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Estigma capilar

Fotografia de Robert Capa. Chartres, 18 de agosto de 1944. Logo após a libertação da cidade, raparam o cabelo a uma mulher francesa que teve um filho com um soldado alemão como sinal de humilhação

Proveniente da Alemanha, país que tendemos a associar alguma contenção e ponderação, o anúncio “Hans”, da empresa de cabeleireiros Headhunter, excede-se. Propõe uma paródia ousada, senão atrevida, de uma realidade sensível: as campanhas de consciencialização para a inclusão de crianças com deficiência. Num aspeto o anúncio não deixa de estar certo: os cabelos podem funcionar como estigma, contagiando e desvalorizando a pessoa no seu todo. Recorde-se que, no final da Segunda Grande Guerra, nos dias imediatos à libertação da França, a população rapou o cabelo aos “colaboracionistas” com o regime nazi, expondo-os em cortejos degradantes (ver Violência e Humilhação: https://tendimag.com/2016/01/14/violencia-e-humilhacao/).

Marca: Headhunter. Título: Hans. Agência: Philipp & keuntje. Direção: Laszlo Kadar. Alemanha, 2000.

O contágio do estigma

Ironside. Série da NBC.1967 a 1975.

“Tendemos a inferir uma série de imperfeições a partir da imperfeição original e, ao mesmo tempo, a imputar ao interessado alguns atributos desejáveis mas não desejados, frequentemente de aspecto sobrenatural, tais como “sexto sentido” ou “percepção”:

“Alguns podem hesitar em tocar ou guiar o cego, enquanto que outros generalizam a deficiência de visão sob a forma de uma gestalt de incapacidade, de tal modo que o indivíduo grita com o cego como se ele fosse surdo ou tenta erguê-lo como se ele fosse aleijado. Aqueles que estão diante de um cego podem ter uma gama enorme de crenças ligadas ao estereótipo. Por exemplo, podem pensar que estão sujeitos a um tipo único de avaliação, supondo ou o indivíduo cego recorre a canais específicos de informação não disponíveis para os outros.”” (Erving Goffman, Estigma, 1ª edição 1963).

Confirmo. Durante o período em que estive sem mobilidade até os mais parvos se estimavam mais inteligentes. Preso à cadeira de rodas, observava, nada surpreendido e um pouco resignado, a caravana a passar. Personagens como o detetive Robert T. Ironside, protagonista paralisado numa cadeira de rodas da série norte-americana Ironside (Têmpera de Aço, NBC de 1967 a 1975) representam uma exceção excessiva que confirma a regra.

Mas não sobrevem apenas um efeito de contágio. Quando o estigma desaparece, pode ocorrer, também, um efeito de prolongamento. A atitude mantem-se para além das condições que a justificaram. Em casos como este, Pierre Bourdieu fala em “histerese do habitus”. Arrumada a cadeira de rodas, a ilusão continua. A comodidade e a condescendência insistem em subestimar a inteligência e, como é costume nestas situações, a dignidade do “resgatado vulnerável”. Entretanto, sinto que estou a perder a paciência.

Abrenúncio

Skeleton Smoking Poster, by Microgen Images/science Photo Library

“Sucessivas subidas de impostos sem influência nos fumadores. Estado com receitas de 1,4 mil milhões. Vendas cresceram quase 20% até abril. Fotos chocantes nos maços aprovadas há seis anos. / Os portugueses estão a fumar mais este ano do que fumaram no arranque do ano passado. As sucessivas subidas do imposto sobre o tabaco (IT) não parecem dissuadir os consumidores, tendo-se registado um aumento de 19,59% de cigarros consumidos entre janeiro e abril de 2022 face a igual período de 2021. O Governo prevê que, em 2022, face ao aumento de 1%, o IT renda 1433 milhões de euros, mais 20 milhões do que em 2021. O JN falou com dois especialistas em doenças pulmonares no dia em que se cumprem seis anos desde que foram introduzidas as imagens explícitas nos maços de tabaco. Ambos consideram que o recurso às fotografias não chega, por si só, para reduzir o consumo. E, em linha com o que defende a DGS, referem que a chave é continuar a fazer subir os preços” (João de Vasconcelos e Sousa e João f. Sousa, Nem o aumento do tabaco trava o consumo: Jornal de Notícias, sexta-feira, 20.5.2022.

