Comparsas

Simplesmente diferentes, incondicionais da cerveja Borsodi, paladinos da frescura alheios à boçalidade alheia.
Aproveito para sugerir a visita a dois artigos: Quando o vigiado se torna vigilante e Albert Camus: sinónimo de liberdade.
Queima-santos

Ontem à noite vi o filme Diamantino (2018), de Gabriel Abrantes e Daniel Schmidt, que uma colega amiga, a Isabel Macedo, teve a gentileza de me proporcionar. Mais um caso em que o humor e a fantasia se insinuam como via de acesso à realidade! Quase premonitório.
No rescaldo do Mundial de Katar, surpreendi-me a cogitar sobre o poder do pontapé. Um único pontapé é capaz de consagrar ou humilhar, de promover um jogador, ou uma equipa, a herói divino ou reduzi-lo a figurante desgraçado. No Mundial, foram muitos, demasiados, os jogos decididos por desempate por grandes penalidades. Até a final! Manifesta-se assombroso o alcance planetário de um simples pontapé! Pontapé na bola; pontapé no mundo! Resulta resplendor ou apagamento, anjo ou besta. Fenómeno pouco lógico, porventura mágico-religioso. Em verdade vos digo, a sensatez humana não vale um tostão.
Eutirox é um medicamento incómodo. Tomado de manhã em jejum, convém aguardar meia hora até ao pequeno almoço. No intervalo, acontece recostar-me a ouvir música e voltar a adormecer. Momento propício a sonhos que o acordar costuma recordar.
Hoje, em sonho, regressei à infância, irritado com a nomeada de queima-santos atribuída aos residentes de Prado (São Lourenço), minha terra natal. Desviado o olhar para o mapa, os limites da freguesia começam a expandir-se até coincidir com o País, Portugal (Santa Maria), agora travestido de “mátria” de queima-santos! Novo salto até à Alumiada a S. Tomé, na freguesia de Penso, em Melgaço. Fachos de palha de centeio incendeiam a noite (ver vídeo 3). Os participantes acabam por se juntar numa fogueira colossal (vídeo). Mas, em vez de São Tomé, aparecem São Cristiano e São Fernando, consumidos pelas chamas como o boneco, também de palha, do “entroido” de Castro Laboreiro. Tomados por uma fé avessa a falhas (pecados? traições?), atentos aos profetas da comunicação social, os queima-santos sentam-se à volta da fogueira, à espera de novas epifanias, novos êxtases e novas santificações.
Acordei envergonhado com o meu subconsciente.
Há vinte anos escrevi um artigo dedicado ao futebol. Desde então muita água correu; o texto permaneceu enxuto. Permito-me recolocá-lo.
Magia: A Fisioterapia e a Vida

O anúncio “Caring Makes Magic”, do Centro Médico Montefiore, de Nova Iorque, sensibiliza. Convoca duas histórias, que acabam por se cruzar no final de uma forma desconcertante mas eloquente, com protagonistas que vivem em dois mundos, sem se saber qual o mais real e o mais fantástico.
Physical therapy is often a slow process, but the rewards are powerful. In this year’s holiday spot, Montefiore Einstein shows the recovery of a toy store owner, how it impacts his life and many others – real and imagined.
Dual plotlines depict the sleepless nights and pain that a store owner has to endure, juxtaposed against characters atrophying in a holiday display within the man’s toy shop window. One boy complains: “My skates don’t work.” A vendor says there are “No cookies. No nothing.” Without the store owner, they are lost.
After pushing himself to recover and bonding with his physical therapist, we see our hero running up the stairs and, soon, back at his store. There, he brings the village back to life. Soon skates and sleds work. The fire at the roasted chestnuts stand ignites. Even the chestnut vendor’s hair grows back (…)
We see the store owner happily driving the train through his toy village and find the boy who had lived in the display suddenly outside the store window. Sound confusing? It kind of is, but it certainly gives us something to think about and a reason to watch again.
In the end, the key message – that “caring makes magic” – is driven home quite poetically (Kenneth Hein. Nearly three minutes of holiday delight offer dual story lines and one important message. The Drum: https://www.thedrum.com/news/2022/12/05/us-ad-the-day-montefiore-einstein-shows-the-power-healing-and-the-holidays).
(re)encontro

