A Festa de S. Bartolomeu de Cavez
Estudei, com o João Gonçalves, seis festas populares do concelho de Cabeceiras de Basto.
Os resultados estão publicados, em vários textos no livro Cabeceiras de Basto: História e Património (2013). Segue um excerto, com imagens novas, respeitante à Festa de S. Bartolomeu de Cavez; ao confronto entre a ordem e a desordem, numa noite endiabrada.

Miguel Ângelo. Juízo Final. 1535-1541. Pormenor com S. Lourenço e S. Bartolomeu (com o cutelo numa mão e a pele na outra)
São Bartolomeu de Cavez
É impossível compreender a festa de São Bartolomeu de Cavez sem referir a curiosa geografia que a envolve. A festa decorre nas margens do Tâmega, junto à ponte de Cavez. Cada margem tem a sua valência, para o lado do Minho, a capela de São Bartolomeu, que pertence a uma propriedade privada, a Quinta da Casa da Ponte, e para o lado de Trás-osMontes, a fonte milagrosa de água sulfurosa. Ambas são centrais para a festa e identidade da freguesia e ambas estão à guarda de São Bartolomeu.
A festa de São Bartolomeu realiza-se, em Cavez, todos os anos, nos dias 23 e 24 de Agosto. Camilo Castelo Branco descreve, nas Noites de Lamego, os temíveis confrontos que, “segundo o bárbaro estilo daquela romagem” (Branco, Camilo Castelo, Maria Moisés, 1876, Biblioteca Digital, Porto Editora, p. 27), se desenrolavam sobre a ponte entre minhotos e transmontanos. Alexandre Teixeira recorda os preparativos da contenda: “atempadamente as duas partes tratavam de arranjar os melhores caceteiros da região para se baterem por causas que às vezes nem lhe diziam nada. E assim no dia 23 de Agosto lá se reuniram em plena noitada para concertar o plano de ataque ao grupo contrário e a coisa acontecia da seguinte forma: armados de paus de lódo estavam todos os intervenientes e alguns até tinham no bolso a fusca para dar uns tiros se fosse preciso. À frente uma concertina entoando marchas marciais em passo de corrida, atrás os caceteiros com os paus virados ao alto tocando-se nas extremidades pronunciando uma batalha prestes a acontecer. Atravessavam a ponte repetidamente e quando as rusgas se cruzavam aconteciam provocações de parte a parte, até acontecer o confronto físico.” (Teixeira, Alexandre, 2010, “S. Bartolomeu da ponte de Cavez”, jornal Ecos do Basto, edição de 21-06-2010, http://www.ecosdebasto.com/noticia.asp?idEdicao=159&id=5772&idSeccao=1525&Action=noticia). Outra testemunha de longa memória confirma: “Aquilo era a sério, senhor. Chegava a haver mortes”. Com murros, paus e até armas de fogo, era na noite do dia 23 que se ajustavam as contas de amor, dinheiro e outras desavenças.
Apesar da reputação aguerrida dos confrontos da festa de São Bartolomeu, muitos peregrinos acorriam à festa em busca de outro tipo de pancada: a “marretada”, exorcista, do Santo. A romaria à capela de São Bartolomeu já é mencionada nas memórias paroquiais de 1758. Sendo a capela propriedade privada, os caseiros abrem a porta aos crentes que demandam o Santo.
Segundo testemunho dos caseiros, todos os fins-de-semana recebem pessoas, o que indica que a tradição se mantém viva. No centro da capela, e da tradição, encontra-se a imagem de São Bartolomeu a pisar o diabo. O ritual a que os romeiros são submetidos assevera-se simples. Dentro da capela, prestada homenagem ao Santo, a pessoa suposta possessa recebe, literalmente, uma pancada na cabeça. A imagem, erguida com ambas as mãos, desce ao encontro da testa do visitante com um ligeiro, mas decidido, toque. Em Cavez, a conta destes exorcismos não tem fim. Vêm pessoas de longe, por exemplo do Brasil, para experimentar a marretada de São Bartolomeu.
A capela e a imagem não são a única forma de o Santo fazer milagres. Na outra margem do rio, uma descida, melhorada por promessa de uma emigrante, conduz a uma fonte, também ela milagrosa. As memórias paroquiais de 1758 descrevem o fenómeno: “Junto ao rio Tamega nasce huma fonte tenue que se chama fonte de São Barthollameo e sabe a agoa de enxofre” (Capela, José Viriato, 2003, As Freguesias do Distrito de Braga nas Memórias Paroquiais de 1758, Braga, p. 223). O caudal da fonte é ténue, mas certo e a flora envolvente contribui para a aura sobrenatural da pia.