Anunciante: Breathe-free Foundation. Título: Suicide. Agência: Y&R Singapore. Direção: Royston Tan. Singapura, setembro 2006.

Ano após ano, aguarda-nos, ao dobrar da esquina, a mesma lamúria e a mesma panaceia. Décadas a fio, durante quase meio século, ressurge, lamentada, a surpresa: na melhor das hipóteses, o consumo de tabaco praticamente não desce, antes pelo contrário, sobe, por vezes muito, como ano transato (19,59% em Portugal). Afinal, as medidas, extraordinárias não lograram os resultados esperado. Nem nos anos oitenta, com a proibição da publicidade ao tabaco, nem nos anos noventa, com a proibição de fumar nos recintos fechados, nem agora, com as fotografias alarmantes. Uma série de medidas decisivas ao nível da ecologia do tabaco, dos seus usos sociais, mas, aparentemente, sem resultados de vulto no que respeita à evolução dos valores de consumo. Como balanço, assume-se, algo paradoxalmente, que o recurso ao aumento do preço do tabaco, graças ao aumento o imposto sobre o consumo de tabaco (IT) é o grande recurso, senão único, pelo menos indispensável. Ano após ano, não para de aumentar, “extraordinária”, a tributação sobre o consumo de tabaco. Com resultados insuficientes, como nos anos precedentes. Pelos vistos, nem influencia, nem modera.

As medidas antitabaco e o aumento da carga fiscal resultam, portanto, inócuos? Nem por isso. Proporcionam uma receita adicional gigantesca para os cofres do Estado. Aumentam, sem mais, a carga fiscal de uma categoria específica de contribuintes. Em termos de redistribuição, a consequência é a transferência excecional, mas constante, de uma parte do rendimento de uma parte dos cidadãos para outros (para o conjunto). Esta política fiscal “antitabaco” é responsável pelo empobrecimento absoluto e relativo de uma categoria social: os consumidores de tabaco. Aberração por aberração, esta sobrecarga fiscal inscreve-se como um contrassenso no âmbito de um Estado Social: configura um imposto de algum modo “regressivo” cuja incidência aumenta à medida que os rendimentos diminuem; são os mais pobres quem mais fuma.

Em suma, o efeito do aumento do imposto sobre o tabaco manifesta-se perverso: irrelevante no que respeita ao objetivo que o justifica, o consumo do tabaco, assevera-se apreciável como derivação instrumental, o aumento da receita fiscal. Alguns diriam um discurso “encapotado”, outros farisaico, sem desprimor para os fariseus. Trata-se de uma política de foro fiscal, discriminatória, iníqua e avessa ao princípio da progressividade dos impostos. ” A Constituição estabelece no n.º 1 do artigo 104.º que “O imposto sobre o rendimento pessoal visa a diminuição das desigualdades e será único e progressivo, tendo em conta as necessidades e os rendimentos do agregado familiar”.