O Departamento de Sociologia da Universidade do Minho, a Câmara de Melgaço e o Centro de Ciências em Comunicação entenderam por bem dedicar-me um momento de convívio na próxima terça, dia 29 de novembro, às 17:30, no museu D. Diogo de Sousa, em Braga. Suspeito que será mais uma festa do que uma cerimónia, menos fim de percurso e mais uma nova fase: “o primeiro dia do resto da vida”. Estou, em boa hora, aposentado, mas não arrumado. Intervêm Carlos Veiga, Manoel Batista, Madalena Oliveira e, em particular, Moisés de Lemos Martins, Álvaro Domingues, Rita Ribeiro, o Grupo Etnográfico da Casa do Povo de Melgaço e Francisco Berény Domingues. Alice Matos e António Joaquim Costa aceitaram moderar. Pelo meio, ensaiarei corresponder com um pequeno arremedo de aula para enganar saudades. Após a apresentação do livro Sociologia Indisciplinada, será servido um alvarinho de honra, com roscas de Melgaço.


Venha! Se é antigo aluno, traga, propiciando-se, um docinho para saborear o reencontro: um charuto, de Arcos de Valdevez; uma queijada, de Barcelos; uma sameirinha ou uma tíbia, de Braga; um miguelito, de Cabeceiras de Basto; um caminhense ou cerveirense, de Caminha ou Cerveira; uma passarinha ou um sardão, de Guimarães; uma fatia de bucho doce, de Melgaço; um biscoito de milho, de Paredes de Coura; um magalhães, de Ponte da Barca; uma castanhola, de Ponte de Lima; uma rocha do pilar, da Póvoa de Lanhoso; um beneditino, de Terras do Bouro; um sidónio ou uma bola de Berlim, de Viana do Castelo; uma broinha de amor, de Vila Verde… Com alvarinho, tudo cai bem!
Samba digestivo
Habituamo-nos ao protagonismo do samba na publicidade, por exemplo nos anúncios ao futebol. Mas ao trânsito digestivo!…
O abraço ao divino: a experiência pessoal e social da festa (texto ilustrado)
“A festa é um excesso permitido, ou melhor, obrigatório” (Freud, Sigmund, 1913, Totem e Tabu).
As festas circunscrevem-se no tempo e no espaço. “A festa tem uma data e é uma data” (SCZARNOWSKI, Stefan & Hubert, Henri, 1919, Le culte des héros et ses conditions sociales, Paris, F. Alcan): a festa de S. Lourenço é no dia 10 de Agosto (tem uma data); 10 de Agosto é o dia de S. Lourenço (é uma data); para quem é devoto de S. Lourenço, o dia 10 de Agosto é dia santo.

A origem da maior parte das festas é remota e rural. A sua configuração altera-se em função do calendário agrícola. Consumadas as colheitas, por altura do S. Miguel, a natureza mostra-se, no outono e no inverno, menos generosa. Quem não tem pão no celeiro, porco na corte e vinho na adega, passa mal. As famílias recolhem-se e o convívio afrouxa. Neste contexto de carência, as festas apelam à coesão social e à generosidade. As festas de São Martinho, de São Nicolau, do Natal, dos Reis ou de São Sebastião caracterizam-se todas pela ideia da dádiva e de partilha. São Martinho reparte a capa, a caridade de S. Nicolau é proverbial, o Menino nasce na pobreza, cantam-se de porta em porta as janeiras pedindo as sobras da época natalícia e S. Sebastião benze banquetes gigantescos.

No verão, no auge das colheitas, as festas querem-se de excesso e abundância. Lúdicas e efervescentes, transvasam do adro para o terreiro e, do terreiro, para os (des)caminhos. Algumas festas celebram o poder das instituições, como o Corpo de Deus, outras, a potência popular, como o Santo António, o São João e o São Pedro.
Entre a melancolia do inverno e a euforia do verão, intercalam-se o Carnaval e a Páscoa. O Carnaval enterra o velho, a austeridade invernal, e prenuncia a renovação da natureza e da vida coletiva que a Páscoa, a seu tempo, celebra. O reforço dos laços sociais na Páscoa não é o mesmo das festas do inverno. No inverno, governam-se as reservas, o passado; a Páscoa é compassada pela promessa; mobilizam-se as pessoas e os recursos, semeia-se a abundância futura. Os novos tempos são mais de “amaiantes”[i] do que de nicolinos, mais milho que pinheiro.

