David Sylvian, Japan e os anime

Orientalização do Ocidente? A questão já se colocava, há meio século, a Fernando Namora (ver https://tendimag.com/2022/01/23/estamos-no-vento/). O entusiasmo pelos manga e pelos anime constitui um dos sinais. Continuo, no entanto, desde os anos setenta, a estranhá-los. Estou em crer que, no meu caso, a orientalização do ocidente tenha revertido numa oxidação da razão com a respetiva camada de ferrugem. Mas admito que a explicação mais plausível remete para a falta de exposição: quem não prova, não entranha.
Constato, contudo, que os anime, dignos de culto, evidenciam qualidade, criatividade e recursos. E aproveitaram a pausa da pandemia. A nova temporada do anime Golden Kamuy oferece-se como exemplo.
David Sylvian, e o grupo Japan (1974-1982), tornaram-se, ajudados pelo nome, particularmente populares no Japão. Adotadas pelos anime, algumas das suas músicas viram a audiência disparar. É o caso da canção For The Love Of Life, tema final do anime Monster. Acrescento Ghosts; condiz com a conversa que vou dedicar às “coisas do outro mundo” (Melgaço, 21 de outubro).
A captação do irreal

O anúncio The Reset, da Verizon, alinha uma sequência de cenas irreais mas representáveis que provocam sensações de atordoamento e estranheza no espetador. Há treze anos, em 2009, tê-lo-ia incluído no vídeo A Construção do Impossível, uma compilação de anúncios com ilusões (ver https://tendimag.com/2020/01/14/estetica-da-guerra/; ver também o artigo correspondente Albertino Gonçalves, “Como nunca ninguém viu – O olhar na publicidade” (Martins, Moisés de Lemos et alii, Imagem e Pensamento, Coimbra, Grácio Editor, 2011, pp. 139-165).o).
O anúncio The reset poderia ainda integrar o vídeo Emoções Confortáveis, produzido para uma instalação da Exposição Vertigens do Barroco, no Mosteiro de Tibães, em 2007 (ver https://tendimag.com/2015/06/10/vertigens-do-barroco/). Os visitantes eram convidados a assistir ao vídeo num sofá último grito num simulacro de sala com mobiliário dos séculos XVIII e XXI. Para quem aprecie a vertente delirante do Tendências do Imaginário, ambos os vídeos são uma boa proposta de assombro e entretenimento. Se fossem avaliados pelo “valor-trabalho” incorporado, para retomar um conceito caro a Karl Marx, o seu preço resultaria deveras elevado.
A ave e os nus


Ando muito entretido a tentar interpretar duas esculturas estranhas que acolhem os crentes no portal da fachada principal da igreja de São João Baptista em Lamas de Mouro, Melgaço. Quando tal acontece, nada mais existe!
A abertura do documentário de Ricardo Costa dedicado a Castro Laboreiro, publicado pela RTP em 1979, (https://tendimag.com/2022/05/12/castro-laboreiro-o-fantasma-de-tarkovsky/) teve a arte de me lembrar um dos meus discos de eleição, e menos conhecido, do Vangelis, Heaven and Hell, lançado em 1975. Segue a parte I (lado A: 22:06). A parte II, minha preferida, já a coloquei mais do que uma vez (ver https://tendimag.com/2019/05/31/divertimento/). Não desistam a meio que não merece!
Grotesco familiar
Segundo Wolfgang Kayser, o grotesco radica no estranhamento. Numa situação familiar, sucede algo de insólito, que abala os nossos fundamentos e nos suspende no vazio. Mas nem sempre é o familiar que se desmorona perante o estranho. Às vezes, é o estranho que revela o familiar, como se o absurdo carecesse de um absurdo maior para se enxergar. Em suma, propõe-se um pequeno enxerto à teoria do grotesco de Wolfgang Kayser. O grotesco associa-se a um estranhamento do mundo familiar, consoante o conceito de unheimlich de Sigmund Freud, mas também pode estar associado a uma familiarização do estranho, a uma engrenagem do inesperado. O anúncio russo The Drowning constitui um bom exemplo deste grotesco familiar. No vídeo, carregue em CC e seleccione English.
Marca: Mainpeople. Título: The Drowning. Agência: Stereotatic. Direcção: Michael Lockshin. Rússia, Abril 2015.
Realismo grotesco

Ambrogio Bergognone, Detail of the polyptych with St. Peter Martyr and a Kneeling Donor, Musée du Louvre, Paris, ca. 1494.
Acontece-me deixar cair borrões de tinta na escrita. Frases pingadas, plasmadas, sem antes nem depois. Por exemplo: “Os medievais recorriam ao realismo extremo para dizer o sagrado” (Dar corda ao desejo). Como se pode escrever uma frase abrupta e isolada como esta?