As políticas antitabaco produzem, para além do aumento discriminatório e regressivo da carga fiscal, outros efeitos, por exemplo, ao nível dos direitos e deveres dos cidadãos em domínios tais como a comunicação, a circulação, a autoestima, a privacidade, a intimidade…  Algumas são legítimas e positivas: a proibição da publicidade de uma mercadoria nociva ou a salvaguarda do direito a um espaço saudável e com qualidade de vida. Convence-me menos a publicidade antitabaco, que tende a resvalar para uma espécie de cruzada centrada na figura do próprio fumador, por vezes reduzido a um bárbaro, um poluidor, um irresponsável e um suicida sem hora marcada, que urge converter sem regatear meios. As fotografias chocantes retomam a inspiração dos espelhos da morte medievais:  o fumador vê-se confrontado com o seu provável futuro macabro. Em qualquer lugar, a qualquer hora, incluindo na vida privada e na sua intimidade. Com o panótico, os prisioneiros sentem-se sempre vigiados, com as embalagens atuais de cigarros, o fumador está condenado a não aliviar o olhar, como o protagonista do filme Laranja Mecânica. Trata-se de um excesso de ameaça e assédio, ubíquo e constante. De momento quero convencer-me de que a espontaneidade de um testemunho, franco e satisfeito, de um colega ou amigo contribui mais para a diminuição do consumo de tabaco do que resmas de embalagens de cigarros. As imagens perturbadoras com alertas sobre os riscos do tabaco surgiram pela primeira vez no Canadá, em 2001. Desde então, inúmeros países, com as mais diversas culturas, adotaram, replicando, esta iniciativa. Aplicaram-na com que criatividade, reflexividade e adaptação? Grau zero? Copy and paste?

Se este atropelo à dignidade humana não surte os resultados desejados, não acerta no alvo, por que se insiste em alargá-lo e repeti-lo? Será completamente descabida a crença do senso comum de que um viciado acossado tende a ser mais difícil de converter? Será que subsistem casos em que a transgressão persuade mais do que dissuade? Por que investir em perversidades com escassos benefícios e elevados custos pessoais e sociais? Para que serve e a quem serve esta (des)orientação, este impasse já dura há meio século! Não há modo de ousar uma pausa para reconsiderar o desperdício?

Acontece interrogar-me se quem concebe e executa estas políticas e campanhas conhece os públicos alvo e os fenómenos em causa. Importa inverter esta tendência. Paul Lazarsfeld sustentava que a promoção de um político não é de natureza diversa da publicidade de um sabonete: convém conhecer o produto, os consumidores potenciais e o modo de os persuadir. Por que não se incentiva nem se aprofunda o estudo dos fumadores? Os seus perfis biopsicossociais, a sua condição, as suas experiências, trajetórias, culturas, valores e expetativas? Por que, em vez de atacar, não se ensaia compreender? Por que, em vez de enxovalhar o outro, não ajudamos o próximo? Em vez de o estigmatizar com palavras e imagens terroristas não o cativamos a fazer seu o nosso discurso? Por que não traduzir em vez de impor? Menos paranoia e mais empatia. Às vezes, invade-me um sentimento de frustração, a vertigem de uma aparatosa mensagem mobilizadora de destinatários fantasmas. A consciencialização social é um propósito demasiado complexo. Não costuma prestar-se a panaceias nem à insensibilidade.

Os fumadores e os não fumadores merecem outra criatividade, uma mudança de rumo, de leme e de espírito. Afinal, o assunto não é para menos: um em cada quatro portugueses, ou europeus, fuma! E não integra nenhum bestiário. Pelos vistos, o defeito não está no esforço convocado, remonta, talvez, à inspiração inicial.

Super-homens paralímpicos

Manuel Mendes conquista a medalha de bronze na maratona, para deficientes motores, dos Jogos Paralímpicos Rio2016.

Na véspera da abertura dos Jogos Paralímpicos de Tóquio 2020 (de 24 de agosto a 5 de setembro de 2021), estreou o anúncio We the 15, promovido pela International Paralympic Committee (IPC) e pela International Disability Alliance (IDA).

WeThe15 is sport’s biggest ever human rights movement to end discrimination. We aim to transform the lives of the world’s 1.2 billion persons with disabilities who represent 15% of the global population. Launching at the Tokyo 2020 Paralympic Games, We The15 plans to initiate change over the next decade by bringing together the biggest coalition ever of international organisations from the world of sport, human rights, policy, communications, business, arts and entertainment (We the 15: https://www.wethe15.org/).

