Os cavalos também riem
“Os cavalos também se abatem” é o título de um filme de Sydney Pollak (1969), a partir do romance homónimo de Horace McCoy (1935). Embora “o riso seja apanágio do homem” (François Rabelais), os cavalos também riem. Por exemplo, o Jolly Jumper, do Lucky Luke. Os anúncios abrem-se cada vez mais ao disparate. A promoção do produto processa-se através do desvio. Um desvio impregnado de imaginação. Os cavalos riem, rebolam-se no chão. Riem de um condutor que não consegue estacionar. Este é o caudal do anúncio. Outro condutor consegue estacionar graças ao dispositivo de reboque do Volkswagen Tiguan. Esta é a foz em que desagua o anúncio.
Os cavalos riem! Mas, a crer neste anúncio, não riem de tudo. “Rir de tudo o que se faz ou diz é estúpido, não rir de nada é imbecil” (Erasmo). Bem-aventurados os cavalos: “a faculdade de rir às gargalhadas é sinal de uma alma excelente” (Jean Cocteau).
Os cavalos riem! Os burros mordem.
Marca: Volkswagen. Título: Laughing horses. Agência: Grabarz & Partners. Direcção: Bart Timmer. Alemanha, Setembro 2016.
A moral e o riso
“Sair para fora, cá dentro” é um dos meus lemas preferidos. Graças à Internet, também vou ao Brasil, cá dentro, no âmbito de um projecto aliciante e inovador em torno da moral e do riso.
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O riso da velha grávida
“Entre as célebres figuras de terracota de Kertch, que se conservam no Museu L’Ermitage de Leningrado, destacam-se velhas grávidas cuja velhice e gravidez são grotescamente sublinhadas. Lembremos ainda que, além disso, essas velhas grávidas riem. Trata-se de um tipo de grotesco muito característico e expressivo, um grotesco ambivalente: É a morte prenhe, a morte que dá à luz” (Mikhail Bakhtin, A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: O contexto de François Rabelais, São Paulo, HUCITEC, 1987, pp. 22-23).
Só de imaginá-las, estas figuras de terracota cativam. Há anos que as procuro. Resignei-me a substituí-las pela velha com um bebé enfaixado, da Tentação de Santo Antão (1506), de Hieronymus Bosch, e pelas imagens da morte com o bebé ao colo (ver James Ensor, Morte com bebé ao colo). Alguns estudos sobre Bakhtin sinalizam uma estatueta de terracota (figura 1) que condiz com a descrição: uma mulher, aparentemente, idosa e grávida (ver, por exemplo, Vanessa Tarantini, O corpo grotesco). A estatueta provém de Kertch, contanto se encontre no Museu do Louvre e não no Museu L’Ermitage. Confesso que tenho visto e revisto esta idosa grávida, mas ela teima em não se rir. Tão pouco chora.
Está tudo na Internet? Quando o objetivo é específico, o que mais se encontra é lixo. Explorar na Internet é cada vez mais navegar numa lixeira. Parafraseando Malthus, se o crescimento da informação é geométrico, o crescimento do lixo é exponencial. De qualquer modo, quem muito procura quase alcança. “Descobri” uma estatueta com uma mulher sentada: idosa, obesa e, com boa vontade, grávida e risonha. Condiz com as figuras de terracota de Mikhail Bakhtin. Até na data (três séculos a.C.). Só não foi produzida em Kertch, na Crimeia, mas, perto, na Beócia. Também não está no L’Ermitage, mas no British Museum (figura 3).

04. Figura de terracota de uma velha ama com um bebé. Beócia. Grécia. Cerca de 330-300 a.C. British Museum.
Outras estatuetas de terracota avizinham-se das figuras convocadas por Mikhail Bakhtin. Falta-lhes, porém, um ou outro atributo: a idade, a gravidez ou o riso (ver galeria). Destaco, mesmo assim, uma imagem: uma velha risonha sentada com um bebé ao colo, da mesma época, mas da Beócia (figura 4). Tal como a mulher do British Museum (figura 3), esta figura está repleta de pregas e dobras: dobras de sombra, do tempo, do movimento e da aproximação dos contrários. A velha ri enquanto cuida do bebé. Não está grávida, mas sustenta o crescimento. Não é “a morte prenhe, a morte que dá à luz”, mas um atalho no ciclo da vida e da morte, um laço entre a velhice, próxima da morte, e a infância, no início da vida. O mundo dobra-se e os extremos confrontam-se.
Galeria de imagens
Humor e respeito
“Pode-se rir dos erros sem lesar a decência” (Blaise Pascal, Les Provinciales, 1656-1657)
Para os franceses, Napoleão Bonaparte é, ao mesmo tempo, motivo de orgulho e motivo de riso. Escarnecem quem mais admiram. Esta postura é uma raridade. Em Portugal, sobram os governantes risíveis e escasseiam os prodigiosos: D. Afonso Henriques, D. João II, Marquês de Pombal… Nenhuma grande figura histórica lusitana combina veneração e gracejo. Os portugueses constam “entre os povos mais tristes da Europa”. Falta-lhes, porventura, a reverência burlesca, o cómico nas alturas, rir nas barbas do herói.
