Limiares do tempo

A NOS lançou dois anúncios que convocam imaginários distintos: Estou Além (2019) e O Amanhã (2021). Esta diferença não é excecional. Não mais do que campanhas que mantêm, anos a fio, a mesma orientação: a Nike, a Hornbach, a Cartier, a Citroen, a Old Spice…
Saliento alguns tópicos característicos dos dois anúncios da NOS.
Primeiro, o anúncio Estou Além:
- Desassossego;
- Indivíduos unidos à distância numa rede tribal;
- Pressa de chegar;
- Valorização do presente;
- Coro, comunhão;
- António Variações.
O anúncio Estou Além aproxima-se de um imaginário pós-moderno com contornos dionisíacos.
O discurso do anúncio O Amanhã é eloquente e repetitivo:
“O que aí vem é uma página em branco (…) temos vontade de futuro (…) a ideia do amanhã faz-nos estremecer (…) faz-nos querer, e então abraçamos esta viagem e avançamos sem amarras, sem olhar para trás (…) Temos vontade de futuro, vontade de mudar o mundo (…) sem olhar para trás. E sempre que for preciso, podemos ir ao nosso fundo e relembrar: de que somos feitos? De coragem, liberdade e coração. Levamos na bagagem toda a inteligência, toda a ciência, toda a emoção. Da descoberta, da conquista, de navegar sem ver a terra à vista. O que aí vem é uma página em branco. E nós vamos escrevê-la. Com toda a nossa força, arte e engenho. Hoje, mais do que nunca. Temos vontade de futuro. De virar a página. De fazer, pela primeira vez, tudo o que ninguém fez”.
No anúncio O Amanhã, os protagonistas surgem isolados, longe da multidão turbulenta do final do anúncio Estou Além. O presente é uma página em branco. O ser humano aposta no futuro. Reúne competência e potência para concretizar os seus desígnios (coragem, liberdade, inteligência, força e engenho). Conquistador do amanhã, “faz, pela primeira vez, tudo o que ninguém fez”.
Este imaginário não é pós-moderno. Porventura, futurista (ver, em baixo, manifesto futurista de Marinetti). O herói do anúncio O Amanhã resulta prometeico, “caracterizado pelo desejo de se ultrapassar, pelo gosto do esforço e pelas grandes iniciativas, pela fé na grandeza humana” ((https://wish.brussels/forum/viewtopic.php/community/7a8c44-lille-aix-en-provence-avion?7a8c44=personnage-prom%C3%A9th%C3%A9en).
Manifesto do Futurismo ( Filippo Tommaso Marinetti, 1909)
- Nós queremos cantar o amor ao perigo, o hábito da energia e da temeridade.
- A coragem, a audácia, a rebelião serão elementos essenciais de nossa poesia.
- A literatura exaltou até hoje a imobilidade pensativa, o êxtase, o sono. Nós queremos exaltar o
movimento agressivo, a insônia febril, o passo de corrida, o salto mortal, o bofetão e o soco. - Nós afirmamos que a magnificência do mundo enriqueceu-se de uma beleza nova: a beleza da
velocidade. Um automóvel de corrida com seu cofre enfeitado com tubos grossos, semelhantes a
serpentes de hálito explosivo… um automóvel rugidor, que correr sobre a metralha, é mais bonito que a
Vitória de Samotrácia. - Nós queremos entoar hinos ao homem que segura o volante, cuja haste ideal atravessa a Terra,
lançada também numa corrida sobre o circuito da sua órbita. - É preciso que o poeta prodigalize com ardor, fausto e munificiência, para aumentar o entusiástico
fervor dos elementos primordiais. - Não há mais beleza, a não ser na luta. Nenhuma obra que não tenha um caráter agressivo pode ser
uma obra-prima. A poesia deve ser concebida como um violento assalto contra as forças desconhecidas,
para obrigá-las a prostrar-se diante do homem. - Nós estamos no promontório extremo dos séculos!… Por que haveríamos de olhar para trás, se
queremos arrombar as misteriosas portas do Impossível? O Tempo e o Espaço morreram ontem. Nós já
estamos vivendo no absoluto, pois já criamos a eterna velocidade onipresente. - Nós queremos glorificar a guerra – única higiene do mundo – o militarismo, o patriotismo, o gesto