O anúncio consiste numa série de sequências com performances de desportistas com deficiência. Acrescento os trailers Super. Human, divulgado um mês antes, e We’re The Superhumans, destinado aos Jogos Paralímpicos do Rio de Janeiros de 2016, ambos publicados pelo Channel 4, no mês de julho de 2021 e 2016, respetivamente. Partilhando, aproximadamente, o mesmo formato, os três vídeos são impressionantes. Relevo, em particular, o último, do Rio de Janeiro, pela aceleração vertiginosa das imagens.

International Paralympic Committee (IPC) & International Disability Alliance (IDA). We the 15. Agosto de 2021.
Anunciante: Channel 4. Super. Título;: Super. Human. Agência: 4Creative/London. Direção: Bradford Young. Reino Unido, Julho 2021.
Marca: Channel 4. Título: We’re The Superhumans. Agência: 4Creative/London. Direção: Dougal Wilson. Reino Unido. 2016.

Transcrevo, e recomendo, um excerto do livro Estigma, de Erving Goffman, editado em 1963, que propõe uma tipologia das estratégias, atitudes e comportamentos sociológicos e psicológicos dos estigmatizados, entre os quais os deficientes, face aos outros e a si próprios, que distingue este género de iniciativas, incluindo os presentes trailers. Erving Goffman consta entre os meus dez sociólogos preferidos.

Erving Goffman. Estigma, 1963; excerto do capítulo 1. Estigma e Identidade Social.

