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Surpresas. A vida em modo jazz.

Marretada de S. Bartolomeu. Cavez, Cabeceiras de Basto. Extraído de “A lenda da Ponte de Cavez e a Festa de São Bartolomeu” (Casa do Tempo de Cabeceiras de Basto. 2020): https://www.youtube.com/watch?v=cLhMDuIRsa4.

“Quando uma coisa foi dita e bem dita, não tenha escrúpulos: pegue e copie” (Anatole France).

“O homem com uma nova ideia é um excêntrico até que a ideia seja bem-sucedida” (Mark Twain).

Nunca direi que nada me surpreenderá! O meu mundo familiar é ínfimo e o desconhecido, infinito. Até a nós próprios nos surpreendemos. Estou a escrever o currículo. Devagar, porque a informação, embora modesta, está caótica. Estranho não me recordar de alguns textos, por sinal, recentes, tais como o posfácio “O abraço ao divino: a festa como experiência pessoal e social” (ver pdf anexo) para o livro Festa (Viana do Castelo, Associação Ao Norte e Filmes do Homem, 2018) editado no âmbito do projeto Quem somos os que aqui estamos?, a que pertenço. Encontrava-me, então, em plena crise da intoxicação: tremiam as mãos, a cabeça pendia, as pernas arrastavam, os olhos embaciavam, a língua balbuciava e o espírito cansava-se. Reli o artigo e, em parte, não me reconheci. Não tanto pela matéria mas pelo estilo. Demasiado prosaico, lacónico e perentório. Um texto sobre a festa pouco festivo, que lembra, curiosamente, os meus escritos de juventude, há quarenta anos. Como se tivesse regredido intelectualmente! Como compensação, proponho-me decorá-lo e animá-lo com imagens ao ponto de quase o transformar numa descomunal legenda.

Esperava-me outra surpresa. Logo o primeiro vídeo descoberto, dedicado à festa de São Bartolomeu de Cavez, deixou-me pasmado. O texto, bem lido e ilustrado a preceito, convoca praticamente um capítulo que escrevi com o meu filho João (ver A festa de S. Bartolomeu de Cavez: https://tendimag.com/2014/06/01/a-festa-de-s-bartolomeu-de-cavez/), em 2013, por encomenda da câmara de Cabeceiras de Basto, para o livro Cabeceiras de Basto: História e Património, coordenado por Isabel Maria Fernandes. Assumido como domínio público, esta surpresa acaba por me encantar: as imagens, a voz e o texto compõem um bom conjunto num belo documentário. Por último, but not the least, manifesta uma primeira confirmação de uma qualidade literária que muitos menosprezam mas que eu deliberadamente procuro: uma escrita amiga da oralidade.

Não consigo escamotear a questão: neste mundo de fast thinking, quem pensa fora dos nichos de cortesia e troca de valores (favores) está condenado a ser copiado e não citado, a inspirar sem ser referido? Não me quero expor a ser mais uma vez admoestado como um velho do Restelo de pouca ou má fé. Cumpre-me admitir que ainda subsiste o outro lado da máscara, muito quem resista, cite e reconheça, sem ser em enésima mão, fontes e relíquias invulgares, contanto não fardadas nem milagrosas.

A lenda da Ponte de Cavez e a Festa de São Bartolomeu. Casa do Tempo de Cabeceiras de Basto. 2020.

Anjo da guarda

Paula Rego. Anjo da Guarda. 1998.

O Tendências do Imaginário está doente. Está em estado de inércia, com as visualizações pasmadas: nem sobem nem descem.

Escuro. De olhos no céu. Atado de pés e mãos. Dor. Exposto. Um vulto aproxima-se: – O senhor é um manipulador! Um grande manipulador! Há muitos que estão no seu estado e que não são manipuladores, mas o senhor é um grande manipulador. Não devia ter rasgado a fralda. Não, não devia ter rasgado a fralda! – Foi a minha mulher ao puxá-la. – O senhor é um mentiroso, um grande mentiroso… Afasta-se. Consegui libertar três membros. Entretanto, não sei após quanto tempo, regressa. Aperta-me os pulsos, retira o telemóvel, muda a cama encharcada e as fraldas desconsoladas. Não há anjos em terra, não há anjos no céu, protegem-nos no purgatório (Diálogo inspirado nos Cadernos do Subterrâneo, de Fiódor Mikhailovitch Dostoiévski, de 1864).

