We are all monsters!
Os monstros sofrem. Não conseguem relaxar. Os media, a alcofa da inteligência contemporânea, estão atulhados de falhas. Quando chove é uma lástima. Nem o balouço soporífero do comboio consola a Múmia, a Morte, o Lobisomem e o Cientista Maluco, figuras emblemáticas do cinema dos anos vinte e trinta do século passado. Somos monstros num dia de chuva. Híbridos, variáveis, ocos por dentro e vazios por fora, mas absorventes. Anúncio original com caracterização apurada e humor hilariante.
Marca: Spectrum. Título: Monsters: Train. Agência: O Positive. Direcção: David Shane. USA, Abril 2017.
Post scriptum:
A frase “todos somos monstros” provocou alguma estranheza. Não é denotativa: nem tudo é literal no mundo da escrita. É verdade que peca por se embrulhar fluxo grotesco do texto. Mas é um pecado menor. Somos nós quem cria os monstros. São ficções, ou fantasmas, do nosso imaginário. Quando reais costumam ser humanos. Se não criamos os monstros à nossa imagem, enxertamos-lhes características que nos são próprias. Por exemplo, a hibridez e a volubilidade (ver Zygmunt Bauman e, cinquenta anos antes, Mikhail Bakhtin); o vazio e a sofreguidão, consubstanciados na tendência para a absorção omnívora. Acresce que os monstros do anúncio, extravagâncias imaginadas, se comportam como humanos. Para desanuviar as sombras, os monstros deixaram, entretanto, de se cingir ao susto e à exorbitância para se tornar adoráveis, no cinema, nos videojogos, na publicidade… São muitos os exemplos, assinalo apenas três: o E.T., o Yoda e o Shrek. A comunicação humana raramente é literal ou linear. Costuma ser polissémica, polifónica e orquestral. As frases mais marcantes da humanidade não são nem lineares, nem literais. Tão pouco são incongruentes ou caóticas. Há quem aspire a outras performances: “Fazer coisas com palavras”, diria J. L. Austin (1962). A frase “o inferno são os outros”, de Jean-Paul Sartre, não é literal, nem é abstrusa; destaca-se, porém, na história das ideias do século XX. “O inferno são os outros” é parecido com “nós somos monstros”, muda apenas o sujeito e a conjugação verbal.
A caminho do inferno
O Taymouth Hours é um livro de horas datado de 1325-40. Da profusão de iluminuras, retenho uma pequena amostra alusiva às coisas do inferno (ver galeria). Dedicados e despachados, os diabos conduzem os condenados (figuras 2 a 4) para a boca do inferno (figura 5). No interior, o ambiente é caloroso (figuras 6 a 8). Cada suplício, uma vez terminado, é recomeçado. A never ending pain!
- 01. Taymouth Hours, c. 1325-40.
- 02. Taymouth Hours, c. 1325-40.
- 03. Taymouth Hours, c. 1325-40.
- 04. Taymouth Hours, c. 1325-40.
- 05. Taymouth Hours, c. 1325-40.
- 06. Taymouth Hours, c. 1325-40.
- 07. Taymouth Hours, c. 1325-40.
- 08. Taymouth Hours, c. 1325-40.
Gatos Músicos
À minha gata, que tem quatro patas e um rabo.
Esfíngico, o gato é um misto de sabedoria, astúcia e mistério. A exemplo de Garfield, é um especialista em sonho e hedonismo. Mascote predilecta do poder, o gato é associado ao oculto, à bruxaria e à superstição. Maléfico, chega a ser temível (e.g. “O Gato Preto” de Edgar Allan Poe). Do ponto de vista simbólico, o gato é complexo e ambivalente. Acrescente-se, para complicar, a figura do gato músico, tão comum e apreciada nas iluminuras medievais. Tendências do Imaginário já contemplou o burro músico (http://tendimag.com/2012/11/20/o-burro-e-a-harpa/). É a vez do gato!

06. Book of Hours, Cat beating cymbal, from a marginal cycle of images of the funeral of Renard the Fox, Walters Manuscript W.102, fol. 78v detail.