Mikhail Bakhtin criou a noção de realismo grotesco para caracterizar um leque extenso de actividades culturais da Idade Média e do Renascimento: linguagem, literatura, pintura, música, festas, teatro, usos do corpo, gastronomia, jogos, religião, humor… Os fenómenos, reais ou imaginários, são retratados com um efeito de verosimilhança impressionante, incluindo os pormenores. Este efeito de realidade consegue conviver com um efeito de estranheza, grotesco ou macabro. O artigo que dedicámos a São Bartolomeu, esfolado vivo (A festa de São Bartolomeu de Cavez), constitui um bom exemplo de realismo grotesco. Acrescente-se São Pedro Mártir e Orígenes de Alexandria.
São Pedro Mártir (Pedro de Verona, ca. 1205-1252), dominicano, pregou contra os heréticos, nomeadamente os cátaros. O Papa Gregório IX nomeou-o, em 1234, Inquisidor Geral para o Norte de Itália e o Papa Inocêncio IV, em 1251, Inquisidor da Lombardia.
Em 1252, no regresso a Milão, foi mortalmente atingido com um golpe de machado na cabeça. Ferido, escreveu com o próprio sangue a palavra: credo. Como é representado este Santo? Durante a emboscada ou noutro contexto, com o machado, ou equivalente, cravado na cabeça. Realismo insólito ou macabro.
Orígenes de Alexandria (185-254) é um teólogo cristão com obra apreciável. Segundo Eusébio de Cesareia (263-339), Orígenes autocastrou-se, inspirado nos versículos do evangelho de São Mateus: “Alguns são eunucos porque nasceram assim; outros foram feitos assim pelos homens; outros ainda se fizeram eunucos por causa do Reino dos céus. Quem puder aceitar isso, aceite” (Mateus 19:12). Algumas imagens de Orígenes centram-se, precisamente, no acto de castração. Muitas iluminuras medievais retratam explicitamente actos de castração.
A Idade Média não detém o exclusivo do realismo grotesco. Os nossos tempos também são férteis na suspensão estranha mas precisa da experiência familiar. No domínio da arte, da comunicação social, da Internet…
O espelho ordinário
Há momentos retorcidos. Normalmente, escrevo para ser lido, mas, desta vez, escrevo para ser decifrado.
Existe um tipo de grotesco que remete para a disformidade conforme. Desconcerta, mas acaba por se deitar, atravessada, no leito de Procusto da Razão. Estranha-se, primeiro, e entranha-se, depois. Como diria Goya, o sonho, por monstruoso que seja, faz parte do sono da razão. Atente-se, por exemplo, na obra de Salvador Dali.
Com a devida vénia ao movimento punk, existe uma outra forma de grotesco que releva da conformidade disforme. O que é estranho já não é o sonho mas a realidade. Este grotesco bebe no pântano da vida quotidiana. É a experiência que se torna estranha (Sigmund Freud; Wolfgang Kaiser). Ocorre um estranhamento do familiar, incluindo o íntimo. O grotesco opera menos por criação e mais por deslocamento. Da intimidade para o público. É uma monstração. Este grotesco não sonha, desperta, com os olhos esbugalhados, para a experiência comum. Partilha, obscenamente, o que não é partilhável, mas que todos têm. O delírio do extraordinário é substituído pelo espanto face ao banal, pelo espetáculo insólito e exacerbado do mais que vivido e mais que conhecido.
Este anúncio justifica a seguinte pergunta: como é que a grosseria pode promover a beleza? Enquanto fico a pensar, passo a palavra ao Victor Hugo:
“Somente diremos aqui que, como objectivo junto do sublime, como meio de contraste, o grotesco é, segundo a nossa opinião, a mais rica fonte que a natureza pode abrir à arte (…) O sublime sobre o sublime dificilmente produz um contraste, e tem-se necessidade de descansar de tudo, até do belo. Parece, ao contrário, que o grotesco é um tempo de parada, um termo de comparação, um ponto de partida, de onde nos elevamos para o belo com uma percepção mais fresca e mais excitada” (Hugo, Victor, 1827, Do grotesco e do sublime, Prefácio de Cromwell).
E pronto!
Marca: B Cosmic. Título: Be pretty. Agência: JWT Tunis. Direcção: Fekih Anwar / EZA. Tunísia, Dezembro 2014.
O Perfume Filosofal
A pedra filosofal liquefaz-se e desfaz-se no ar. Descobriu-se uma fragrância que “transforma um rapaz em homem, as raparigas em namoradas, e as mães em criaturas aflitas”. O nome do prodígio é Old Spice, o perfume do delírio. As criaturas do anúncio são tão estranhas que lembram os infernos do Alto Renascimento. A continuar deste jeito, a Old Spice tornar-se-á numa espécie de Hieronymus Bosch da publicidade.
Marca: Old Spice. Título: Mom Song: 60. USA, Janeiro 2014.
Invocar os infernos e Hieronymus Bosch é um exagero. Certo é que muitos anúncios de perfumes exalam tentação e pecado. Por outro lado, se há infernos dantescos, também há, segundo outros testemunhos, infernos aprazíveis. Se Deus recompensa os justos, por que haveria Lúcifer de castigar os pecadores? Atente-se nesta episódio do livro Pantagruel, de François Rabelais (1532).