Eu não o vejo, eu não o oiço
Mas sinto sempre a sua companhia
Eu tenho um guarda que é um anjo
Que me protege de noite e de dia
(António Variações. Anjinho da Guarda. Anjo da Guarda. 1983.

Valentin de Boulogne. O Martírio de São Bartolomeu. ca. 1613–15.

Nos meses de Julho e Agosto, estive 21 dias internado no Hospital. Uma semana em cuidados intensivos. Regressado a casa, começo a reganhar, milagrosamente, as faculdades perdidas. Mas ao quinto dia, uma dor insinua-se nas costas e espalha-se, no dia seguinte, pelo abdómen. Vómitos. Mais uma corrida, no INEM, para as urgências do Hospital. Nova cirurgia: extração da vesícula biliar. Estou, desde ontem, em convalescença doméstica. Confuso. Que convalescença? Do Lítio? Da vesícula? Sinto-me um esfrangalho, aninhado como uma múmia, a tentar preservar o melhor que tenho: o sentido de humor e o sentido de beleza. Com quatro furos na barriga e os braços apontados ao Indiana Jones.

A escultura convida o gesto e a pintura assoberba o olhar, mas a música envolve-nos. A primeira música é para o período antes de tomar o ben-u-ron. A segunda, para depois.

Antes do ben-u-ron:

Vangelis. 12 O’clock. Heaven and Hell. 1975.

Após o ben-uron_

Joshua Bell. Sergei Rachmaninov. Vocalise, Op 34 No 14.

A Festa de S. Bartolomeu de Cavez

Cabeceiras  de Basto. História e Património

Estudei, com o João Gonçalves, seis festas populares do concelho de Cabeceiras de Basto.
Os resultados estão publicados, em vários textos no livro Cabeceiras de Basto: História e Património (2013). Segue um excerto, com imagens novas, respeitante à Festa de S. Bartolomeu de Cavez; ao confronto entre a ordem e a desordem, numa noite endiabrada.

Miguel Ângelo. Juízo Final. 1535-1541. Pormenor com S. Lourenço e S. Bartolomeu (com o cutelo numa mão e a pele na outra)

Miguel Ângelo. Juízo Final. 1535-1541. Pormenor com S. Lourenço e S. Bartolomeu (com o cutelo numa mão e a pele na outra)

 

São Bartolomeu de Cavez

É impossível compreender a festa de São Bartolomeu de Cavez sem referir a curiosa geografia que a envolve. A festa decorre nas margens do Tâmega, junto à ponte de Cavez. Cada margem tem a sua valência, para o lado do Minho, a capela de São Bartolomeu, que pertence a uma propriedade privada, a Quinta da Casa da Ponte, e para o lado de Trás-osMontes, a fonte milagrosa de água sulfurosa. Ambas são centrais para a festa e identidade da freguesia e ambas estão à guarda de São Bartolomeu.

Ponte de Cavez. Cabeceiras de Basto

Ponte de Cavez. Cabeceiras de Basto

Agnolo Bronzino. São Bartolomeu. 1556

Agnolo Bronzino. São Bartolomeu. 1556

A festa de São Bartolomeu realiza-se, em Cavez, todos os anos, nos dias 23 e 24 de Agosto. Camilo Castelo Branco descreve, nas Noites de Lamego, os temíveis confrontos que, “segundo o bárbaro estilo daquela romagem” (Branco, Camilo Castelo, Maria Moisés, 1876, Biblioteca Digital, Porto Editora, p. 27), se desenrolavam sobre a ponte entre minhotos e transmontanos. Alexandre Teixeira recorda os preparativos da contenda: “atempadamente as duas partes tratavam de arranjar os melhores caceteiros da região para se baterem por causas que às vezes nem lhe diziam nada. E assim no dia 23 de Agosto lá se reuniram em plena noitada para concertar o plano de ataque ao grupo contrário e a coisa acontecia da seguinte forma: armados de paus de lódo estavam todos os intervenientes e alguns até tinham no bolso a fusca para dar uns tiros se fosse preciso. À frente uma concertina entoando marchas marciais em passo de corrida, atrás os caceteiros com os paus virados ao alto tocando-se nas extremidades pronunciando uma batalha prestes a acontecer. Atravessavam a ponte repetidamente e quando as rusgas se cruzavam aconteciam provocações de parte a parte, até acontecer o confronto físico.” (Teixeira, Alexandre, 2010, “S. Bartolomeu da ponte de Cavez”, jornal Ecos do Basto, edição de 21-06-2010, http://www.ecosdebasto.com/noticia.asp?idEdicao=159&id=5772&idSeccao=1525&Action=noticia). Outra testemunha de longa memória confirma: “Aquilo era a sério, senhor. Chegava a haver mortes”. Com murros, paus e até armas de fogo, era na noite do dia 23 que se ajustavam as contas de amor, dinheiro e outras desavenças.

