Limiares do tempo

Luigi Russolo. A revolta. 1911 (futurismo)

A NOS lançou dois anúncios que convocam imaginários distintos: Estou Além (2019) e O Amanhã (2021). Esta diferença não é excecional. Não mais do que campanhas que mantêm, anos a fio, a mesma orientação: a Nike, a Hornbach, a Cartier, a Citroen, a Old Spice…

Saliento alguns tópicos característicos dos dois anúncios da NOS.

Primeiro, o anúncio Estou Além:

  • Desassossego;
  • Indivíduos unidos à distância numa rede tribal;
  • Pressa de chegar;
  • Valorização do presente;
  • Coro, comunhão;
  • António Variações.

O anúncio Estou Além aproxima-se de um imaginário pós-moderno com contornos dionisíacos.

Marca: NOS 5G. Título: Estou além. Produção: Ministério dos Filmes. Direção: Marco Martins. Portugal, novembro 2019.

O discurso do anúncio O Amanhã é eloquente e repetitivo:

“O que aí vem é uma página em branco (…) temos vontade de futuro (…) a ideia do amanhã faz-nos estremecer (…) faz-nos querer, e então abraçamos esta viagem e avançamos sem amarras, sem olhar para trás (…) Temos vontade de futuro, vontade de mudar o mundo (…) sem olhar para trás. E sempre que for preciso, podemos ir ao nosso fundo e relembrar: de que somos feitos? De coragem, liberdade e coração. Levamos na bagagem toda a inteligência, toda a ciência, toda a emoção. Da descoberta, da conquista, de navegar sem ver a terra à vista. O que aí vem é uma página em branco. E nós vamos escrevê-la. Com toda a nossa força, arte e engenho. Hoje, mais do que nunca. Temos vontade de futuro. De virar a página. De fazer, pela primeira vez, tudo o que ninguém fez”.

No anúncio O Amanhã, os protagonistas surgem isolados, longe da multidão turbulenta do final do anúncio Estou Além. O presente é uma página em branco. O ser humano aposta no futuro. Reúne competência e potência para concretizar os seus desígnios (coragem, liberdade, inteligência, força e engenho). Conquistador do amanhã, “faz, pela primeira vez, tudo o que ninguém fez”.
Este imaginário não é pós-moderno. Porventura, futurista (ver, em baixo, manifesto futurista de Marinetti). O herói do anúncio O Amanhã resulta prometeico, “caracterizado pelo desejo de se ultrapassar, pelo gosto do esforço e pelas grandes iniciativas, pela fé na grandeza humana” ((https://wish.brussels/forum/viewtopic.php/community/7a8c44-lille-aix-en-provence-avion?7a8c44=personnage-prom%C3%A9th%C3%A9en).

Marca: NOS. Título: O amanhã. Agência: Havas Different. Produção: Ministério dos Filmes. Direção: Marco Martins. Portugal, Abril 2021.

Manifesto do Futurismo ( Filippo Tommaso Marinetti, 1909)