Na refrega contra os gigantes, Epistémão, amigo de Pantagruel, foi decapitado. Panurgo consegue, porém, “chamá-lo à vida”:
“De repente, Epistémão começou a respirar, depois a abrir os olhos, depois a bocejar, depois a espirrar, e por fim deu um grande peido da sua reserva (…) Desatou então a falar e contou que tinha visto os diabos, falara sem cerimónias com Lúcifer, fora muito bem tratado no inferno e nos Campos Elísios, a todos garantindo que os diabos fazem boa companhia. Quanto às almas danadas, explicou que muito aborrecido se sentia por Panurgo ter sido tão rápido a chamá-lo à vida.
– Porque olhá-las (disse ele) é um singular entretenimento.
– Então porquê? – quis Pantagruel saber.
– Não as tratam tão mal como pensais (disse Epistémão), embora o seu estado se altere de estranha forma. Sim, porque vi Alexandre o Grande remendar calças velhas para ganhar a sua pobre vida.
Xerxes apregoar mostarda
Rómulo era vendedor de sal
Numa fazia pregos…”
(François Rabelais, Pantagruel, Lisboa, Frenesi, 2006, p. 168-170).
Segue-se uma centena de nomes de figuras históricas (François Rabelais é um caso extremo da vertigem das listas de que se ocupa Umberto Eco). Em suma, o inferno trata bem os condenados, “embora lhes altere o seu estado de estranha forma”. Opera uma inversão social: Quem era poderoso na terra, é humilde no inferno. Assim o ilustra a gravura de Gustave Doré.
Humor estranho
Os génios também fazem obras de arte disfarçadas de anúncios publicitários. É o caso do alemão Andreas Bruns. A sua página pessoal é parca em anúncios (http://www.andreasbruns.com/), mas cada um tem um toque especial. Selecionei dois. Um terceiro, da Mercedes-Benz, The Journey, já foi publicado no blogue: http://tendimag.com/2013/01/10/perdidos-e-achados/. Save your skin, para a Lux, e Breathtaking, para a obsAIRve, seguem um esquema semelhante: um compasso longo que termina em sobressalto. No primeiro anúncio, fica-se com a sensação de assistir a um teaser de um filme terror já visto. Os últimos dez segundos encarregam-se de tudo subverter: o agressor escorrega no sabonete que escapa das mãos da vítima. No segundo anúncio, duas crianças sustêm longamente a respiração acabando por colocar, em catástrofe, uma máscara de gás num cenário inesperadamente apocalíptico. Em ambos os anúncios, a marca aparece durante esta turbulência final que nos deixa “sem respiração”. Trata-se de um humor grotesco, estranho e corrosivo, com raízes fundas na arte e na literatura alemãs. Remonta, pelo menos, ao movimento Sturm und Drang (tempestade e ímpeto; do séc. XVIII) partidário da Empfindung (emoção que suplanta a razão). Mikhail Bakhtin e Wolfgang Kayser, os principais teóricos do grotesco, dedicaram especial atenção a este movimento.
Marca: Lux. Título: Save your skin. Agência: Filmakademie Baden-Württemberg. Direção: Andreas Bruns. Alemanha, Outubro 2013.
Sobra uma pergunta: como é que um vídeo insólito e desconcertante contribui para a compra de sabonetes Lux? Será que um conteúdo desagradável pode, devidamente eufemizado e contextualizado, cativar? Será que o segredo reside mais na forma do que no conteúdo? Importa resgatar uma longa tradição, acentuadamente alemã, de pesquisa das formas, patente em Heinrich Wölfflin, Georg Simmel, Georgy Lukacs, Erwin Panofsky ou Walter Benjamin. Para abordar os anúncios publicitários enquanto formas simbólicas, convém dar a mão a autores com Mikhail Bakhtin, Marshall McLuhan, Roland Barthes, Gilbert Durand, Jean Baudrillard, Umberto Eco, Gilles Deleuze ou Omar Calabrese.
Anunciante: obsAIRve. Título: Breathtaking. Agência: Filmakademie Baden-Württemberg. Direção: Andreas Bruns. Alemanha, Dezembro 2012.
Não é nenhuma aberração uma pessoa deixar-se seduzir pelo tétrico e pelo estranho. Os filmes dedicados ao terror e ao absurdo obtiveram, desde os primórdios do cinema, sucessos de bilheteira: Nosferatu, o Vampiro, de Friedrich Munau, de 1922; o Drácula, de Tod Browning, de 1931; do mesmo realizador, Freaks, de 1932; o primeiro Frankenstein foi produzido em 1910 por Thomas Edison: em 1931 surge a versão clássica de James Whale, com Boris Karloff; por último, Um Cão Andaluz, filme surrealista de Luis Buñuel e Salvador Dali, é publicado em 1929. Na actualidade, os filmes do género banalizaram-se. Em boa verdade, o tétrico e o sinistro tanto nos repelem como nos atraem.