destruidor dos libertários, as belas ideias pelas quais se morre e o desprezo pela mulher. - Nós queremos destruir os museus, as bibliotecas, as academia de toda natureza, e combater o
moralismo, o feminismo e toda vileza oportunista e utilitária. - Nós cantaremos as grandes multidões agitadas pelo trabalho, pelo prazer ou pela sublevação;
cantaremos as marés multicores e polifônicas das revoluções nas capitais modernas; cantaremos o
vibrante fervor noturno dos arsenais e dos estaleiros incendiados por violentas luas elétricas; as
estações esganadas, devoradoras de serpentes que fumam; as oficinas penduradas às nuvens pelos fios
contorcidos de suas fumaças; as pontes, semelhantes a ginastas gigantes que cavalgam os rios,
faiscantes ao sol com um luzir de facas; os piróscafos aventurosos que farejam o horizonte, as
locomotivas de largo peito, que pateiam sobre os trilhos, como enormes cavalos de aço enleados de
carros; e o voo rasante dos aviões, cuja hélice freme ao vento, como uma bandeira, e parece aplaudir
como uma multidão entusiasta. - É da Itália, que nós lançamos pelo mundo este nosso manifesto de violência arrebatadora e
incendiária, com o qual fundamos hoje o “Futurismo”, porque queremos libertar este país de sua fétida
gangrena de professores, de arqueólogos, de cicerones e de antiquários. - Já é tempo de a Itália deixar de ser um mercado de belchiores. Nós queremos libertá-la dos
inúmeros museus que a cobrem toda de inúmeros cemitérios. - Museus: cemitérios!… Idênticos, na verdade, pela sinistra promiscuidade de tantos corpos que não
se conhecem. Museus: dormitórios públicos em que se descansa para sempre junto a seres odiados ou
desconhecidos! Museus: absurdos matadouros de pintores e escultores, que se vão trucidando
ferozmente a golpes de cores e linhas, ao longo das paredes disputadas! - Que se vá lá em peregrinação, uma vez por ano, como se vai ao Cemitério no dia de finados… Passe.
Que uma vez por ano se deponha uma homenagem de flores diante da Gioconda, concedo… - Mas não admito que se levem passear, diariamente pelos museus, nossas tristezas, nossa frágil
coragem, nossa inquietude doentia, mórbida. Para que se envenenar? Para que apodrecer? - E o que mais se pode ver, num velho quadro, senão a fatigante contorção do artista que se esforçou
para infrigir as insuperáveis barreiras opostas ao desejo de exprimir inteiramente seu sonho?… Admirar
um quadro antigo equivale a despejar nossa sensibilidade numa urna funerária, no lugar de projetá-la
longe, em violentos jatos de criação e de ação. - Vocês querem, pois, desperdiçar todas as suas melhores forças nesta eterna e inútil admiração do
passado, da qual vocês só podem sair fatalmente exaustos, diminuídos e pisados? - Em verdade eu lhes declaro que a frequência diária aos museus, às bibliotecas e às academias
(cemitérios de esforços vãos, calvários de sonhos crucificados, registro de arremessos truncados!…) é
para os artistas tão prejudicial, quanto a tutela prolongada dos pais para certos jovens ébrios de
engenho e de vontade ambiciosa. Para os moribundos, para os enfermos, para os prisioneiros, vá lá:- o
admirável passado é, quiçá, um bálsamo para seus males, visto que para eles o porvir está trancado…
Mas nós não queremos nada com o passado, nós, jovens e fortes futuristas! - E venham, pois, os alegres incendiários de dedos carbonizados! Ei-los! Ei-los!… Vamos! Ateiem fogo
às estantes das bibliotecas!… Desviem o curso dos canais, para inundar os museus!… Oh! a alegria de
ver boiar à deriva, laceradas e desbotadas sobre aquelas águas, as velhas telas gloriosas!… Empunhem
as picaretas, os machados, os martelos e destruam sem piedade as cidades veneradas!