Apesar da reputação aguerrida dos confrontos da festa de São Bartolomeu, muitos peregrinos acorriam à festa em busca de outro tipo de pancada: a “marretada”, exorcista, do Santo. A romaria à capela de São Bartolomeu já é mencionada nas memórias paroquiais de 1758. Sendo a capela propriedade privada, os caseiros abrem a porta aos crentes que demandam o Santo.

Matteo di Giovanni. O Apóstolo S.  Bartolomeu, c. 1480

Matteo di Giovanni. S. Bartolomeu, c. 1480

Segundo testemunho dos caseiros, todos os fins-de-semana recebem pessoas, o que indica que a tradição se mantém viva. No centro da capela, e da tradição, encontra-se a imagem de São Bartolomeu a pisar o diabo. O ritual a que os romeiros são submetidos assevera-se simples. Dentro da capela, prestada homenagem ao Santo, a pessoa suposta possessa recebe, literalmente, uma pancada na cabeça. A imagem, erguida com ambas as mãos, desce ao encontro da testa do visitante com um ligeiro, mas decidido, toque. Em Cavez, a conta destes exorcismos não tem fim. Vêm pessoas de longe, por exemplo do Brasil, para experimentar a marretada de São Bartolomeu.

Marco d'Agrate. São Bartolomeu. Catedral de Milão. 1562.

Marco d’Agrate. São Bartolomeu. Catedral de Milão. 1562.

A capela e a imagem não são a única forma de o Santo fazer milagres. Na outra margem do rio, uma descida, melhorada por promessa de uma emigrante, conduz a uma fonte, também ela milagrosa. As memórias paroquiais de 1758 descrevem o fenómeno: “Junto ao rio Tamega nasce huma fonte tenue que se chama fonte de São Barthollameo e sabe a agoa de enxofre” (Capela, José Viriato, 2003, As Freguesias do Distrito de Braga nas Memórias Paroquiais de 1758, Braga, p. 223). O caudal da fonte é ténue, mas certo e a flora envolvente contribui para a aura sobrenatural da pia.

Fonte de S. Bartolomeu. Cavez. Cabeceiras de Basto.

Fonte de S. Bartolomeu. Cavez. Cabeceiras de Basto.

À água são atribuídas propriedades curativas, sobretudo para as doenças da pele. Há indícios de que a fonte foi associada, em tempos recuados, no final da Idade Média, a uma gafaria. Acredita-se que o efeito da água da fonte aumenta nos dias de festa. Ainda é prática usual beber a água da fonte ou levá-la para casa em garrafas e garrafões. Não vai muito tempo, durante a festa, quando os ânimos guerreiros se exaltavam, os transmontanos desafiavam “Vinde à Fonte! Vinde à Fonte!”; do outro lado, os minhotos gritavam “Vinde ao Santo! Vinde ao Santo!”

No centro da crença e da festa está a Ponte de Cavez, cuja construção, no século XIII, é motivo de lenda. Esteve por duas vezes para ser construída em locais a montante de onde se encontra hoje. Quando os trabalhadores começavam a construção, uma voz dizia-lhes “aqui não!” e o local da obra ficava completamente alagado. Por duas vezes a voz advertiu os trabalhadores e por duas vezes estes se viram incapazes de prosseguir a obra. À terceira tentativa a voz não se manifestou, e a Ponte de Cavez foi edificada no local que hoje ocupa.

