A morte à flor da pele
“[Os jovens que fazem piercings e tatuagens] procuram “autonomizar-se” do olhar dos pais. Têm o sentimento de não ser eles próprios, mas uma espécie de bem que pertence aos pais. Daqui esta frase repetida inúmeras vezes: “Eu reapropriei-me do meu corpo”, como se o corpo lhes tivesse sido roubado a um ou outro momento. Ao nível simbólico, o facto de fazer uma tatuagem ou um piercing é uma maneira, para o jovem, de assinar o seu corpo, uma maneira de dizer que é só dele” (David Le Breton, “Les jeunes prennent leur autonomie par le piercing”, jornal Le Monde, 25 de Março de 2004).
Há três fenómenos culturais que vieram ao arrepio das minhas expectativas teóricas. As tatuagens, os piercings e a moda da barba apanharam-me desprevenido. Centram-se no corpo: marcam-no e demarcam-no, mas não para o polir ou isolar. Configuram “sinais de identidade”, introduzindo uma nova modalidade de semiose social.
Seleccionei cinco tatuagens, góticas, alusivas à morte. As duas primeiras copiam, literalmente, as danças macabras do séc. XV.
A terceira, lembra, no traço, A Noiva-cadáver de Tim Burton e, na postura, o Zé Povinho de Rafael Bordalo Pinheiro.
Na quarta, a caveira aparece tatuada na parte do corpo mais apropriada: a cabeça.
A quinta tatuagem apresenta um espelho da morte, tema recorrente nas imagens medievais e barrocas (Michel Vovelle, “A História dos homens no espelho da morte”, in Herman Braet & Wermer Verbeke (eds), A Morte na Idade Média, S. Paulo, Edusp, 1996, pp. 11-26). O corpo assume-se como suporte do espelho da morte.
Por último, depois do espelho da morte, termino com a vanitas nos lábios de uma tatuagem. Original. Uma versão contemporânea do beijo da morte?
Um fim-de-semana bem preenchido. Gosto de jogar ténis de mesa com os meus rapazes. São os únicos que me aturam. Gosto, também, de jogar pingue-pongue com a história. Em momentos de lazer, é um prazer visitar a história como quem descasca castanhas. É um desporto que não emagrece. Dá a ver o presente sob outra luz: muita ganga e pouco minério.
Diabo de guarda
O anúncio neozelandês da Energy Online propõe um dispositivo contra vendedores porta a porta: uma aldraba grotesca mais uma espécie de gárgula gótica, ambas animadas e furibundas. Um susto a dobrar. Com esta parceria diabólica, não há vendedor que se atreva. Este anúncio é fruto da época: aproxima-se o Halloween, a festa do horror para todas as idades. Trick or treat.
Marca: Energy Online. Título: Door Knocking. Agência: Contagion, New Zealand. Direcção: James Anderson & Jess Griffin. Nova Zelândia, Setembro 2015.
Virados do avesso
Quem rejeita desencontros como este?
O anúncio da Interflora é uma bela parábola.
Diferença, aproximação, devir.
O gótico torna-se clássico, e vice-versa.
Tu não és apenas o que és mas o que podes ser.
Contraditorial, é atributo do homem poder virar-se do avesso.
Marca: Interflora. Título: Odd love. Agência: Brandhouse. Direcção: Martin Werner. Dinamarca, Fevereiro 2015.
A roseira dos cravos
Concluído cerca de 1410, de autor anónimo, posteriormente conhecido por Mestre do Alto Reno, este Jardim do Paraíso, pintado sobre madeira, com uma dimensão de 26 por 33 cm, irradia uma beleza apaziguadora.
Que enxerga neste pequeno quadro um leigo do terceiro milénio?
Um ambiente de harmonia e sossego. As personagens dedicam-se à leitura, à música, à conversa e à natureza. A mulher que mais atrai o olhar lê, outra segura um psaltério tocado por um menino, uma terceira colhe cerejas e a quarta mergulha uma colher na água. Um anjo conversa com dois homens. Também se bebe e também se come. Sobre a mesa, um copo e cascas de fruta. Neste pequeno jardim do Paraíso abundam as plantas e os pássaros: 27 variedades de plantas e 12 espécies de pássaros.
Um olhar mais atento fica, contudo, perturbado com alguns pormenores. À esquerda, a meia altura, uma roseira parece dar cravos. No canto inferior direito, surge um animal esquisito, que mais parece um pato com quatro patas depenado. Lembra os monstros alienígenas pintados, em pleno século XX, por HR Giger (ver em baixo). Por último, não longe do “pato depenado”, aos pés do anjo, um demónio escuro! Ora, segundo a catequese, o Paraíso não é sítio destinado a demónios. Perplexidades de um ignorante em hagiografia medieval.
No pequeno mas aconchegado Jardim do Paraíso, a Virgem Maria lê um livro, Santa Doroteia colhe cerejas, Santa Bárbara retira água com uma colher e Santa Cecília segura um instrumento musical, um psaltério, que é tocado pelo Menino Jesus. Em amena conversa, encontram-se São Jorge, com o dragão (o tal pato de quatro patas), o Arcanjo São Miguel, com o demónio, subjugado aos pés (faz parte da imagem do arcanjo) e Santo Osvaldo. Sobra o pormenor da roseira que dá cravos, que se resolve facilmente com um par de óculos ou, melhor ainda, contemplando-a, como advoga o Principezinho, com o coração.
Postal gótico
Nunca é demasiado tarde. Por exemplo, para saborear o gótico na publicidade. Trata-se de um estilo mais dado à curta-metragem, ao vídeo musical ou ao videojogo. A propósito de presença e de perda, existe uma diferença entre a interação na internet, por exemplo num blogue, e a interação presencial. Na internet, resulta complicado reparar ações ou resgatar ligações. Nada que se compare com as soluções disponíveis no mundo “real”. A galáxia da internet é um mundo líquido com moléculas à deriva.
Marca: Hallmark. Título: Black Tear. Agência: Underdog Entertainment, New York City. Direção: Daniel Azarian. EUA, Maio 2004.
Quem quer uma máscara mordaz?
Se ainda não escolheu a sua máscara para este Carnaval, que nos seja permitido sugerir este modelo património carrancudo, com três estilos a opção: gótico, clássico e Ilha da Páscoa. A prótese dentária, garantida contra a corrosão da austeridade, tem dupla função: tanto ri como morde.
- Iodosan. Classical.Ogilvy & Mather, Milão. Itália, Fev. 2007
- Iodosan. Easter Island.Ogilvy & Mather, Milão. Itália, Fev. 2007
- Iodosan. Gothic.Ogilvy & Mather, Milão. Itália, Fev. 2007