A valsa dos valores

Os valores sociais mudam. Muito ou pouco, por vezes, apenas de fachada. Mas mudam. Bernard Cathelat fala em rosa-dos-ventos dos estilos de vida (Styles de vie, 1985). Vários autores estudaram empiricamente as dinâmicas dos valores sociais, por exemplo, Ronald Inglehart (The Silent Revolution, 1977), Pierre Bourdieu (La Distinction, 1979), Alain Girard e Jean Stoetzel (Les valeurs du temps présent, 1983) ou Pascale Weil (A quoi rêvent les années 90 ?, 1993). Os valores axiais estão sempre presentes na sociedade, mas, tal como as teclas de um piano, ora os castigamos, ora os acariciamos. O efeito, o som, é diferente. Assim como o vento agita as folhas, o tempo altera os valores. Parece sentir-se uma aragem nos valores da partilha, da comunhão e da amizade. Os anúncios Quel millionnaire serez-vous, do Euromillions, e Max et Romain, da Bouygues, oferecem-se como indícios. Somam-se a outros com idêntica orientação. Duvido que o murmúrio resulte num ciclone. A partilha, a comunhão e a amizade integram a rosa-dos-ventos dos valores sociais. A nossa sociedade aposta neles? Com que intensidade? A nossa sociedade pós-moderna é moderna, de uma modernidade pintalgada por pirilampos românticos. A partilha, a comunhão e a amizade são pirilampos numa sociedade apostada no progresso, no sucesso, na burocracia, na técnica, na competição, no controlo, na quantofrenia, na prevenção, na aparência, no individualismo, no egoísmo, na ganância e no amor ao poder. Don Quixote e Sancho Pança e Romeu e Julieta não são nossos estandartes. Não é esta a opinião dos visionários da torre gótica da sabedoria. As luzes dos pirilampos podem ofuscar quem vive no pensamento. E, no entanto, o mundo comove-se. Basta viver para sentir. Sentir a experiência do mundo da vida. Não sou herdeiro da scholé, da distância académica à urgência e à necessidade, em suma, da distância à realidade. Parafraseando Goya, a distância à realidade produz monstros. Não são os valores da partilha, da comunhão e da amizade importantes? Sem dúvida, mas não são os mais característicos da nossa sociedade. Nós somos a sociedade dos direitos e o amor é torto.
O anúncio Quel millionnaire serez-vous é falado e em francês. Não é o nosso forte. Passo a resumir. Um grupo de amigos espanta-se com o valor do prémio do “euromilhões”. Que faria cada um caso ganhasse? O último a pronunciar-se garante que o partilharia com os amigos, ou seja, com eles. Descrédito geral. Retira do bolso o bilhete… vencedor. “É vosso!”
Modernidades
Quanto mais observo a sociedade, menos leio os sociólogos. Dizem que somos pós-modernos… Quando saio de casa, saio da modernidade e quando entro na universidade, na modernidade entro. Duvido que tenha existido algures universidade mais moderna do que a actual. Não sou um incondicional do Jurgen Habermas (O Discurso filosófico da modernidade, 1988), do Anthony Giddens (As consequências da modernidade, 1990), nem do Gilles Lipovetsky (Os tempos hipermodernos, 1985), mas atrai-me a ideia de a pós-modernidade não passar de uma faceta, de uma das máscaras, da hipermodernidade ou da modernidade tardia. Para complicar, duvida-se que tenhamos sido modernos…
“A modernidade jamais começou. Jamais houve um mundo moderno. O uso do pretérito é importante aqui, uma vez que se trata de um sentimento retrospectivo, de uma releitura de nossa história. Não estamos entrando em uma nova era; não continuamos a fuga tresloucada dos pós-pós-pós-modernistas; não nos agarramos mais à vanguarda da vanguarda; não tentamos ser ainda mais espertos, ainda mais críticos, aprofundar mais um pouco a era da desconfiança. Não, percebemos que nunca entramos na era moderna. Esta atitude restrospectiva, que desdobra ao invés de desvelar, que acrescenta ao invés de amputar, que confraterniza ao invés de denunciar, eu a caracterizo através da expressão não moderno (ou amoderno)” (Latour, Bruno, Jamais fomos modernos, São Paulo, Editora 34, 1994, p. 51).