Mito ou realidade, as sociedades ditas rurais esfumaram-se. E as festas mudaram. Algumas viram-se para os turistas e os forasteiros. São “festas extrovertidas”. Notável foi o ajustamento do calendário das festas ao regresso sazonal dos emigrantes. Muitas festas transitaram para o verão. Com o decréscimo de emigrantes em férias, algumas festas perderam um pouco de tudo: raízes, tronco, ramos e folhas.
A duração de uma festa pode extravasar os dias programados. Existem festas que começam antes e acabam depois: bailes, música, sorteios, quermesses, decoração… No início do século XX, a Romaria d’Agonia, por volta do dia 20 de Agosto, animava Viana do Castelo desde a primeira barraca a instalar-se, dias antes, até à última a desmontar-se, no início de Setembro (Martins, Moisés, Gonçalves, Albertino, Pires, Helena, 2000, A Romaria da Srª da Agonia, Viana do Castelo, Grupo Desportivo e Cultural dos Trabalhadores dos Estaleiro Navais de Viana do Castelo, p. 29).
Mas não são estas dimensões do tempo que desejo abordar. Cíclicas, as festas evoluem em tempos e espaços extraordinários. O início da festa é estrondosamente anunciado: foguetes, paradas, bombos ou arruadas inauguram a suspensão da ordem e a abertura dos festejos. Uma derradeira salva assinala o regresso à normalidade. Entretanto, vivencia-se uma experiência extraordinária e numinosa. O divino aproxima-se dos seres humanos. O sagrado e o profano exacerbam-se. A presença do sagrado intensifica-se, por um tempo, nos espaços demarcados (com bandeiras, arcos, iluminação). Se o divino se aproxima do humano, o humano expõe-se ao divino, por exemplo, através da oração, das promessas e das penitências. Acredita-se que, no período da festa, no devido local, o santo é mais milagreiro. Em Cavez, assegura-se que a fonte sulfurosa de S. Bartolomeu tem mais cheiro e faz mais milagres no dia do santo (Gonçalves, Albertino & Gonçalves João, 2014, A Festa de S. Bartolomeu de Cavez: https://tendimag.com/?s=bartolomeu). Na festa de S. Tiago das Bichas, a ocasião também era única. As bichas (sanguessugas) escolhiam o dia da sua intervenção milagrosa: “Há ao pé desta igreja um ribeiro, em dia de São Tiago, que é o orago, concorre muita gente a tomarem bichas para sararem de várias enfermidades. E é tradição antiga que só naquele dia se achavam no dito ribeiro que se chama de S. Tiago” (Capela, José Viriato, As freguesias do distrito de Braga nas Memórias Paroquiais de 1758, Braga, 2003, p. 224).
Cada festa traça a sua geografia simbólica. O romeiro pressente-o. Os lugares não ostentam o mesmo valor. Cresce desde o espaço de transição para o sagrado até à imagem do santo, passando pelo exterior e o interior do templo. À medida que se avança, os gestos e as palavras mudam, num sinal de respeito e devoção. Para trás, fica o mundo, a hora é de despojamento e oração. Importa tocar, beijar e agradecer ao santo. A devoção e a penitência procuram o sagrado: à volta da igreja, junto a um rochedo, na sombra de uma gruta ou na frescura de uma fonte. Onde o divino estiver, está o romeiro.
O acesso aos lugares sagrados pode ser especialmente cuidado. Alguns santuários têm escadórios: Nossa Senhora da Peneda, Bom Jesus do Monte, Nossa Senhora dos Remédios (Lamego) ou o Escadório das Virtudes, no Mosteiro de Tibães. Convidam os romeiros ao esforço da aproximação, pela ascensão, ao divino. Ladeados por esculturas e pinturas, alusivas, mormente, ao Calvário, estes escadórios propiciam uma ascese e uma catequese pela imagem. Mas, com a localização frequente das igrejas e das capelas no cume da paisagem, a ascensão sofrida dispensa escadórios. Por exemplo, o acesso à capela de São Romão no topo da Citânia de Briteiros é tão íngreme e inóspito que supera qualquer escadório em termos de sacrifício.
Nas igrejas, os devotos aproximam-se dos santos. Este é o magnetismo geral. Mas assim como, na lenda, Nossa Senhora da Orada se esgueirava todos os dias da capela para acudir às vítimas da peste em Riba do Mouro (Campelo, Álvaro, Lendas do Vale do Minho, Valença, Associação de Municípios do Vale do Minho, 2002), a santidade pode sair da igreja para se aproximar das pessoas. Durante a procissão, o santo irradia a sua aura sagrada e abençoa o território. A procissão de S. Sebastião das Papas, nas freguesias de Samão e Gondiães, é um bom exemplo (Gonçalves, Albertino & Gonçalves, João, 2013, “Entre o Céu e a Terra: Festas e Romarias de Cabeceiras de
Basto”, in Cabeceiras de Basto: História e Património, Câmara Municipal de Cabeceiras de Basto, 2013, p. 188-203). Detém-se para o santo benzer a broa e as papas para o banquete. Consta que a broa benzida, milagrosa, não apodrece. Testemunho de que o divino e o humano se aproximam reciprocamente, na referida procissão, S. Sebastião, o santo, é apeado para ser beijado pelos devotos. Outras procissões percorrem a paróquia, por exemplo, a procissão de velas, mas a mais sagrada e a mais abrangente é o compasso pascal. O beijo à imagem de Cristo, lugar a lugar, casa a casa.
A cartografia da festa é móvel. Pode mudar de ano para ano, de dia para dia e, até, de hora para hora. O valor e o significado do espaço mudam tal como muda a relação entre o profano e o sagrado, ora distantes, ora encostados, ora justapostos. À noite, durante o arraial, o profano expande-se. De dia, a procissão dissemina, por um tempo, o esplendor do sagrado a toda a paróquia.
A relação entre o profano e o sagrado é um tema recorrente e polémico. Ao longo da história, a posição da Igreja tem oscilado, consoante os contextos e as políticas. A tendência vai no sentido de não admitir o profano nas barbas do santo, adotando-se as medidas estimadas necessárias. No final dos anos 1920, o combate ao “sol pagão” esteve ao rubro. Na Festa d’Agonia, ameaçou-se silenciar os sinos. O problema não é apenas físico, corporal. A distância visual e a distância auditiva também contam. Os sinos, os foguetes, a música e os altifalantes são intrusivos e controversos. De ambas as partes.
Não é apenas a relação entre o sagrado e o profano que condiciona a dinâmica das festas. Além do clero, muitas entidades intervêm na programação das festas: a confraria, a comissão, as organizações e as associações locais… Cada um com os seus interesses e as suas perspetivas. A Festa d’Agonia, na viragem do século XIX para o século XX, constitui um caso exemplar (Martins, Moisés, Gonçalves, Albertino, Pires, Helena, 2000, A Romaria da Srª da Agonia, Viana do Castelo, Grupo Desportivo e Cultural dos Trabalhadores dos Estaleiro Navais de Viana do Castelo, p. 21-58).

