Arca de Noé

“Esta manhã, ocorreu-me, pela primeira vez, a ideia de que meu corpo, este fiel companheiro, este amigo mais seguro, mais meu conhecido do que a minha alma, não é senão um monstro manhoso, que acabará por devorar seu próprio dono. Paz… Gosto do meu corpo, serviu-me muito e bem” (Marguerite Yourcenar, Memoires d’hadrien, 1951).
“O inferno somos nós”. Não me lembro quem escreveu este disparate, mas é um exagero! Importa aliviar a auto-flagelação. Olhar o espelho pelo canto do olho. Na verdade, somos apenas um ninho de monstros (imagem 2) ou um bestiário ambulante (imagem 1). Por outras palavras mais vantajosas: somos uma arca de Noé sonhadora.
Fernando e Albertino

Magic. Jogar aos monstros

“Il est bien peu de monstres qui méritent la peur que nous en avons.” (André Gide, Les Nouvelles Nourritures, 1935).
Vampiros, lobisomens, serpes, ogres, dragões, harpias, minotauros, demónios, bruxas, papões, cabeçudos, zombies, são figuras recorrentes do imaginário fantástico da humanidade. Afirmam-se como entidades monstruosas e grotescas. A relação com os monstros desafia o nosso entendimento. Wolfgang Kayser (O Grotesco, 1957) define o grotesco, inspirando-se em Sigmund Freud, como estranhamento. O mundo que nos é familiar torna-se estranho, eventualmente ameaçador. “Foge debaixo dos pés”. Com o grotesco ocorre uma desfamiliarização do familiar. Há algo de estranho neste estranhamento. Como conceber as situações em que o estranho se torna familiar? Quem passou anos a fio a ler mangas ou a imergir em videojogos pode avançar-se que as respetivas imagens lhe permanecem estranhas? O Shrek e o Smeagol são estranhos? São uma ternura de brinquedos. Esboça-se uma certa cumplicidade na experiência do estranhamento, na própria configuração do estranho. Um dos principais contributos de Wolfgang Kayser consistiu na concepção do grotesco e do estranhamento como uma relação dinâmica e não como um confronto de essências desencontradas.