Pensar deste jeito baralha-me. Não obstante esta encruzilhada baptismal, estimo que o anúncio Les Français et la route, da Sécurité Routière, corresponde a um discurso moderno. Obra de uma burocracia, evidencia uma narrativa linear, com princípio, meio e fim. O objectivo, assumido, é claramente conseguido e o desempenho devidamente medido. O projecto engloba subprojectos calendarizados, articulados e hierarquizados. Eficaz, convoca e vence os obstáculos mais ou menos bárbaros: os recalcitrantes e os inconscientes. Em suma, a acção, que visa a sensibilização dos cidadãos, é racional. Ao contrário do que sustenta Michel Crozier (On ne change pas la société par décret, Paris, Fayard, 1979), com autoridade, razão e técnica, não é impossível mudar a sociedade por decreto.
Em voz baixa, posso ousar uma confissão. Ao arrepio do comando e do primado epistemológico da teoria, nas minhas investigações concretas, as teorias da pós-modernidade, da modernidade líquida, da modernidade tardia e da hipermodernidade de pouco préstimo se têm revelado. Têm sido úteis para quase nada. São faróis que não me ofuscam. Tenho um defeito de estimação: durante a investigação, não sirvo a teoria, sirvo-me dela. Nesta perspectiva, encaro o “estado da arte” e a “revisão da literatura” como rituais de iniciação e, porventura, de menorização do investigador. Capacitar-se teoricamente é tarefa sem início nem fim, onde cabem, eventualmente, o estado da arte e a revisão da literatura. A reflexão teórica quer-se activa e criativa. Reconfesso: nunca a actividade científica me pareceu tão burocrática como hoje. E ainda pedem mais! Os críticos da burocratização da ciência Pitirim A. Sorokin (Fads and Foibles in Modern Sociology, 1956), C. Wright Mills (A imaginação sociológica, 1959) e Alvin Gouldner (Anti-Minotaur: The Myth of Value-Free Sociology, 1964) não concebiam, há meio século, tamanha teia burocrática. O cientista move-se, cada vez menos, pela vocação (Max Weber, A ciência como vocação, 1919) e cada vez mais pelo rendimento. Torna-se mensurável. Proletariza-se. Às voltas com metas e milestones.
O anúncio da Sécurité Routière, bem conseguido, aposta na eficácia. Oferece ao público um efeito de espelho. Assinalar, legitimar, disciplinar, eis uma tríade que mais que moderna, é simplesmente humana.
Marca: Sécurité Routière. Título: Les Français et la Route. Agência: La Chose. França, Maio 2018.
Novo, agora, mais e melhor
A publicidade a produtos de beleza exorbitou. Só overpromises. C’est extra! New, now, more. Sucesso sem agenda nem narrativas. Técnica salvífica. A pedra filosofal do orgasmo instantâneo em massa. Um manto de ilusão. “É demais”! Pois, a Avon parte em combate contra estes unicórnios pós-modernos. Em nome de valores como a fiabilidade, a honestidade e a verdade. Valores modernos? Será este anúncio da Avon um caso particular do geral? O regresso da modernidade? Ou apenas uma corrente de ar? Uma posição pela oposição.
O que é que tem, afinal, publicidade “pós-moderna”? Qual é o charme? Vale a pena ouvir a canção “Ela é demais”, de Rick & Renner.
Marca: Avon. Título: Overpromises. Agência: Santo Buenos Aires. Argentina, Maio 2017.
Rick & Renner. Ela é demais. Mil vezes cantarei. 1998.