“A característica central da situação de vida, do indivíduo estigmatizado pode, agora, ser explicada. É uma questão do que é com freqüência, embora vagamente, chamado de “aceitação”. Aqueles que têm relações com ele não conseguem lhe dar o respeito e a consideração que os aspectos não contaminados de sua identidade social os haviam levado a prever e que ele havia previsto receber; ele faz eco a essa negativa descobrindo que alguns de seus atributos a garantem. Como a pessoa estigmatizada responde a tal situação? Em alguns casos lhe seria possível tentar corrigir diretamente o que considera a base objetiva de seu defeito, tal como quando uma pessoa fisicamente deformada se submete a uma cirurgia plástica, uma pessoa cega a um tratamento ocular, um analfabeto corrige sua educação e um homossexual faz psicoterapia. (Onde tal conserto é possível, o que freqüentemente ocorre não é a aquisição de um- status completamente normal, mas uma transformação do ego: alguém que tinha um defeito particular se transforma em alguém que tem provas de tê-lo corrigido.) Aqui, deve-se mencionar a predisposição à “vitimização” como um resultado da exposição da pessoa estigmatizada a servidores que vendem meios para corrigir a fala, para clarear a cor da pele, para esticar o corpo, para restaurar a juventude (como no rejuvenescimento através do tratamento com gema de ovo fertilizada), curas pela fé e meios para se obter fluência na conversação. Quer se trate de uma técnica prática ou de fraude, a pesquisa, freqüentemente secreta, dela resultante, revela, de maneira específica, os extremos a que os estigmatizados estão dispostos a chegar e, portanto, a angústia da situação que os leva a tais extremos. Pode-se citar um exemplo: “Mias Peck (uma assistente social de Nova York, pioneira de trabalhos em beneficio de pessoas com dificuldades auditivas) disse que outrora eram muitos os curandeiros e charlatães que, desejosos de enriquecer rapidamente, viam na Liga (para os que tinham dificuldades de audição) um frutífero campo de caça, ideal para promoção de gorros magnéticos, vibradores miraculosos, tímpanos artificiais, sopradores, inaladores, massageadores, óleos mágicos, 11 bálsamos e outros remédios que curam tudo, garantidos, positivos, à prova. de incêndio, e permanentes para a surdez incurável. Anúncios de tais artifícios (até a década de 20, quando a Associação Médica Americana decidiu promover uma campanha de investigação) atacavam os que tinham dificuldades de audição, pelas páginas da imprensa diária, inclusive revistas bem conceituadas.” O indivíduo estigmatizado pode, também, tentar corrigir a sua condição de maneira indireta, dedicando um grande esforço individual ao domínio de áreas de atividade consideradas, geralmente, como fechadas, por motivos físicos e circunstanciais, a pessoas com o seu defeito. Isso é ilustrado pelo aleijado que aprende ou reaprende a nadar, montar, jogar tênis ou pilotar aviões, ou pelo cego que se torna perito em esquiar ou em escalar montanhas. O aprendizado torturado pode estar associado, é claro, com o mau desempenho do que se aprendeu, como quando um indivíduo, confinado a uma cadeira de rodas, consegue levar uma jovem ao salão, numa espécie de arremedo de dança. Finalmente, a pessoa com um atributo diferencial vergonhoso pode romper com aquilo que é chamado de realidade, e tentar obstinadamente empregar uma interpretação não convencional do caráter de sua identidade social. A criatura estigmatizada usará, provavelmente, o seu estigma para “ganhos secundários”, como desculpa pelo fracasso a que chegou por outras razões: “Durante anos, a cicatriz, o lábio leporino ou o nariz disforme foram considerados como uma desvantagem, e sua importância nos ajustamentos social e emocional inconscientemente abarcava tudo. Essa desvantagem era o “cabide” no qual o paciente pendurava todas as insuficiências, todas as insatisfações, todas as protelações e todas as obrigações desagradáveis da vida social, e do qual veio a depender não somente como forma de libertação racional da competição mas ainda como forma de proteção contra a responsabilidade social. “Quando esse fator é removido por cirurgia, o paciente perde a proteção emocional mais ou menos aceitável que ele oferecia e logo descobre, para sua surpresa e inquietação, que a vida não é fácil de ser levada, mesmo pelas pessoas que têm rostos “comuns”, sem máculas. Ele está despreparado para lidar com essa situação sem o apoio de uma “desvantagem”, e pode-se voltar para a proteção menos simples, mas semelhante, de padrões de comportamento de neurastenia, conversão histérica, hipocondria ou estados de ansiedade 12 aguda.” O estigmatizado pode, também, ver as privações que sofreu como uma bênção secreta, especialmente devido à crença de que o sofrimento muito pode ensinar a uma pessoa sobre a vida e sobre as outras pessoas: “Mas agora, distante da experiência do hospital, posso avaliar o que aprendi. (Escreve uma mãe permanentemente inválida devido à poliomielite.) Porque aquilo não foi somente sofrimento: foi também um aprendizado através dele. Sei que a minha consciência das pessoas aumentou e se aprofundou, que todos os que estão perto de mim podem contar com minha mente, meu coração e minha atenção para os seus problemas. Eu não poderia ter descoberto isso correndo numa quadra de tênis.” De maneira semelhante, ele pode vir a reafirmar as limitações dos normais, como sugere um esclerático múltiplo: “Tanto as mentes quanto os corpos saudáveis podem estar aleijados. O fato de que pessoas “normais” possam andar, ver e ouvir não significa que elas estejam realmente vendo ou ouvindo. Elas podem estar completamente cegas para as coisas que estragam sua felicidade, totalmente surdas aos apelos de bondade de outras pessoas; quando penso nelas não me sinto mais aleijado ou incapacitado do que elas. Talvez, num certo sentido, eu possa ser um meio de abrir os seus olhos para as belezas que estão à nossa volta: coisas como um aperto de mão afetuoso, uma voz que está ansiosa por conforto, uma brisa de primavera, certa música, uma saudação amistosa. Essas pessoas são importantes para mim e eu gosto de sentir que posso ajudá-las.” E um cego escreve: “Isso levaria imediatamente a se pensar que há muitos acontecimentos que podem diminuir a satisfação de viver de maneira muito mais efetiva do que a cegueira. Esse pensamento é inteiramente saudável. Desse ponto de vista, podemos perceber, por exemplo, que um defeito como a incapacidade de aceitar amor humano, que pode diminuir o prazer de viver até quase esgotá-lo, é muito mais trágico do que a cegueira. Mas é pouco comum que o homem com tal doença chegue a aperceber[1]se dela e, portanto, a ter pena de si mesmo.” Escreve um aleijado: “À proporção que a vida continuava, eu soube de muitos, muitos tipos diferentes de desvantagens, não apenas físicas, e comecei a perceber que as palavras da garota aleijada no 13 excerto acima (palavras de amargura) bem poderiam ter sido pronunciadas por jovens mulheres que se sentiam inferiores e diferentes por sua feiúra, incapacidade de ter filhos, impossibilidade de relacionamento com outras pessoas, ou muitas outras razões.”