“Portugal é um dos países europeus onde os cidadãos menos confiam nos outros, revelam os resultados do Inquérito Social Europeu, um projecto que desde 2001 estuda e compara os valores e atitudes sociais na Europa. Os portugueses são ainda dos europeus mais tristes e descontentes com a política” (Público, 27/11/2008, baseando-se num estudo internacional, coordenado, em Portugal, por Jorge Vala).
Para aceder ao anúncio Napoleon, da Coca-cola Light, carregar na imagem.
Marca: Coca-cola Light. Título: Napoleon. Agência: Santo Buenos Aires. Direcção: Marcelo Burgos. 2014.
Figuras Remojadas Sorridentes
“A serendipidade remete para o facto bastante frequente de se observar um dado inesperado, insólito e decisivo que dá azo ao desenvolvimento de uma nova teoria ou ao alargamento de uma teoria existente” (Merton, Robert K., 1965, Elements de Théorie et de Méthode Sociologique, Paris, G. Monfort, p. 47).
Há quem encontre o que procura, com protocolos de investigação. O método indica o caminho. Há, também, quem descubra caminhando. Uns, clássicos, desfiam uma realidade complexa. Outros, barrocos, constroem a realidade a partir de singularidades imprevistas.
No livro dedicado a François Rabelais, Mikhail Bakhtin refere-se a umas figuras de terracota com velhas risonhas. Tenho procurado estas imagens em vão. Encontrei, em contrapartida, sem qualquer guia, estas figuras cerâmicas sorridentes da cultura Remojadas (Vera Cruz, México) dos séculos VII e VIII. Para quem aprecie o grotesco, este achado representa um filão.
“The so-called Smiling Figures from the Remojadas region of Veracruz are often regarded as expressions of Mesoamerican humor. These hollow ceramic sculptures are thought by many to be associated with a god of dance, music, and joy. Another compelling interpretation, however, relates them to a cult of pulque, an intoxicating beverage made from the fermented sap of the maguey plant. The animated faces, puffy cheeks, and swollen protruding tongues are regarded as evidence of intoxication. The figures may depict ritual participants, or even sacrificial victims. The survival of many more smiling Remojadas heads than bodies suggest to some a possible ceremonial decapitation and destruction of the bodies. This bare-chested figure, with open mouth and filed teeth, stands energetically with legs spread and arms lifted as if caught in mid-motion. The garb of this celebrant consists of circular earrings, a beaded necklace and bracelet along with a loincloth decorated with laterally symmetrical patterns. On his cap are ollin symbols, a sign for motion. This sculpture evokes a festive dance or ritual accompanied by the rhythmic reverberation of the hand-held rattle and celebratory sound escaping from the figure’s open mouth” (The Metropolitan Museum of Art: http://www.metmuseum.org/toah/works-of-art/1979.206.1211).
- 03. Figura sorridente. Cultura Remojadas. Vera Cruz. México. Secs. VII-VIII.
- 02. Figura sorridente. Cultura Remojadas. Vera Cruz. México. Secs. VII-VIII.
- 01. Figura sorridente. Cultura Remojadas. Vera Cruz. México. Secs. VII-VIII.
- 04. Figura sorridente. Cultura Remojadas. Vera Cruz. México. Secs. VII-VIII.
- 05. Figura sorridente. Cultura Remojadas. Vera Cruz. México. Secs. VII-VIII.
- 06. Figura sorridente. Cultura Remojadas. Vera Cruz. México. Secs. VII-VIII.
- 07. Figura sorridente. Cultura Remojadas. Vera Cruz. México. Secs. VII-VIII.
- 08. Figura sorridente. Cultura Remojadas. Vera Cruz. México. Secs. VII-VIII.
- 09. Figura sorridente. Cultura Remojadas. Vera Cruz. México. Secs. VII-VIII.
Deixa-me rir!
O que une uma dúzia de bebés risonhos e a Coca-Cola? Aproximar aquilo que tudo separa é uma arte. A arte, por exemplo, da alegoria. Uma coisa puxa outra. Quanto mais estranhas, maior o efeito. Para Gilles Deleuze, a alegoria é caracterizada por três elementos: o símbolo, o lema e o nome (ver Dobras e Fragmentos), Pois, no final do anúncio, lá aparecem em pose, como num retrato de família, o símbolo (a garrafa), o lema (choose happiness) e o nome (Coca-Cola).
Marca: Coca-Cola. Título: Choose to smile. Agência: Ogilvy & Mather Amsterdam. Direcção: Marleen Jonkman / Czar. Holanda, Maio 2015.