O Shrek assevera-se mais familiar, menos grotesco, do que o mais mediático dos presidentes da república. Nesta espécie de interacção dialógica acontece um efeito de Coco. Como sublinha Omar Calabrese, a propósito do filme A Coisa (2011), de John Carpenter, há monstros que são vazios e, mais do que disformes, mostram-se informes. Carecem do envolvimento, do “sacrifício”, das vítimas para assumir a missão e ser o que são. Coco, à semelhança do Papão, é um monstro originário de Portugal e da Galiza. “Não é o aspecto do coco mas o que ele faz que assusta a maioria das crianças. O coco é um comedor de criança (um papa-meninos) e um sequestrador. Ele imediatamente devora a criança e não deixa rastro dela ou leva a criança para um lugar sem volta. Mas ele só faz isso às crianças desobedientes (…) O coco toma a forma de qualquer sombra escura e fica (…) de guarda” (https://pt.wikipedia.org/wiki/Coca_(folclore). Apetece relembrar que “os monstros somos nós”. O fantástico conhece, nos nossos dias, uma exuberância inédita. O jogo Magic, antes com cartas materiais, agora também online, é um caso de sucesso global. Emerge, submerge e reemerge mais forte. Ao ritmo da adesão lúdica e emocional dos jogadores.
Albertino Gonçalves & Fernando Gonçalves.
Papão
Quantas vezes não me cantaram, quantas vezes não cantei, esta canção de embalar:
“Dorme menino
Que aí vem o papão
Comer meninos
Que não dormem não.”
O meu menino chama-se
Fernando Meco João
É muito lindo e brincalhão.
“O meu menino está chorando
Com medo do papão,
Sossega, meu menino,
Que não te come, não.”
Segue o anúncio Moz the Monster, com a assinatura de Michel Gondry.
Marca: John Lewis. Título: Moz the Monster. Agência: Adam&eveDDB. Produção: Partizan. Direcção: Michel Gondry. Reino Unido, Novembro 2017.
A cerveja e o monstro
“Desejamos a verdade e apenas encontramos incerteza” (Blaise Pascal, Pensées, 401-437). “Todos erram tanto mais perigosamente que cada um segue uma verdade; a sua falta não consiste em seguir uma falsidade, mas em não seguir uma outra verdade” (Blaise Pascal, Pensées, 443-863).
Há quem abuse do verbo lembrar. Lembrar é convocar e, porventura, comparar, sem pagar portagem à verdade. O pensamento respira; não possui a verdade, nem a verdade o possui.
Que lembra o anúncio Face the darkness, da Einstök? Ao meu rapaz acodem-lhe os videojogos. E ilustra com uma cena do Final Fantasy XV (ver vídeo 2). Anúncio e videojogo, ambos lembram um exorcismo. No anúncio, o título, a postura, o monstro, a convulsão cósmica, a garrafa/crucifixo e, por último, a domesticação/humilhação da besta. No videojogo, embora menos evidente, a ameaça e a derrota do monstro mediante uma espada/crucifixo.
Que tem o exorcismo a ver com o nosso tempo? A sua existência não é menosprezável. Pratica-se na substância e exporta-se na forma.
Entretanto, aguarda-se uma nova linha de cerveja: com ou sem baba de monstro.
Marca: Einstök. Título : Face the darkness. Agência : Filakademie Baden-Wurttember. Direcção: Andreas Bruns. Islândia, Setembro 2016.
Final Fantasy XV. Stand together. Novembro 2016.
O monstro e a boneca
Por que motivo os humanos recorrem ao não humano para dizer o humano? Esta é uma pergunta repisada. Por quê convocar animais, bonecos, desenhos, marionetas, monstros, ciborgues? Na publicidade, no cinema, nos videojogos, nos vídeos musicais, na arte, na literatura… Será porque dão a ver, como diria o Principezinho, um esboço do essencial? Porque configuram uma alavanca para a imaginação? Estranha forma de olhar, estranha forma de espelho! Perante um monstro ou uma marioneta, somos compelidos, como diria McLuhan, a participar na comunicação. Passará o reconhecimento e a adesão pela ritualização fetichista da diferença? Qual seria o efeito emocional do anúncio da McDonald’s se a boneca fosse substituída por uma mulher? E se, no anúncio da Apple, Frankie fosse substituído por um modelo masculino?
Marca: McDonald’s. Título: Juliette the doll. Agência: Leo Burnett (London). Direcção: Gary Freedman. Reino Unido, Novembro 2016.
Marca: Apple. Título: Frankie’s Holiday. EUA, Novembro 2016.
Com a cabeça entre as pernas
É difícil, porventura incerto, corrigir um perfil. Pior ainda quando se ajusta sempre o mesmo, do mesmo modo, no mesmo sítio.
Amassa-se a miséria, embala-se e empurra-se para baixo.
Como no monstro da Figura 1, a cabeça desce quase até aos pés. De tempos em tempos, talvez dê para bater as asas e pôr um ovo (Figura 2).
Mas, equacionados todos os pontos e todos os ângulos, equilíbrio redondo, provavelmente, só ao volante de um crossover Honda HR V.
Marca: Honda. Título: Give and Take. Agência: RPA. USA, Junho 2015.
Imagine-se um desfile de monstros acompanhado pelo “Coro das Velhas”, de Sérgio Godinho, “a caminho de Caminha”.
Sérgio Godinho. Coro das Velhas. Era uma vez um rapaz. 1985.
Indefinição e instabilidade
Máscaras estilizadas, parcas em feitio e expressão. Repetitivas e incómodas. São disfóricas. A inquietação não precisa de grandes atavios para se instalar. Um monstro, quanto menos definido, maior o efeito, perdão, pior o efeito. A propósito da “coisa” (The Thing, John Carpenter, 1982), um ser de substância improvável, Omar Calabrese escreve: “a coisa não tem uma forma autónoma, mas as suas células imitam as dos seres que lhe passam mais perto, até as engolirem e se transformarem nelas. O que faz que, quando a coisa é enquadrada, seja na realidade ora um cão, ora um membro da expedição” (A Idade Neobarroca, Lisboa, Edições 70, 1999, p. 109). O monstruoso reconhece-se, mas desconhece-se. E quanto mais se desconhece, maior a monstruosidade. Em suma, um anúncio excelente!
Marca: Zona Jobs. Título: Lottery. Agência: McCann, Buenos Aires. Direcção: Turbo Trueno. Argentina, Fevereiro 2014.
A Marginalização dos Monstros
A aparência é um factor de desigualdade humana, que a sociologia desdenha, tanto quanto o conceito de capital estético. Neste anúncio, uma menina possessa, uma réplica de Regan de O Exorcista, queixa-se da discriminação de que é vítima pelo simples facto de ser monstruosa. A actualidade é pródiga em monstros: Dart Vader, Shrek, Gollum, E.T., Alien. Mas não mais do que em outras épocas: Drácula, Frankenstein, licantropos, tentações de Santo Antão, Adamastor, carrancas… Os monstros brotam do espírito como sombras vazias que recheamos de medo, paixão e fantasmas. Atrai-nos o ventriloquismo do excesso.
Marca: Panamericana School of Art and Design. Título: Actress. Agência: Almapbbdo, Sao Paulo. Brasil, Maio 2013.
Aberrações
A nova campanha da Skittles desdobra-se por cinco episódios. Todos começam com uma introdução que alerta para o seu conteúdo insólito e assustador. Convida-nos, também, a interagir colocando um dedo num ponto do ecrã.
Será que o repulsivo atrai? Será que as aberrações são encantadoras? Será que um beijo digital no nosso dedo de batráquio, ou o toque de uma mão de um zombie mutilado ou o esguicho verde ao jeito do Exorcista nos dá vontade de devorar miniaturas doces, coloridas e estaladiças? A publicidade da Skittles há muito que aposta no estilo “galeria de monstros”. É um sinal de perseverança e eficácia.
Os monstros constituem figuras vazias, abertas e absorventes. Neles nos projetamos, como numa espécie de rorschach da literatura, da arte e da comunicação digital. São figuras ambivalentes em que os contrários se namoram e os extremos se tocam. De qualquer modo, os monstros atraem-nos. E têm uma longevidade espantosa: constam entre os inquilinos mais perenes da nossa memória. Somos uns papa-monstros ruminantes.
Marca: Skittles. Título: Princess. Agência: BBDO Toronto. Canadá, Março 2012.
Marca: Skittles. Título: Zombie Tennis. Agência: BBDO Toronto. Canadá, Março 2012.
Marca: Skittles. Título: Dr. Cyclops. Agência: BBDO Toronto. Canadá, Março 2012.