Erving Goffman, Estigma, 1963; excerto do capítulo 1. Estigma e Identidade Social. Tradução de Mathias Lambert. Versão brasileira. Sem espaços entre parágrafos).

Conto de Natal

Este é o meu artigo de Natal. Uma curta-metragem superpremiada. Creio que ainda vai a tempo. Boas festas!

“The Present” is a thesis short from the Institute of Animation, Visual Effects and Digital Postproduction at the Filmakademie Baden-Wuerttemberg in Ludwigsburg, Germany. 2014.

Margens (Ficção)

M.C. Escher. Encounter. 1944.

Das margens sólidas da fábrica da razão para as margens líquidas do Norte, de onde contemplo a Espanha, coisa digna de ser vista.

Na fábrica da razão certificada, no concelho onde resido, anda tudo com a fita métrica elástica na cabeça. Nada escapa à quantificação. Algum resto inverosímil que resista tem o selo do sétimo dia da criação. O “sonho da razão” Goya “persegue a medida de tudo e a relevância de nada” (Pitirim Sorokin). Assim como existe o “reino da Taquicardia” (filme de Paul Grimault: https://tendimag.com/2011/09/04/o-reino-de-taquicardia-animacao-musica-e-palavra/), também existe o reino da Quantofrenia. Se na fábrica da razão a medida é compulsiva, nas margens salgadas da minha residência balnear, “estigmatizam” mais do que me calculam. Somos semáforos de identidade. Olha-se para a barriga e não se vê mais nada. O cerne, segundo Goffman, do estigma: a parte polui o todo. Não sei que escolher: ser medido ou estigmatizado. Ontem, fui ao restaurante. Fiz o pedido. O empregado inspecciona, focaliza a barriga e pergunta: quantas doses? Acho que vou regressar antes do Carnaval às margens da fábrica da razão: medem-me a barriga como caso particular do geral. A avaliação é como a “donna” do Rigoletto de Pucinni: incerta e volúvel, mas abstracta e global, graças aos indicadores, aos índices e às ponderações. Nunca conhecerei ao certo o volume da barriga. Aguardo, os cartógrafos de Jorge Luís Borges:

“Naquele Império, a Arte da Cartografia logrou tal perfeição que o mapa de uma única Província ocupava toda uma Cidade, e o mapa do império, toda uma Província. Com o tempo, esses Mapas Desmedidos não satisfizeram e os Colégios de Cartógrafos levantaram um Mapa do Império, que tinha o tamanho do Império e coincidia pontualmente com ele” (Jorge Luís Borges, “Sobre o Rigor na Ciência”, in História Universal da Infâmia, Assírio e Alvim,1982, 117).

Hoje fui ao concelho do meu berço, as minhas margens de água doce. Fui a uma residência sénior. No salão, uma mulher de 89 anos exclama: “Olhó Tino! Há quanto tempo!” E dá-me um abraço. A barriga não estorvou. Nestas margens de água doce, não sou nem uma equação nem uma aparência. Tenho um nome, uma história e afectos. Sem precisão de números. Como diria Alfred Schutz, sou um ser “apostrofado”, uma pessoa única, avessa a generalizações.