À água são atribuídas propriedades curativas, sobretudo para as doenças da pele. Há indícios de que a fonte foi associada, em tempos recuados, no final da Idade Média, a uma gafaria. Acredita-se que o efeito da água da fonte aumenta nos dias de festa. Ainda é prática usual beber a água da fonte ou levá-la para casa em garrafas e garrafões. Não vai muito tempo, durante a festa, quando os ânimos guerreiros se exaltavam, os transmontanos desafiavam “Vinde à Fonte! Vinde à Fonte!”; do outro lado, os minhotos gritavam “Vinde ao Santo! Vinde ao Santo!”
No centro da crença e da festa está a Ponte de Cavez, cuja construção, no século XIII, é motivo de lenda. Esteve por duas vezes para ser construída em locais a montante de onde se encontra hoje. Quando os trabalhadores começavam a construção, uma voz dizia-lhes “aqui não!” e o local da obra ficava completamente alagado. Por duas vezes a voz advertiu os trabalhadores e por duas vezes estes se viram incapazes de prosseguir a obra. À terceira tentativa a voz não se manifestou, e a Ponte de Cavez foi edificada no local que hoje ocupa.
O próprio responsável pela obra está envolto em mistério. Conta-se que Frei Lourenço Mendes, o promotor da construção, morreu imediatamente após a conclusão da obra. Alguns vaticinam que foi o excesso de alegria que o vitimou, enquanto outros falam de um acordo com o diabo que permitiu que a ponte terminasse no prazo. Terá sido sepultado junto a uma das cabeceiras da ponte com a seguinte inscrição: “Esta é a ponte de Cavez e aqui jaz quem a fez”. A fazer fé na memória das pessoas, o túmulo terá sido demovido há algum tempo. O mesmo dizia António Carvalho da Costa há mais de trezentos anos: “S. João de Cavez, Vigairaria do Convento de Pombeiro, tem setenta vizinhos. Nesta Freguesia está sobre o rio Tâmega a ponte de Cavez, fundação de Frei Lourenço Mendes, a qual divide esta Província da de Trás-os-Montes. Junto dela estava um túmulo e nele sepultado o Mestre, que a obrara, com um letreiro, que dizia: Esta é a ponte de Cavez, aqui jaz quem a fez. Ha poucos anos a desfizeram para outra obra” (COSTA, 1706, I: 151).
Para a memória colectiva, a duração manifesta-se uma realidade muito relativa…
Longe dos tempos em que os confrontos físicos abalavam a festa, as celebrações em honra de São Bartolomeu concentram-se na imagem do Santo e na água da fonte milagrosa, para onde convergem longas filas de romeiros à espera da generosidade do Santo.
A festa de São Bartolomeu de Cavez manifesta uma riqueza simbólica ímpar. Antes de mais, pelo contexto de liminaridade. No tempo de Camilo Castelo Branco, a ponte de Cavez ainda delimitava as províncias do Minho e de Trás-os-Montes, territórios e identidades assumidamente distintos. Junto à ponte, numa margem localiza-se a fonte sulfurosa e na outra a capela, ambas associadas a São Bartolomeu. A demarcação cavada pelo rio Tâmega e pela fronteira coabita com a passagem permitida pela ponte dando azo a uma dinâmica que tanto separa como aproxima as entidades humanas e sagradas envolvidas. Trata-se de uma configuração propícia ao investimento simbólico, à crença, ao ritual e ao excesso.
A ponte de Cavez foi construída, eventualmente com mão do diabo, por uma figura, Frei Lourenço Mendes, que se tornou lendária. É certo que há memória de confrontos entre localidades vizinhas em muitas festas, mas não tão ritualizados, endiabrados e trágicos com entre as rusgas de ambas as margens na ponte de Cavez. No conto camiliano “Como ela o amava”, o morgado ébrio põe cobro às negociações entre as rondas rivais nos seguintes termos: “Não há convenções! O mundo acaba-se aqui hoje!” A ponte, arquétipo de ponto de passagem, de traço de união, ergue-se como o lugar onde se suspendem as convenções, um lugar entre mundos, um lugar onde, como sentencia o morgado, acabam os mundos. Em suma, um tabuleiro diabólico, atendendo ao sentido etimológico do verbo grego diabolus: meter-se no meio, atravessar o caminho, separar, dividir, fazer tropeçar e cair. A ponte e suas imediações transformam-se num palco de desordem. “O diabo anda à solta”. Desordem que se manifesta, antes de mais, na violência e na sexualidade. No conto de Camilo o pomo da discórdia era uma mulher: morto o noivo, a mulher suicida-se.