Quem faz a festa é o povo. Não organiza, nem programa, nem executa, mas faz a festa. Dá-lhe seiva, corpo e alma. Sem povo, não há festa. As festas não morrem por falta de celebração ou de espetáculo, agonizam por falta de afluência. Oferecendo-se a festa como uma cristalização identitária da comunidade, assevera-se preocupante ver as festas e os lugares sem gente, a apagar-se. Mas o que mais surpreende não é o desaparecimento desta ou daquela festa, é a resiliência das populações e a sobrevivência das festas, a contracorrente do esvaziamento demográfico e da desvitalização social. É certo que o esvaziamento e a desvitalização são, em parte, compensados pela população flutuante, que tende a aumentar nos períodos festivos. O fenómeno revela-se, mesmo assim, notável. A fazer fé nos censos da população, em cinquenta anos, entre 1960 e 2011, a população de Castro Laboreiro decresceu de 1 941 para 540 residentes, reduzindo-se para cerca de um quarto. Por sua vez, entre 2001 e 2011, em apenas dez anos, o valor do índice de envelhecimento duplicou, subindo de 640 idosos por 100 jovens para 1 561 idosos por 100 jovens (17 jovens até 14 anos e 266 idosos com 65 e mais anos). Em 2011, metade (49,3%) da população residente tinha 65 ou mais anos de idade. Estes números não impedem que, com mais ou menos gente, a festa se faça. Na freguesia de Castro Laboreiro ocorrem, concentradas no verão, 11 festas religiosas: 2 em Julho, 5 em Agosto e 4 em Setembro. Em média, uma festa por semana! (União das Freguesias de Castro Laboreiro e Lamas de Mouro: http://www.castrolaboreiro-lamasdemouro.com/?m=festas&id=2703).
A festa é um negócio, que contribui para a economia local, incluindo a Igreja. Para além da salvação das almas, convém cuidar da satisfação dos corpos. A realização de uma festa envolve uma série de empresas, profissões e atividades convocadas: ornamentação, pirotecnia, publicidade, ex-votos, animação, som, iluminação, montagem de estruturas, roupas, bandas de música, música popular, fanfarras, ranchos folclóricos, quermesses, abarracamento (comes e bebes, brinquedos, jogos), restauração, hotéis, comércio… No auge das férias dos emigrantes, as festas de Melgaço foram, certamente, um bom negócio. Algumas festas desempenham um papel económico importante como mercado e plataforma catalisadora de toda uma região. É o caso da Feira e Festas de S. Miguel de Refojos.