Nota de rodapé
O ser humano é um “nada perante o infinito, um tudo perante o nada, um meio-termo entre o nada e o tudo” (Blaise Pascal, Pensées)
Do australopiteco ao pós-moderno, o animal humano pouco mudou: o mesmo cérebro, o mesmo corpo, o mesmo ADN. Variaram, é verdade, a técnica e a cultura. Os autores clássicos da Antropologia Cultural advertem-nos que não existem culturas melhores que outras. A cultura é, porventura, a mais relativa das realidades relativas. O corolário do relativismo cultural é a diversidade cultural. Em todas as culturas, o mesmo animal. Chama-se Homo Sapiens e vive na Terra há mais de 200 000 anos.
O homem pós-moderno é uma nota de rodapé no livro da humanidade. Para sair do rodapé, importa ler o livro da humanidade. Uma história de violência, perseguição e intolerância. Não só, naturalmente! O nosso tempo também é de violência, perseguição e intolerância. Corremos o risco de não nos dar conta porque, umbilicais, deixámos de ter a humanidade como espelho. Passa-nos ao lado quão humanos somos. O homem aprende com o homem. Somos “um nada perante o infinito, um tudo perante o nada”. Entre o nada e o tudo, algo sobrará. É postura avisada olhar para o outro e ver o outro em nós. Importa abrir o livro. O homem deve ser do tamanho do homem. Não é impossível. Atente-se, por exemplo, em Montesquieu, Max Weber, Marcel Mauss, Norbert Elias ou Mikhail Bakhtin.
Pensa um pouco menos na pós-modernidade e um pouco mais na humanidade e talvez te conheças com mais discernimento.
Tentação
“Um hoje vale por dois amanhãs, e mais, se tiver algo para fazer amanhã, faça hoje” (Benjamin Franklin, The Way to Wealth, 1757).
“Lembre-se que o tempo é dinheiro (…) Lembre-se que o dinheiro é de natureza prolífica e geradora. O dinheiro pode gerar dinheiro, e seu produto gerar mais, e assim por diante. Cinco shillings circulando são seis; circulando de novo são sete e três pence e assim por diante, até se tornarem cem libras”.
(Benjamin Franklin, Advice to a Young Tradesman, 1748).
O anúncio Ambition, da Sprite, tem dois protagonistas. Um, velho, parece uma reencarnação de Benjamin Franklin; o outro, jovem, lembra Eva a colher uma garrafa da árvore do prazer. Qual vai ser o destino da bebida?
Entre o dever calculista, moderno, e o prazer imediatista, pós-moderno, qual dos dois vingará? O prazer, que não dá ouvidos ao dever.
Gosto! Gosto de anúncios que nos distraem da catequese do bem e do sucesso.
Marca: Sprite. Título: Ambition. Agência: Hello. Direcção: Perlorian Brothers. Uruguai, Novembro 2015.
Artes da pós-modernidade
Há palavras que, pelo risco de se tornar tóxicas, agradeciam uma passagem pelo purgatório. No artigo anterior, sugeri que a América Latina era um oásis de refluxos. O anúncio peruano “Artistas Hogaristas Postmodernos” é um exemplo. A pós-modernidade é motivo de riso. Torna-se risível. Ressalte-se, porém, que o humor deste anúncio não é “chuva dissolvente”, limita-se a fazer cócegas.
Existe uma versão espanhola e uma versão inglesa do anúncio. Não são iguais. Por exemplo, a música de fundo é diferente. Pode aceder à versão inglesa neste endereço: https://www.youtube.com/watch?v=1Kg5OTIYIhc.
Marca: Promart Home Center. Título: Artistas Hogaristas Postmodernos. Agência: Fahrenheit DDB. Direcção: Julian Fernández. Perú, Maio 2015.
O Apelo da Rua
Em 2010, Deus interpela a tribo do futebol argentina num anúncio à cerveja Quilmes (http://tendimag.com/2013/12/08/bendita-bola/). Quatro anos depois, a rua convoca a tribo do footing brasileira num anúncio às sapatilhas Puma. O conceito e a tónica são praticamente os mesmos. Ambos apostam no monólogo e no chamamento explícito. O movimento é, contudo, inverso: Deus aproxima-se da humanidade; a rua aproxima-se da divindade.