Do Japão, com humor
- S.T. Dupont Andy Warhol Limited Edition – Marilyn Monroe Line 2 Lighter.
- S.T. Dupont Andy Warhol Limited Edition – Marilyn Monroe Line 2 Lighter.
A publicidade oriental é um caso à parte. Ora nos brinda com anúncios de seis minutos de fazer chorar as pedras, ora nos espevita com sequências frenéticas que, ao jeito japonês, fazem dançar as galinhas.
No Anúncio da Shop Japan, o segredo reside na repetição acelerada do disparate (ver excerto de Henri Bergson). Pouco importa o que te faz cair, o que interessa é o que te levanta, eventualmente, um aparelho para abdominais. No segundo anúncio, Lighters, a evolução de uma pen USB isqueiro, desde a criação até à conquista do planeta, é pretexto para uma miscelânea tresloucada de tudo quanto é símbolo japonês e mundial.
Marca: Shop Japan. Título: Wonder Core – Ab Machine. Japão, 2014.
Marca: Jii USB Lighter. Título: Lighters. Japão, 2013.
Soluciona-se assim o pequeno enigma proposto por Pascal a certa altura dos Pensamentos: “Dois rostos semelhantes, cada um dos quais por si não faz rir, juntos fazem rir por sua semelhança.” Por nossa vez diríamos: “Os gestos de um orador, cada um dos quais não é risível em particular, por sua repetição fazem rir.” É que a vida bem ativa não deveria repetir-se. Onde haja repetição ou semelhança completa, pressentimos o mecânico funcionando por trás do vivo. Que o leitor analise a impressão obtida diante de dois rostos muito parecidos: verá que pensa em dois exemplares obtidos de um mesmo molde, ou em duas impressões de um mesmo carimbo, ou em duas reproduções de um mesmo clichê, em suma, num processo de fabricação industrial. No caso, a verdadeira causa do riso é esse desvio da vida na direção da mecânica (Henri Bergson, O Riso: Ensaio sobre a significação do cómico. 1ª edição: 1899).
Riso e Maldade
O riso é malicioso? Só nos rimos do mal dos outros? Com maldade? Quanto mais insólita for a situação? Em grupo? Há anúncios que convocam esta maldade. No Tendências do Imaginário, são às dezenas. Nalguns casos, o riso é franco, noutros, corrosivo. Este anúncio, Introducing Bad Happy, da Mentos, integra uma série, mentos ementicons, todos com o mesmo sentido de humor.
Marca: Mentos. Título: Introducing Bad Happy. Agência: BBH London. Direcção: Mathew Pollock. UK, Fevereiro 2015.
Consumo do ridículo
“Já se definiu o homem como “um animal que ri”. Poderia também ser definido como um animal que faz rir”
(Bergson, Henri, O riso, Rio de Janeiro, Zahar Ed., 1983, cap. I)
Neste anúncio da FIAP, a publicidade parodia-se a si própria. Não é a primeira vez. Ri de si mesmo quem se sente confiante. Dar o peito ao ridículo é um luxo. Como o rei face ao bobo. Há pessoas com máscaras que se colam ao esqueleto. Como se relacionam com o ridículo? O riso desmascara? A máscara engana o riso? O ridículo mata? O ridículo corrói e regenera: a carne, os nervos e a alma. A publicidade não teme o ridículo. Adopta-o.
Anunciante: FIAP 2015 – Festival Ibero Americano de la Publicidade. Título: Roberto Spam. Agência: DKP Miami. Direcção: Andrés el Güero Cruz. USA, Março 2015.
Rafeiro
A figura do par composto por duas personagens opostas mas inseparáveis é muito antiga: Don Quixote e Sancho Pança, Bucha e Estica, Astérix e Obélix, Brown Shoes e Tenspeed (em francês Timide et Sans Complexes), Starsky e Hutch… Trata-se de um arquétipo avesso às ideias de separação, completude e perfeição. Os palhaços Branco e Augusto constituem um modelo deste tipo de interacção grotesca entre o direito e o torto, o responsável e o insensato, o organizado e o esperto, em suma, a ordem e a desordem. Os opostos tocam-se mas não se anulam, nem tão pouco se ultrapassam. Por um momento, o riso molesta a ordem, mas não acaba com ela. A publicidade recorre profusamente a este esquema enraizado no imaginário colectivo. O anúncio Good Dog, uma relíquia da Bud Light, é um bom exemplo de uma interacção entre um palhaço Branco, requintado, e um palhaço Augusto, destravado. Mais do que na caracterização dos dois homens, repare-se no contraste dos cães. Para aceder ao anúncio, carregar na imagem.
Marca: Bud Light Beer. Título: Good Dog. Agência: Downtown Partners. Canadá, 2004.