fincão na freguesia de Areosa. Bazar Couto Viana. 1911
- Postal 11 Verso. Arcos do Fincão na freguesia de Areosa. Bazar Couto Viana. 1911
- Postal 12 Frente.. Vapor Ella sahindo da coka. Bazar Couto Viana. 1911
- Postal 12. Vapor Ella sahindo da coka. Bazar Couto Viana. 1911
Galeria de Imagens: Postais enviados por um visitante de Viana do Castelo em 1911
Aprecio as fábulas de La Fontaine: a Lebre e a Tartaruga, o Leão e o Mosquito, a Cigarra e a Formiga, o Lobo e o Cordeiro… Por que não o Galgo e o Caranguejo?
A Passo de Caranguejo é uma obra de Umberto Eco (2007, Difel). Segundo o autor, o mundo está a retroceder: regressa à guerra quente, retoma os fundamentalismos… O caranguejo do Umberto Eco anda para trás. Aqueles que conheço tendem a andar para o lado. O galgo corre para a frente sem tirar os olhos do isco e sem sair um milímetro da pista. Na estrada, o galgo acelera nas rectas sem abrandar nas curvas rumo à meta. O caranguejo não resiste a desvios, perde-se em atalhos e demora-se em inutilidades. O caranguejo sabe o que quer, mas relativiza os objectivos. É um “flâneur” (ver Benjamin, Walter, 2012, El Paris de Baudelaire, Buenos Aires, Eterna cadencia Editora). O galgo é racional; o caranguejo, romântico. O galgo aprecia problemas e protocolos; o caranguejo, enigmas e travessias. O cúmulo do galgo é saber os resultados antes de começar a investigação. O cúmulo do caranguejo é acreditar que para ser investigador basta existir. O sociólogo Paul F. Lazarsfeld (ver a colectânea On Social Research and Its Language, The University of Chicago Press, 1993) aproxima-se do tipo ideal do galgo; Georg Simmel (ver a colectânea La tragédie de la culture, Paris, Editions Rivages, 1988), do tipo ideal do caranguejo. Galgo ou caranguejo? Já fui galgo, caranguejo e híbrido. “No estado em que as coisas chegaram”, estou em crer que ser caranguejo dá mais prazer e ser galgo mais poder. Para a frente, para trás ou para o lado, a cada um andar a seu contento. Mais do que formas de estar no ofício de sociólogo, o galgo e o caranguejo são formas de estar na vida.
Pode ser!
“Um dia surgirá, por distracção do senhor, uma geração com direito a tudo e vontade de nada, bem-aventurada nos recursos e melancólica nas consequências. A geração do “pode ser” consta entre as mais esfíngicas dos últimos séculos” (AG, 2016).
O anúncio Scouts (Canal Digital) é absurdo, um exemplo de absurdo lógico. Com boa consciência e decisão ajustada, um grupo de escuteiros ajuda criminosos homicidas. A “ética da convicção” impele-os a ajudar o próximo. Trata-se, segundo Max Weber, de “uma acção racional com relação a valores” (Economia e Sociedade, 1910/1922), ou, segundo Vilfredo Pareto, de “uma acção não-lógica do 2º género” (Tratado de Sociologia Geral, 1916). Soa a “estúpido”, resumiria Carlo Cipolla (Allegro ma non troppo, 1976).
O anúncio Scouts é ousado. À primeira leitura, estranha-se, eventualmente, por “dissonância cognitiva” (Leon Festinger, A Theory of Cognitive Dissonance, 1957). À segunda leitura, percebe-se a narrativa, mas o anúncio não se entranha. À terceira, comenta-se. Vem à memória a palavra francesa con: “idiota”, segundo os dicionários. Na verdade, não existe nenhuma palavra portuguesa com “valor” semelhante. Basta o francês con significar também o sexo feminino. Os franceses abusam da palavra, mas não nos iludamos: os franceses têm a palavra e a realidade; nós não temos a palavra, mas temos a realidade. Georges Brassens, na canção Le temps ne fait rien à l’affaire (1961) repete 29 vezes a palavra con. Se pode ser, com algum jeito, também pode fazer. Angelo Branduardi mostra, na canção Si Può Fare, o quanto se pode fazer, em todos os sentidos e com as devidas contradições.
Marca: Canal Digital. Título: Scouts. Agência: TBWA/Stockholm. Direcção: Bart Timmer. Suécia, Maio 2016.
Charles Brassens. Le temps ne fait rien à l’affaire. 1961.
Angelo Banduardi. Si può fare. Si può fare. 1992. Ao vivo, em 1996.
A passo de caranguejo. A canção da morte
Ao passar um vídeo sobre o grotesco (http://tendimag.com/2012/08/31/o-desconcerto-do-mundo/), costumo relevar, na sequência dedicada às danças da morte, a correspondência entre os versos da Dança Macabra de Pinzolo (Itália, 1539) e a letra da música, de fundo, de Angelo Branduardi: Ballo in Fa diesis Minore (Sono Io la Morte; 1977).
“Sono io la morte e porto corona,
io Son di tutti voi signora e padrona
e così sono crudele, così forte sono e dura
che non mi fermeranno le tue mura.Sono io la morte e porto corona,
io son di tutti voi signora e padrona
e davanti alla mia falce il capo tu dovrai chinare
e dell ‘oscura morte al passo andare.Sei l’ospite d’onore del ballo che per te suoniamo,
posa la falce e danza tondo a tondo
il giro di una danza e poi un altro ancora
e tu del tempo non sei più signora”.
Angelo Branduardi. Ballo in Fa diesis Minore (Sono Io la Morte). La pulce d’Acqua. 1977.
Não é fácil detectar este tipo de coincidências. São saltos laterais na “linha do raciocínio”. De desvio em desvio, anda-se “a passo de caranguejo”. Recordando Marshall McLuhan, trata-se de ensinar menos por mensagem e mais por massagem.
Angelo Branduardi é um compositor e interprete folk / rock italiano. “Trovador contemporâneo”, inspira-se na música medieval e renascentista. Compõe, frequentemente, letras alheias. Consta entre os compositores e cantores mais famosos da Europa (além-Pireneus). Partilhou uma música com Teresa Salgueiro, Nelle Palludi di Venezia (2000), integrada no álbum Obrigado (2005). De Itália até Portugal, a passo de caranguejo.
Angelo Branduardi e Teresa Salgueiro, Nelle Palludi di Venezia. 2000. Teresa Salgueiro, Obrigado, 2005.