Galeria de Imagens de Salvação
Há semanas, no artigo com o vídeo Imagens de Salvação (http://tendimag.com/2013/08/23/imagens-de-salvacao/), não anexei a respectiva galeria de imagens. Faço-o agora.
- Horas de Catarina de Cleves, c. 1440. Pormenor
- Livro de Horas de Joana a Louca, Bruges, 1486-1506
- O Livro de Kells, c. 800.
- Arcanjo fecha a porta do inferno, Saltério de Winchester (St Swithun Psalter). Séc. XII.
- Horas de Catarina de Cleves, ca. 1440.
- Horas de Catarina de Cleves, c. 1440.
- Livre de la Vigne nostre Seigneur. França, c. 1450-1470.
- Saltério. Det kongelige bibliotek. Copenhaga, c. 1222
- Macclesfield Psalter. England, c. 1330
- Saltério de Luttrel, c. 1320-1340
- Saltério de Luttrel, c. 1320-1340
- Livro de Horas de Maastricht. c. 1300-1325.
- Saltério Bonne de Luxembourg. 1348-1349.
- Purificação das almas no Purgatório. Très Riches Heures, c. 1412.
- The Book of the Queen, França, c. 1410-14
- Horas de René d’Anjou, c. 1410
- Horae ad usum Parisiensem (Grandes Heures de Jean de Berry), c. 1400-1410
- Horas de Catarina de Cleves, c. 1440
- Horas de Catarina de Cleves, ca. 1440
- Horas de Catarina de Cleves, ca. 1440
- Horas de Catarina de Cleves, ca. 1440
- Chroniques sire Jehan Froissart. Bruges, c. 1470-75
- Livro de Horas. Provença. França, c. 1440-1450
- Livro de Horas. Provença. França, c. 1440-1450
- Livro de horas de Leonor de la Vega, c. 1465-70
- Le Livre de la Vigne nostre Seigneur, 1450-1470. Pormenor
- Livro de Horas de Dionara de Urbino. Itália, c. 1480. Pormenor
- Livro de Horas de Isabel, a Católica. 1499
- Black Hours, for Rome use. Bruges, c. 1470
- Criação. Livro de Horas, Biblioteca Nacional de França, séc. XV.
- Livro de Horas do Infante Don Alfonso de Castela). Finais do séc. XV.
- Livro de Horas do Infante Don Alfonso de Castela). Finais do séc. XV.
- Livro de Horas do Infante Don Alfonso de Castela). Finais do séc. XV.
- Livro de Horas do Rei Luís XII, França,1498-1499
- Livro de Horas de Bonaparte Ghislieri. c. 1500.
- Livro de Horas de D. Manuel. 1517-1538
- Alphonsus de Spina, La Forteresse de la foi. França, séc. XV
- Spinola Hours. 1510-1520.
- Falsos Profetas. ‘Queen Mary Apocalypse’, Londres, séc- XIV.
- Tübinger Hausbuch Iatromathematisches Kalenderbuch. die Kunst der Astronomie und Geomantie. Württemberg, séc. XV.
Imagens de Salvação

Um artigo com este perfil, só em férias, por vaidade e com vontade. Ano após ano, reuni centenas de imagens de livros de oração medievais. Constituem um dos principais repositórios fantásticos da humanidade. Não foi fácil seleccioná-las. Quanto às músicas, ainda foi mais complicado: destacaram-se duas cantigas de Santa Maria, de Afonso X, o Sábio, interpretadas pelo Clemencic Consort. A meu ver, a música é a parte mais preciosa do vídeo. Sobram músicas prodigiosas por todo o mundo e em todas as épocas. Com a devida vénia à pós-modernidade, a “conquista do presente” e o umbigo globalizado têm alguma propensão para nos focar o olhar e nos empobrecer. Este vídeo não propõe nada de especial, a não ser que se veja ao espelho com outra cara.
Ao iniciar o vídeo, carregue, por favor, em HD, no canto superior direito. A qualidade compensa.
Albertino Gonçalves. Imagens de Salvação. Agosto 2012.
