Realismo grotesco

Ambrogio Bergognone, Detail of the polyptych with St. Peter Martyr and a Kneeling Donor, Musée du Louvre, Paris, ca. 1494.
Acontece-me deixar cair borrões de tinta na escrita. Frases pingadas, plasmadas, sem antes nem depois. Por exemplo: “Os medievais recorriam ao realismo extremo para dizer o sagrado” (Dar corda ao desejo). Como se pode escrever uma frase abrupta e isolada como esta?
Mikhail Bakhtin criou a noção de realismo grotesco para caracterizar um leque extenso de actividades culturais da Idade Média e do Renascimento: linguagem, literatura, pintura, música, festas, teatro, usos do corpo, gastronomia, jogos, religião, humor… Os fenómenos, reais ou imaginários, são retratados com um efeito de verosimilhança impressionante, incluindo os pormenores. Este efeito de realidade consegue conviver com um efeito de estranheza, grotesco ou macabro. O artigo que dedicámos a São Bartolomeu, esfolado vivo (A festa de São Bartolomeu de Cavez), constitui um bom exemplo de realismo grotesco. Acrescente-se São Pedro Mártir e Orígenes de Alexandria.
São Pedro Mártir (Pedro de Verona, ca. 1205-1252), dominicano, pregou contra os heréticos, nomeadamente os cátaros. O Papa Gregório IX nomeou-o, em 1234, Inquisidor Geral para o Norte de Itália e o Papa Inocêncio IV, em 1251, Inquisidor da Lombardia.
Em 1252, no regresso a Milão, foi mortalmente atingido com um golpe de machado na cabeça. Ferido, escreveu com o próprio sangue a palavra: credo. Como é representado este Santo? Durante a emboscada ou noutro contexto, com o machado, ou equivalente, cravado na cabeça. Realismo insólito ou macabro.
Orígenes de Alexandria (185-254) é um teólogo cristão com obra apreciável. Segundo Eusébio de Cesareia (263-339), Orígenes autocastrou-se, inspirado nos versículos do evangelho de São Mateus: “Alguns são eunucos porque nasceram assim; outros foram feitos assim pelos homens; outros ainda se fizeram eunucos por causa do Reino dos céus. Quem puder aceitar isso, aceite” (Mateus 19:12). Algumas imagens de Orígenes centram-se, precisamente, no acto de castração. Muitas iluminuras medievais retratam explicitamente actos de castração.
A Idade Média não detém o exclusivo do realismo grotesco. Os nossos tempos também são férteis na suspensão estranha mas precisa da experiência familiar. No domínio da arte, da comunicação social, da Internet…
Magnífico.