Semear erros

“A última coisa que descobrimos ao terminar uma obra é saber aquela que é preciso colocar primeiro” (Blaise Pascal).

“O conhecimento científico é sempre a reforma de uma ilusão” (Gaston Bachelard).

Escrevo sempre textos em construção, papers in progress. Mais ou menos a meio de uma pesquisa. Ousadia? imprudência? Existem motivos que o justificam, alguns por princípio, outros práticos.

Decidir partilhar uma obra apenas quando esteja absolutamente acabada representa candidatar-se a nunca a publicar. A perfeição não está ao nosso alcance. O conhecimento é sempre problemático, provisório e falível. Entre a primeira gota e a almejada cristalização definitiva estende-se uma eternidade. Um texto redondo como um ovo, sem janelas nem trancas, é uma ilusão, pior, uma presunção. Em suma, estamos, de facto, condenados a publicar textos em construção.

Como o sugerem Blaise Pascal e Gaston Bachelard, a ciência apresenta-se não como uma certificação da verdade mas como uma retificação do erro. No início não está a verdade mas o erro. No fim, volta a não estar a verdade mas, na melhor das hipóteses, um erro menor. Errar faz, neste sentido, parte da prática científica. O diagnóstico de um erro já é um mérito, mais, errar pode ser um contributo. Uma ideia errada pode revelar-se um passo rumo ao conhecimento. O exemplo avançado por Gaston Bachelard é desconcertante e convincente: do modelo proposto por Niels Bohr, assumido como decisivo para a teoria do átomo, não restou praticamente nada. Formular uma proposta que suscita tamanho apetite que nem sequer os ossos sobram pode corresponder ao sonho de um cientista. O erro e a dúvida são os companheiros de estrada do investigador. O cientista conjetura, não prega!

Estes apontamentos não configuram um dogma, apenas uma perspetiva, por sinal, bastante partilhada. Esta consciência, de tão geral e abstrata, com ares de maneirismo epistemológico, reveste-se de pouca utilidade se não se consubstanciar numa disposição, num modo prático, incorporado, quase espontâneo, de viver a investigação. Uma arte de ser e de estar, de abraçar, com humildade, a produção e a comunicação do conhecimento.

Mal concluo um texto, logo o começo a rever. No artigo dedicado aos Farrangalheiros, colocado há escassos quatro dias, já introduzi uma mão cheia de alterações. Coisas ínfimas, quase-nadas: melhorar uma formulação, complementar uma informação, limar uma imprudência desnecessária ou corrigir um lapso assinalado por um comentário mais atento com que me deparei quando, já redigido este texto, demandava a origem do vídeo anexo. Por enquanto, as alterações provêm, essencialmente, da mera autocrítica. Mas mantenho-me atento e aberto a reações alheias, a contributos suscetíveis de o melhorar, incluindo quase-tudos capazes de o subverter. Publicado, entregue à sua sorte, um texto passa a ser menos do autor e mais dos leitores, quase um estranho. A investigação esboça os primeiros passos e no princípio não mora o verbo mas a ignorância. Comparado com alguns colegas, sou um aprendiz na matéria.

Quando estudo uma coletividade, pressuponho que os seus membros conhecem a realidade, as respetivas experiências e crenças, com uma dimensão e profundidade que nunca lograrei. Por isso os procuro e escuto com a devida atenção. Dão mais do que dou, dívida que nunca resgatarei. Investigar, para mim, é antes de mais interagir com as pessoas, em cada esquina a cada momento. Se o maior desafio da investigação é a descoberta, a principal recompensa repousa nos laços criados. Longe de partir em cruzada contra o senso comum, caminho com as pessoas, com a sua sabedoria. Promovo a proximidade em vez da distanciação profilática. Não aspiro, sobretudo, a muito mais informação do que aquela que, pela sua memória e pela sua experiência, as pessoas contempladas já possuem.

Qual é, então, a minha utilidade? O meu contributo só pode ser diferente, porventura resultante de quase meio século de treino a interpretar o comportamento social, nomeadamente o imaginário, um exercício constante desde que ingressei, em 1976, no curso de sociologia na Sorbonne e, especialmente, em 1978, no seminário de sociologia da literatura na École de Hautes Études en Sciences Sociales. Esse é o meu património e a minha ferramenta, o meu olhar, que me esforço por usar com criatividade e imaginação, se possível fundamentadas. Acrescento à realidade, sem garantias de justeza, camadas de sentido, que, por vezes, se lhe colam à pele. Só pode ser esse o retorno, a contra dádiva. Conseguido ou não, isso é outra questão.