A ilusão: Da iluminura ao postal ilustrado
No postal publicado pela Catarina Miranda, colega de equipa de investigação, publicado no blogue Postais Ilustrados (http://postaisilustrados.blogspot.pt/, 14 de Outubro), a página do Commercio do Minho é enrugada pelos “dous rasgões irregulares” que parecem irromper da superfície do postal (ver figura).
Postais com relevo já circulavam no início do séc. XX. Atente-se, por exemplo, neste Mappa do Coração, postado em 1914 a bordo do navio Congo. Mas não, a ideia não era fazer um postal com relevo mas um postal que proporcionasse a sensação de uma terceira dimensão. Mais ou menos como algumas imagens medievais. Recordo três que tinha ciosamente reservadas para um texto que nunca mais acaba sobre a desgravitação (ausência ou distorção da gravidade) nas iluminuras medievais e nos media actuais.
O livro de horas de Gian Galiazzo Visconti, duque de Milão, foi feito no final do séc. XIV por dois ilustradores: Giovannino dei Grassi e, após a sua morte, Belbello da Pavia. Está depositado na Biblioteca Nacional de Florença. Concentrêmo-nos na seguinte página (L’eterno e gli eremiti):
Parte da imagem condiz com o esquem visual a a que estamos habituados: as torres e os veados “pesam” no sentido do fundo da página. Mas o recorte com a divindade e com os demónios lembra os rasgões do postal do Commercio do Minho; em relação à superfície da página, sobressai, por um lado, o arco com os raios de fogo e afunda-se, por outro, o círculo reservado à divindade. Os insectos, por sua vez, desempenham um papel deveras curioso. A disposição, aliada à minúcia da pintura, dá a impressão que os insectos transitam sobre a página fora da imagem. Em suma, numa parte da imagem o eixo de gravidade remete, normalmente, para o fundo de página e noutra parte o eixo de gravidade remete, deliberadamente, para a superfície da página.
Os ilustradores da Idade Média eram exímios na criação de ilusões. Algumas artes foram sucessivamente apuradas. É o caso das seguintes imagens do Da Costa Hours, um livro de horas português, concluído cerca de 1515, da autoria de Simon Bening. Vendido a estrangeiros em finais do século XIX, destaca-se como um dos manuscritos mais preciosos da Morgan Library, de Nova Iorque.
Neste livro de horas, “São Jerónimo em penitência” é emoldurado por flores que dão a impressão de terem sido pousadas sobre a imagem. Mais complexa resulta a disposição das flores no fundo da página: nascem na imagem para logo (sobres)sair dela. Registe-se, por último, que, volvido um século, aparece, na parte inferior da página, uma abelha a assumir a função das moscas do Livro de Horas de Visconti.
Os recursos para obter um efeito de relevo abundavam na Idade Média. Na “Flagelação de Cristo”, no Livro de Horas de Da Costa, as voltas dos colares apelam a uma focagem tacteante que dificulta qualquer veleidade de achatamento da imagem. O colar vermelho, pendurado na própria moldura da cena da flagelação, parece oscilar para dentro e para fora da imagem.
O que têm os livros de horas a ver com os postais ilustrados? Muito pouco. Uns são de devoção, os outros nem por isso. Os livros de horas eram caríssimos, os postais são acessíveis. Os livros de horas eram bens familiares de luxo transmitidos ciosamente de geração em geração, facto que explica terem sobrevivido milhares de exemplares. Mas há algumas características que os aproximam. Destinam-se ao prazer do olhar, bem como à intimidade do toque. São portáteis e para uso individual, senão privado. São praticamente do mesmo tamanho. Partilham, também, alguns traços de estilo. Por último, ambos surgem em momentos excepcionais de explosão social da imagem: por volta do século XIV e finais do século XIX.
O centauro gaiteiro
Ser híbrido da mitologia grega, o centauro consta entre as figuras mais fantásticas do imaginário humano. “Besta no homem”, o centauro simboliza a força, o desregramento sexual e a animalidade não domesticada pelo espírito. Teve grande acolhimento nas iluminuras medievais, quase tanto como o dragão. Deparei-me com este simpático centauro gaiteiro quando folheava, electronicamente, um Livro de Horas (Provença, França, ca. 1440-50, Ms. Pierpont Morgan Library. M.358).