  1. Nós queremos cantar o amor ao perigo, o hábito da energia e da temeridade.
  2. A coragem, a audácia, a rebelião serão elementos essenciais de nossa poesia.
  3. A literatura exaltou até hoje a imobilidade pensativa, o êxtase, o sono. Nós queremos exaltar o
    movimento agressivo, a insônia febril, o passo de corrida, o salto mortal, o bofetão e o soco.
  4. Nós afirmamos que a magnificência do mundo enriqueceu-se de uma beleza nova: a beleza da
    velocidade. Um automóvel de corrida com seu cofre enfeitado com tubos grossos, semelhantes a
    serpentes de hálito explosivo… um automóvel rugidor, que correr sobre a metralha, é mais bonito que a
    Vitória de Samotrácia.
  5. Nós queremos entoar hinos ao homem que segura o volante, cuja haste ideal atravessa a Terra,
    lançada também numa corrida sobre o circuito da sua órbita.
  6. É preciso que o poeta prodigalize com ardor, fausto e munificiência, para aumentar o entusiástico
    fervor dos elementos primordiais.
  7. Não há mais beleza, a não ser na luta. Nenhuma obra que não tenha um caráter agressivo pode ser
    uma obra-prima. A poesia deve ser concebida como um violento assalto contra as forças desconhecidas,
    para obrigá-las a prostrar-se diante do homem.
  8. Nós estamos no promontório extremo dos séculos!… Por que haveríamos de olhar para trás, se
    queremos arrombar as misteriosas portas do Impossível? O Tempo e o Espaço morreram ontem. Nós já
    estamos vivendo no absoluto, pois já criamos a eterna velocidade onipresente.
  9. Nós queremos glorificar a guerra – única higiene do mundo – o militarismo, o patriotismo, o gesto
    destruidor dos libertários, as belas ideias pelas quais se morre e o desprezo pela mulher.
  10. Nós queremos destruir os museus, as bibliotecas, as academia de toda natureza, e combater o
    moralismo, o feminismo e toda vileza oportunista e utilitária.
  11. Nós cantaremos as grandes multidões agitadas pelo trabalho, pelo prazer ou pela sublevação;
    cantaremos as marés multicores e polifônicas das revoluções nas capitais modernas; cantaremos o
    vibrante fervor noturno dos arsenais e dos estaleiros incendiados por violentas luas elétricas; as
    estações esganadas, devoradoras de serpentes que fumam; as oficinas penduradas às nuvens pelos fios
    contorcidos de suas fumaças; as pontes, semelhantes a ginastas gigantes que cavalgam os rios,
    faiscantes ao sol com um luzir de facas; os piróscafos aventurosos que farejam o horizonte, as
    locomotivas de largo peito, que pateiam sobre os trilhos, como enormes cavalos de aço enleados de
    carros; e o voo rasante dos aviões, cuja hélice freme ao vento, como uma bandeira, e parece aplaudir
    como uma multidão entusiasta.
  12. É da Itália, que nós lançamos pelo mundo este nosso manifesto de violência arrebatadora e
    incendiária, com o qual fundamos hoje o “Futurismo”, porque queremos libertar este país de sua fétida
    gangrena de professores, de arqueólogos, de cicerones e de antiquários.
  13. Já é tempo de a Itália deixar de ser um mercado de belchiores. Nós queremos libertá-la dos
    inúmeros museus que a cobrem toda de inúmeros cemitérios.
  14. Museus: cemitérios!… Idênticos, na verdade, pela sinistra promiscuidade de tantos corpos que não
    se conhecem. Museus: dormitórios públicos em que se descansa para sempre junto a seres odiados ou
    desconhecidos! Museus: absurdos matadouros de pintores e escultores, que se vão trucidando
    ferozmente a golpes de cores e linhas, ao longo das paredes disputadas!
  15. Que se vá lá em peregrinação, uma vez por ano, como se vai ao Cemitério no dia de finados… Passe.
    Que uma vez por ano se deponha uma homenagem de flores diante da Gioconda, concedo…
  16. Mas não admito que se levem passear, diariamente pelos museus, nossas tristezas, nossa frágil
    coragem, nossa inquietude doentia, mórbida. Para que se envenenar? Para que apodrecer?
  17. E o que mais se pode ver, num velho quadro, senão a fatigante contorção do artista que se esforçou
    para infrigir as insuperáveis barreiras opostas ao desejo de exprimir inteiramente seu sonho?… Admirar
    um quadro antigo equivale a despejar nossa sensibilidade numa urna funerária, no lugar de projetá-la
    longe, em violentos jatos de criação e de ação.
  18. Vocês querem, pois, desperdiçar todas as suas melhores forças nesta eterna e inútil admiração do
    passado, da qual vocês só podem sair fatalmente exaustos, diminuídos e pisados?
  19. Em verdade eu lhes declaro que a frequência diária aos museus, às bibliotecas e às academias
    (cemitérios de esforços vãos, calvários de sonhos crucificados, registro de arremessos truncados!…) é
    para os artistas tão prejudicial, quanto a tutela prolongada dos pais para certos jovens ébrios de
    engenho e de vontade ambiciosa. Para os moribundos, para os enfermos, para os prisioneiros, vá lá:- o
    admirável passado é, quiçá, um bálsamo para seus males, visto que para eles o porvir está trancado…
    Mas nós não queremos nada com o passado, nós, jovens e fortes futuristas!
  20. E venham, pois, os alegres incendiários de dedos carbonizados! Ei-los! Ei-los!… Vamos! Ateiem fogo
    às estantes das bibliotecas!… Desviem o curso dos canais, para inundar os museus!… Oh! a alegria de
    ver boiar à deriva, laceradas e desbotadas sobre aquelas águas, as velhas telas gloriosas!… Empunhem
    as picaretas, os machados, os martelos e destruam sem piedade as cidades veneradas!

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