S. Bartolomeu. Vale da Pinta. Medieval.

S. Bartolomeu. Vale da Pinta. Medieval.

O próprio responsável pela obra está envolto em mistério. Conta-se que Frei Lourenço Mendes, o promotor da construção, morreu imediatamente após a conclusão da obra. Alguns vaticinam que foi o excesso de alegria que o vitimou, enquanto outros falam de um acordo com o diabo que permitiu que a ponte terminasse no prazo. Terá sido sepultado junto a uma das cabeceiras da ponte com a seguinte inscrição: “Esta é a ponte de Cavez e aqui jaz quem a fez”. A fazer fé na memória das pessoas, o túmulo terá sido demovido há algum tempo. O mesmo dizia António Carvalho da Costa há mais de trezentos anos: “S. João de Cavez, Vigairaria do Convento de Pombeiro, tem setenta vizinhos. Nesta Freguesia está sobre o rio Tâmega a ponte de Cavez, fundação de Frei Lourenço Mendes, a qual divide esta Província da de Trás-os-Montes. Junto dela estava um túmulo e nele sepultado o Mestre, que a obrara, com um letreiro, que dizia: Esta é a ponte de Cavez, aqui jaz quem a fez. Ha poucos anos a desfizeram para outra obra” (COSTA, 1706, I: 151).

Para a memória colectiva, a duração manifesta-se uma realidade muito relativa…

Longe dos tempos em que os confrontos físicos abalavam a festa, as celebrações em honra de São Bartolomeu concentram-se na imagem do Santo e na água da fonte milagrosa, para onde convergem longas filas de romeiros à espera da generosidade do Santo.

Pierre Le Gros, o Novo. Bartholomaeus. San Giovanni in Laterano. Início séc. XVIII

Pierre Le Gros, o Novo. Bartholomaeus. San Giovanni in Laterano. Início séc. XVIII

A festa de São Bartolomeu de Cavez manifesta uma riqueza simbólica ímpar. Antes de mais, pelo contexto de liminaridade. No tempo de Camilo Castelo Branco, a ponte de Cavez ainda delimitava as províncias do Minho e de Trás-os-Montes, territórios e identidades assumidamente distintos. Junto à ponte, numa margem localiza-se a fonte sulfurosa e na outra a capela, ambas associadas a São Bartolomeu. A demarcação cavada pelo rio Tâmega e pela fronteira coabita com a passagem permitida pela ponte dando azo a uma dinâmica que tanto separa como aproxima as entidades humanas e sagradas envolvidas. Trata-se de uma configuração propícia ao investimento simbólico, à crença, ao ritual e ao excesso.

A ponte de Cavez foi construída, eventualmente com mão do diabo, por uma figura, Frei Lourenço Mendes, que se tornou lendária. É certo que há memória de confrontos entre localidades vizinhas em muitas festas, mas não tão ritualizados, endiabrados e trágicos com entre as rusgas de ambas as margens na ponte de Cavez. No conto camiliano “Como ela o amava”, o morgado ébrio põe cobro às negociações entre as rondas rivais nos seguintes termos: “Não há convenções! O mundo acaba-se aqui hoje!” A ponte, arquétipo de ponto de passagem, de traço de união, ergue-se como o lugar onde se suspendem as convenções, um lugar entre mundos, um lugar onde, como sentencia o morgado, acabam os mundos. Em suma, um tabuleiro diabólico, atendendo ao sentido etimológico do verbo grego diabolus: meter-se no meio, atravessar o caminho, separar, dividir, fazer tropeçar e cair. A ponte e suas imediações transformam-se num palco de desordem. “O diabo anda à solta”. Desordem que se manifesta, antes de mais, na violência e na sexualidade. No conto de Camilo o pomo da discórdia era uma mulher: morto o noivo, a mulher suicida-se.

S. Bartolomeu. Vale da Pinta. Séc. XV ou XVI. Com a corrente que prende o diabo na mão esquerda, que simboliza o mal.

S. Bartolomeu. Vale da Pinta. Séc. XV ou XVI. Com a corrente, o santo prende o diabo na mão esquerda, a sinistra, que simboliza o mal.