Das margens da água salgada e da água doce, avista-se a Espanha. Também se pode ouvir pela mão de um pianista norte-americano: Chick Corea, com Bobby McFerrin

Spain. Chick Corea com Bobby McFerrin. Original: Return to Forever. Light as a Feather. 1972.

Máscara de protecção

Operation Smile

Este anúncio chinês, Girl in the mask, é desconcertante. Uma menina coloca uma máscara antes de sair de casa. O motivo, pensamos, é a elevada poluição do ar. Pensamos bem. A menina, cheia de vida, alegra o seu dia. De regresso à casa, um momento de desânimo. Retirada a máscara, descobre-se um lábio leporino. O anúncio evidencia a poluição atmosférica, mas esta é apenas um recurso, não é o alvo. O objectivo reside em fazer sentir quão duro pode ser viver todos os dias com um atributo que nos diminui. Neste anúncio, as emoções e as ilusões levam-nos pela mão. Vem a propósito a obra de Erving Goffman. A menina retira a máscara em casa, nos bastidores, onde está ao abrigo da atenção alheia. Graças à máscara, apesar do estigma, ela não perde a face em público. Mas é desacreditável, logo vulnerável. A qualquer momento, pode resultar desacreditada. Felizmente, o estigma, o lábio leporino, não é uma fatalidade. Tem cura. Dessa cura se ocupa, precisamente, a Operation Smile.

Anunciante: Operation Smile. Título: Girl in the Mask. Produção: Quad Productions. Direcção: Henry Mason. China, Setembro 2017.

 

Afinidades geoeconómicas

Portugal, Espanha, Itália e Grécia

Não bebo vinho, nem vou às putas. Lamento! Mas gosto da Grécia, da Itália, da Espanha e de Portugal. Temos muitas afinidades e, agora, nomeada comum. Quanto aos demais países europeus, nenhuma fobia de estimação. Se estivesse em condições de criar uma banda, baptizava-a, abreviando, Pigs, por extenso, Pigs in Shit. Entretanto, gosto da música dos quatro países.

Adriano Correia de Oliveira. Lira. Cantigas Portuguesas. 1980.

Patxi Andión. Me está doliendo una pena. Palabra por Palabra. 1972.

Riccardo Cocciante. Bella senz’anima. Anima. 1974.

Eleni Karaindrou. Eternity Theme. Eternity and a day. 1999.

Super-humanos

We're the Superhumans

“O indivíduo estigmatizado pode, também, tentar corrigir a sua condição de maneira indireta, dedicando um grande esforço individual ao domínio de áreas de atividade consideradas, geralmente, como fechadas, por motivos físicos e circunstanciais, a pessoas com o seu defeito. Isso é ilustrado pelo aleijado que aprende ou reaprende a nadar, montar, jogar tênis ou pilotar aviões, ou pelo cego que se torna perito em esquiar ou em escalar montanhas” (Erving Goffman, Estigma, 1963).

Há várias formas de lidar com o estigma. Por exemplo, ultrapassar os limites. O indivíduo estigmatizado, portador de deficiência, excede-se num gesto que o aproxima do estatuto de um herói ou de um semideus. É uma forma não vitimizadora de lidar com o estigma.

O anúncio, excelente, da Channel 4, para os Paralímpicos de 2016, no Rio de Janeiro, convoca atletas, músicos e artistas que superam as suas próprias limitações: We’re the Superhumans. O anúncio apresenta seres humanos extraordinários. Recuando no tempo, insinuam-se os fantasmas dos circos e das galerias dos séculos XIX e XX. Atente-se, por exemplo, no filme O Homem Elefante (1980), de David Lynch, inspirado no caso de Joseph Merrick (1866-1890). De deriva em deriva, o anúncio aproxima-se de uma galeria da era digital.

Marca: Channel 4. Título: We’re the Superhumans. Agência: Channel 4 Blink Productions. Direcção: Dougal Winson. UK, Julho 2016.