Qual é o interesse em partilhar precocemente textos em construção, exploratórios e provisórios? Sem escudos de validação nem rituais de verdade? O risco de errar não é contra-argumento. Está sempre presente, em qualquer fase, embora, naturalmente, não se saiba. O que se ganha com a imprudência? Existem duas potencialidades que são outras tantas virtudes. A primeira consiste, precisamente, em detetar e corrigir, a tempo, os erros graças à crítica alheia. O diálogo, o debate e a avaliação, despoletados pela publicação, concorrem para esse efeito. A segunda potencialidade convoca a inspiração: a leitura de um texto pode suscitar e alavancar novas perspetivas, novos problemas, novas hipóteses. Nesta ótica, uma investigação não é só coletiva por ser conduzida por uma equipa, mas também porque é recebida e apreciada por um público, apropriada por outrem, por um colégio mais ou menos invisível. Para quem, como Paul K. Feyerabend, acredita que importa mobilizar tudo o que quer que seja suscetível de propiciar conhecimento, estas possibilidades de retificação e inspiração não devem ser desperdiçadas. Enclausurar significa esterilizar e mumificar. A fecundidade reside na interação.

Recorrendo ao linguajar tecnocrático, subsiste, porém, uma ameaça: a eventualidade de enganar os leitores com falsidades insuspeitas. Risco que se agrava quando o escritor, pelo seu estatuto, desfruta de uma autoridade e de um crédito suplementares. Por mais voltas que dê, não consigo contornar esta questão. A única forma cabal de evitar o contágio do erro seria, logicamente, remeter-se ao silêncio ou escrever para não dizer nada. Acresce que ninguém consegue censurar erros que desconhece. Na falta de melhor, recorro a um arremedo: evito o discurso categórico e académico, a retórica da verdade. À arquitetura do tratado, prefiro a morfologia do conto. Opto por um estilo coloquial e poético, como quem conta uma estória à moda do Camilo Castelo Branco: uma aparente ficção com personagens e acontecimentos reais, na expetativa de que a razão conceda, à partida, menos fé ao literário, ao ligeiro e ao irreverente. Mesmo assim, a probabilidade de indução em erro permanece incomensurável. Deseja-se, neste beco sem saída, que o leitor desconfie das certezas, das respostas fechadas, e se contente com dúvidas, com propostas abertas.

Dou a ler à família os textos antes de os publicar. No caso vertente, a pergunta não se fez esperar: “Tiveste alguma reação?”. Nenhuma, ressalvando a menção num comentário a um lapso: escrevi, baralhado pela velocidade das letras, inverneiras em vez de brandas. Trata-se simplesmente de uma fatalidade do ofício que me preocupa, que me acompanha e perturba como um grilo falante. Escrever ajuda a pensar. O desconforto é geral, tanto vale para o livro que estou a escrever sobre as imagens de Cristo como para a coletânea, em revisão, sobre a morte na arte, o capítulo, no prelo, sobre as bugiadas de S. João do Sobrado ou o artigo, recente, sobre os Farrangalheiros de Castro Laboreiro. Confirma-o a advertência que culmina o capítulo dedicado às Bugiadas:

“O estudo do imaginário requer imaginação. Sem imaginar pouco se descobre e nada se inventa. Interpretar costuma ser um jogo incerto, estimulante na prática e ingrato nos resultados. Os avanços e os recuos resultam de um compromisso entre a dedução a partir daquilo que se sabe e a indução a partir daquilo que se aprende. Quando surge uma intuição, convém acolhê-la, equacioná-la e, eventualmente, explorá-la. Nada se ganha em autocensurar conjeturas em que se apostou, por mais elevado que seja o risco de errar. Infirmadas, corrigidas ou confirmadas, as ideias, mesmo falsas, possuem a virtualidade de abrir caminho ao conhecimento. Contra o desperdício intelectual, sempre que uma intuição nos desarma, avessa a uma promessa de validação, o mais avisado será enveredar pela generosidade e a imprudência de a partilhar. Uma proposta frágil mas honesta, motivada pela vontade de saber, desde que devidamente exposta à crítica e sem aparato de verdade, não incorre em pecado capital. Talvez venha a beneficiar do interesse e da crítica de alguém que lhe proporcione melhor sorte ou a cubra de ridículo. Assim introduzida, passamos a apresentar uma camada suplementar de leitura semiótica dos Serviços da Tarde, dotada de alguma coerência e sedução, conscientes de que carece sustentação mas não proscrição.”

Esta corrente de palavras aponta para uma postura na investigação e na comunicação do conhecimento: a aposta num jogo ponderado entre humildade quanto baste e ousadia tanta quanto possível. De preferência, com asas que voam em vez de asas que pesam: a andorinha no lugar da galinha.

Traje Castrejo. Fonte: PORTUGAL de LES A LES. 7 objetos com história entre Castro Laboreiro e Melgaço. Por Jorge Montez (texto) e Miguel Montez (imagem). Consultado no dia 08 de maio de 2022.

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