Quem faz a festa é o povo. A multidão, o movimento, a poeira, o barulho, a iluminação e as emoções. O excesso no sacrifício e no prazer. O muito comer e o muito beber. Gritar, em vez de falar, para vencer a algazarra. A festa consta entre as mais humanas das obras humanas. Humano o profano, humano o sagrado. Na missa, na procissão e nos bailes, o povo exprime-se como corpo coletivo… Com recalcamentos, obsessões, sonhos, fantasmas e a sua parte de sexualidade e violência.
A festa funciona, simultaneamente, como catálise e catarse. Em noites de atrevimento, vigiar os jovens nos bailes era uma missão incontornável. Tantos namoros começaram em festas. Era uma preocupação. Quando o arraial pendia para o dionisíaco, os pais fechavam as filhas em casa. Por exemplo, na noite de São Bartolomeu de Cavez. Libertado pelo santo, “o diabo andava à solta”. A sexualidade e a violência costumam dar as mãos. Os mais velhos entusiasmam-se a recordar as refregas com o pau nas festas das freguesias vizinhas. Na excitação e na embriaguez reinante, qualquer rastilho entornava o caldo. Os rastilhos mais correntes usavam chapéu ou saias. Em algumas regiões, os beligerantes aprazavam o ajuste de contas para os dias ou, de preferência, as noites de determinada festa. Assim acontecia em Ribeira de Pena, Mondim de Basto e Cabeceiras de Basto com a festa de São Bartolomeu. Drena-se violência para a festa como se a violência endógena não bastasse. No conto “Como ela o amava” (Noites de Lamego, 1863), Camilo Castelo Branco descreve um confronto trágico, de que resultaram duas mortes, uma disputa por causa de uma mulher, na ponte de Cavez. Sublinhe-se, por último, que muitas festas ritualizam e encenam a violência. Atente-se, por exemplo, no martírio dos Santos Marroquinos, em Paderne, ou na guerra entre bugios e mourisqueiros, no S. João de Sobrado. Nestes casos, a própria festa incorpora a violência. [Carregar na imagem para aceder ao vídeo seguinte e ligue o som].