O pandemónio também se estende à folia pagã do arraial. Há memória de práticas ritualizadas de “rapto de mulheres”. Grupos de homens rodeavam uma mulher que desaparecia por um tempo. Algumas famílias fechavam as filhas em casa para as salvaguardar destes desmandos dionisíacos. Trata-se, também, de um ritual de separação.

Mas o primeiro sinal de desordem, de desconcerto do mundo, era dado pela afluência de enfermos e possessos. Vinham em grande número de muitas léguas em redor. Eram os primeiros a chegar. Acudiam à fonte e à capela para curar ora os corpos, ora as almas, ora ambos.

A noite de São Bartolomeu mergulha-nos na luta sem tréguas entre a ordem e a desordem, o bem e o mal, a luz e as trevas. Combate em que o santo é mestre. Nas suas viagens, libertou cidades assoladas pela idolatria e pelos espíritos malignos. Tal como São Bento, São Bartolomeu consta entre os grandes santos exorcistas. Cumpre-lhe converter a desordem em ordem. Regenerar as comunidades, as pessoas, os corpos e os espíritos. A marretada na cabeça, de cima para baixo, traz luz às trevas, apazigua os corpos e purifica os espíritos. Representado com o diabo acorrentado a seus pés, há, todavia, quem suspeite que o santo, na noite do dia 23 de Agosto, não resiste a dar-lhe, por um tempo, um pouco de lastro.

Irmãos Limbourg. The Belles Heures of Jean, Duke of Berry. France, provavelmente Paris, 1406–1408.

Irmãos Limbourg. The Belles Heures of Jean, Duke of Berry. França, provavelmente Paris, 1406–1408.

A fonte milagrosa suscita algumas conjecturas. Sulfurosa, irrompe das entranhas da terra, junto ao rio, em terra de ninguém. Não admira que tivesse sido entregue à guarda de São Bartolomeu, “um santo gravemente infesto a Satanás”. Esta conjugação do sulfuroso com o luminoso dota a fonte com uma força simbólica extraordinária, milagrosa. O imaginário popular reconhece-lhe uma potência sobrenatural. Tal como na capela, as correntes do santo fazem-se sentir na fonte. Com, pelo menos, tanta afluência e devoção.

Stefan Lochner. Martírio de S. Bartolomeu. 1435.

Stefan Lochner. Martírio de S. Bartolomeu. 1435.

Os testemunhos relativos à roupa abandonada junto à fonte justificam uma breve reflexão. Regra geral, as práticas ritualizadas seculares não são isentas de sentido. Banhar-se é um ato de purificação. Desnudar-se e mudar de roupa é um gesto simbólico de despojamento, exposição e renovação. São Bartolomeu foi esfolado vivo. Surge, aliás, em muitas imagens seja a segurar a própria pele (e.g. Juízo Final, no fresco de Michelangelo na Capela Sistina), seja em carne viva (e.g. a estátua de Marco d’Agrate na Catedral de Milão, de 1562, ou o quadro de Agnolo Bronzino, de 1556), seja a ser esfolado (e.g. a iluminura no Livro de Horas de Dom Manuel I, entre c. 1517 e c. 1538). Sem pele, o mártir São Bartolomeu fica completamente exposto ao olhar divino. Quem se despe e se banha, também se expõe ao poder da fonte milagrosa e do santo que a guarda com o diabo acorrentado. Quem abandona a roupa, nomeadamente interior, muda de pele, muda a sua segunda pele, a roupa: veste a nova e atira a velha, poluída, ao rio. Esta equação releva do pensamento mágico, mas a religiosidade popular costuma saciar a sede nas águas da magia. Esta interpretação pode parecer fantasiosa. Mas não é avulsa. Segundo José Ramos, “na festa de S. Bartolomeu, na foz do Porto, os fiéis cumprem o rito mergulhando no mar com fatos de papel para que as águas dissolvam a ‘pele velha’ e renasça um novo homem” (http://www.nova-acropole.pt/a_s_bartolomeu.html). São princípios e rituais homólogos.

Hoje, a romaria comporta arraial, tendas, procissão e fogo-de-artifício, mas não tem violência. Os demónios deixaram de a afligir. Ou S. Bartolomeu os prendeu de vez ou migraram para outras bandas, se calhar, para as capitais. E se algum se atreve aparecer, uma boa marretada afasta-o de vez.

 

Albertino Gonçalves

João Gonçalves