S. Bartolomeu. Vale da Pinta. Séc. XV ou XVI. Com a corrente, o santo prende o diabo na mão esquerda, a sinistra, que simboliza o mal.
O pandemónio também se estende à folia pagã do arraial. Há memória de práticas ritualizadas de “rapto de mulheres”. Grupos de homens rodeavam uma mulher que desaparecia por um tempo. Algumas famílias fechavam as filhas em casa para as salvaguardar destes desmandos dionisíacos. Trata-se, também, de um ritual de separação.
Mas o primeiro sinal de desordem, de desconcerto do mundo, era dado pela afluência de enfermos e possessos. Vinham em grande número de muitas léguas em redor. Eram os primeiros a chegar. Acudiam à fonte e à capela para curar ora os corpos, ora as almas, ora ambos.
A noite de São Bartolomeu mergulha-nos na luta sem tréguas entre a ordem e a desordem, o bem e o mal, a luz e as trevas. Combate em que o santo é mestre. Nas suas viagens, libertou cidades assoladas pela idolatria e pelos espíritos malignos. Tal como São Bento, São Bartolomeu consta entre os grandes santos exorcistas. Cumpre-lhe converter a desordem em ordem. Regenerar as comunidades, as pessoas, os corpos e os espíritos. A marretada na cabeça, de cima para baixo, traz luz às trevas, apazigua os corpos e purifica os espíritos. Representado com o diabo acorrentado a seus pés, há, todavia, quem suspeite que o santo, na noite do dia 23 de Agosto, não resiste a dar-lhe, por um tempo, um pouco de lastro.
A fonte milagrosa suscita algumas conjecturas. Sulfurosa, irrompe das entranhas da terra, junto ao rio, em terra de ninguém. Não admira que tivesse sido entregue à guarda de São Bartolomeu, “um santo gravemente infesto a Satanás”. Esta conjugação do sulfuroso com o luminoso dota a fonte com uma força simbólica extraordinária, milagrosa. O imaginário popular reconhece-lhe uma potência sobrenatural. Tal como na capela, as correntes do santo fazem-se sentir na fonte. Com, pelo menos, tanta afluência e devoção.
Os testemunhos relativos à roupa abandonada junto à fonte justificam uma breve reflexão. Regra geral, as práticas ritualizadas seculares não são isentas de sentido. Banhar-se é um ato de purificação. Desnudar-se e mudar de roupa é um gesto simbólico de despojamento, exposição e renovação. São Bartolomeu foi esfolado vivo. Surge, aliás, em muitas imagens seja a segurar a própria pele (e.g. Juízo Final, no fresco de Michelangelo na Capela Sistina), seja em carne viva (e.g. a estátua de Marco d’Agrate na Catedral de Milão, de 1562, ou o quadro de Agnolo Bronzino, de 1556), seja a ser esfolado (e.g. a iluminura no Livro de Horas de Dom Manuel I, entre c. 1517 e c. 1538). Sem pele, o mártir São Bartolomeu fica completamente exposto ao olhar divino. Quem se despe e se banha, também se expõe ao poder da fonte milagrosa e do santo que a guarda com o diabo acorrentado. Quem abandona a roupa, nomeadamente interior, muda de pele, muda a sua segunda pele, a roupa: veste a nova e atira a velha, poluída, ao rio. Esta equação releva do pensamento mágico, mas a religiosidade popular costuma saciar a sede nas águas da magia. Esta interpretação pode parecer fantasiosa. Mas não é avulsa. Segundo José Ramos, “na festa de S. Bartolomeu, na foz do Porto, os fiéis cumprem o rito mergulhando no mar com fatos de papel para que as águas dissolvam a ‘pele velha’ e renasça um novo homem” (http://www.nova-acropole.pt/a_s_bartolomeu.html). São princípios e rituais homólogos.
Hoje, a romaria comporta arraial, tendas, procissão e fogo-de-artifício, mas não tem violência. Os demónios deixaram de a afligir. Ou S. Bartolomeu os prendeu de vez ou migraram para outras bandas, se calhar, para as capitais. E se algum se atreve aparecer, uma boa marretada afasta-o de vez.
Albertino Gonçalves
João Gonçalves
Tags: Cabeceiras de Basto, Cavez, devoção, diabo, festa, fonte, pele, ponte. liminaridade, São Bartolomeu, violência
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