Não obstante o abraço divino, a utopia da igualdade, a sexualidade e a violência, quem entra pequeno na festa pequeno sai. A festa não esbate as desigualdades, espelha-as. Na competição dos candidatos à organização, na escolha dos mordomos, na publicitação altifalada das esmolas, nos leilões, no alinhamento das procissões, nas assimetrias do território… As festas são obra humana. Crescem, florescem e definham. Algumas desaparecem ou atrofiam por decisão administrativa. A Festa dos Tolos e a Festa do Burro, ambas medievais, não resistiram às reformas da Igreja. Por sua vez, o Corpo de Deus, outrora a mais imponente das procissões, ficou, de censura em censura, reduzida ao esqueleto. Sobreviveu a Coca, em Monção, bem como o Baile dos Ferreiros, em Penafiel. Hoje, os ventos sopram favoráveis às festas laicas. Algumas festas religiosas extinguem-se. Na maioria dos casos, não falta a devoção mas o público. Artes do envelhecimento e da desertificação. Dissipa-se o dia do santo, perde-se um ramo da árvore da comunidade. Uma árvore a que cortaram um ramo sobrevive, mas não é a mesma. E não perde pouco, se entendermos a festa como uma forma de “instituição imaginária da sociedade” (Castoriadis, Cornelius, 1975, L’Institution imaginaire de la société, Paris, Seuil). Não é irrelevante.
Escreve François Rabelais (Gargantua, 1534) que “o riso é apanágio do homem”. A festa, também! Até nas condições mais adversas, nas guerras ou nas crises, o ser humano não esquece a festa.
[i] Grupos de agricultores que se associavam para organizar e calendarizar as lavouras. Cada casa contribuía consoante o que possuía: junta de bois, ferramentas, mão-de-obra. Era costume chamar-se “amaiantes” aos participantes destes grupos.
Apolo e Dionísio


Após quase dois anos de clausura, ontem tive a primeira saída noturna digna desse nome. Fui assistir ao concerto de Pascoela pela Sinfonieta de Braga na igreja do Seminário. Ainda não deu para ir a Melgaço à Festa do Alvarinho e do Fumeiro. Um momento dionisíaco, bacanal.
Para aceder ao vídeo, carregar na imagem seguinte e ligar o som.

Festas, Culturas e Comunidades: Património e Sustentabilidade (Congresso)

Está aberta a chamada de resumos de comunicações para o Congresso Internacional Festas, Culturas e Comunidades: Património e Sustentabilidade, previsto para os dias 4 a 6 de maio de 2022, na Universidade do Minho. Para mais informação, carregar na imagem do cartaz ou no seguinte link: https://www.festivity.pt/congresso/
A BBC em Lamas de Mouro e Pomares (Melgaço)

ENCONTREI! Encontrei, finalmente, imagens das filmagens da BBC, no início de setembro de 1987, dedicadas à pastorícia em Lamas de Mouro e à feira de gado cavalar e muar, em Pomares. Integram o terceiro episódio da série Discovering Portuguese, dedicada ao ensino da língua portuguesa. As sequências são poucas e breves.
Cumpriu-me, a pedido de Mário Alves, ser o anfitrião: selecionar e contatar previamente as pessoas, escolher as atividades, os locais e os percursos. Veio uma equipa com uma dezena de profissionais. Cada pessoa entrevistava assinava os direitos e recebia uma quantia em dinheiro. Durante as filmagens, só atrapalhei. No episódio da passagem do gado na ponte de Lamas de Mouro, coloquei-me do outro lado a distância, aparentemente, mais que prudente. Mesmo assim, as cabras e as ovelhas, ao ver-me, estacaram. Nem para a frente, nem para trás. Foi preciso recuá-las e voltar a filmar. A manhã foi suficiente para acabar o trabalho. Almoçámos no restaurante Mané, em Monção. Durante a viagem, a Roberta Fox, apresentadora no vídeo, fez-me companhia no meu carocha 1500 cor-de-laranja, que tinha o vício, para além da gasolina, de, sempre que travava, guinar para a direita. A carta de condução ainda estava fresca. E ela estava com pressa. À tarde, iam filmar a festa de Nª Senhora da Bonança, em Vila Praia de Âncora. Acredito que esta viagem foi a maior aflição da sua estadia em Portugal.
Logo no início do vídeo, aparece a passagem do gado na ponte de Lamas e a feira do gado em Pomares, e, a partir do minuto 19’, a reunião do gado proveniente de várias cortes, característica da vezeira, e a entrevista à pastora. É pouco, mas sempre é uma ponta por onde se pode pegar para tentar aceder a outras partes então gravadas.
Este documentário não vale apenas pela presença de Lamas de Mouro e Pomares. Vale também pelas imagens de outras terras do Norte de Portugal e pelos testemunhos, entre outros, de José Saramago, após a publicação da Jangada de Pedra (1986), e Mário Soares.