No Brasil, existem quatro milhões de “corredores”. O segundo mercado mundial, em franco crescimento, na área do fitness. Não espanta que a “rua” fale aos brasileiros, nem que os brasileiros lhe prestem ouvidos, neste anúncio soberbo. Aprecio este género de publicidade: assume um propósito, não o esconde e consegue o que pretende. Acontece-me, quando vejo e revejo um anúncio, fechar os olhos à espera da emergência de alguma impressão, por exemplo, a modernidade a correr com sapatilhas pós-modernas. E, no meu mundo, quem corre não são as sapatilhas…
Marca: Puma. Título: Run Therapy. Agência: Peppery Comunic. Brasil, Maio 2014.
Máquinas desejadas
Mais um cheirinho a Old Spice. Regressa a aposta num protagonista biomecanóide. Uma figura com séculos, mas, hoje, particularmente infestante. À dita pós-modernidade associam-se duas multiplicidades: a do ser múltiplo e a do ser multiplicado. O ser multiplicado é o maná das identidades líquidas e fragmentadas: uma dúzia (pós-moderna) a agarrar o presente e apenas uma (moderna) a pagar impostos!
Comparando com o artigo anterior (http://tendimag.com/2014/07/25/pos-modernidade-vitoriana/), suspeita-se que, na pós-modernidade modernamente assistida, o que está em voga não é a carne (censurada), mas a máquina (desejada). A tragédia grega tem o coro, Pinóquio, o Grilo Falante e eu, o Demónio Céptico, demónio que me anda a tentar: “a pós-modernidade é, antes de mais, o pós-modernismo, e o pós-modernismo, um movimento intelectual profético, a grande narrativa contemporânea”.
Marca: Old Spice. Título: Soccer. Agência: Wieden+Kennedy USA. USA, Julho 2014.
Make Love, Not War! O Pós-Pós-Moderno
Quando a Mercedes elogia um automóvel ou a sensação de conduzir, compreendo. Tal como quando a Channel promove a erotização do olfato. Já estranho se a primeira promover um anúncio contra a violência doméstica e a segunda contra as armas químicas. A que título? Vilfredo Pareto não se cansou de insistir que uma valia num domínio não implica igual valia num domínio distinto. Por que havemos de privilegiar a opinião política de um grande cientista?
Este anúncio da Axe é uma caricatura. Uma caricatura dos anúncios promovidos por tantas boas almas empresariais; responsabilidade social, consciencialização social e intervenção pública. É uma caricatura que não deixa de apontar o dedo ao caricato. As teorias da publicidade sustentam que os anúncios comportam uma promessa, a grande responsável pela adesão do público. Mas algo está a mudar. A promessa altera-se, radicaliza-se, tende a insinuar-se como uma promessa de salvação. Entramos, assim, na esfera do religioso. É verdade que o religioso sempre esteve presente na publicidade. Mais, o religioso está em todo o lado. Concedo! Mas estando o religioso em todo o lado, em nenhum outro sítio está como num mosteiro… A religiosidade patente na publicidade atual também é distinta. Trata-se de uma espécie de evangelização dos cartões de crédito, acompanhada pela assunção de que o económico não tem nem limites, nem explicações a dar. A publicidade deste pantocrator dos mercados lembra um triângulo formado por três figuras medievais. mas típicas de todos os tempos: o pregador que proclama a palavra; a alcoviteira que a propaga; e o charlatão que abusa da palavra.
Marca: Axe. Título: Make love, not war. Agência: BBH London. Direção: Rupert Sanders. UK, Janeiro 2014.
Em que sociedade estamos? Numa sociedade pós-moderna? Talvez, se confundirmos uma sociedade com a sua espuma. Quanto a mim, estamos numa sociedade em que nunca deixamos de estar: no século XIX, no início, no meio e no fim do século XX e no novo milénio. Uma espécie qualquer de capitalismo, com o económico e o financeiro a dominar, como nunca antes, o político. A querer persistir nos pós e na espuma, então estes novos tempos já andam disfarçados de pós-pós-modernos.