A espuma do desejo e a aritmética da fecundidade

Sou um demógrafo descontinuado. Na licenciatura em Sociologia, optei pela especialização em Demografia. Sete disciplinas, com excelentes professores: Alain Girard (Théories Démographiques; Prospective Démographique), Léon Gani (Démographie), Thérèse Hibert (Analyse Démographique I e II), Alain Norvaez (Méthodes Quantitatives) e Catherine Rollet (Démographie du Tiers Monde). Neste texto breve, a facilidade de acesso à informação justifica o recurso a estatísticas francesas.
Apresentei, com o José Machado e a Rita Ribeiro, no dia 11 de setembro, no Jardim do Solar dos Castros, em Vila Nova de Cerveira, o livro Demografia: É Tempo? de dar mais Tempo à Natalidade e aos Fluxos Migratórios, da autoria de Fernando Cabodeira, editado pela Afrontamento.. Carregar nos gráficos para os aumentar.
O decréscimo da natalidade concita vários temas. Por exemplo, a estabilidade e a confiança no futuro; as políticas natalistas; e a participação das mulheres na vida activa. Proponho uma alternativa romântica: ter ou não ter filhos depende do desejo. A fecundidade diminui porque diminui o desejo de ter filhos. O problema é profundo.
Desde os anos sessenta, Portugal e a Europa conheceram períodos de prosperidade, segurança e esperança, tais como os anos sessenta e os anos noventa. Mas a fecundidade manteve a tendência negativa. A confiança é, apenas, um dos motivos plausíveis.

As políticas natalistas estão na ordem do dia. Prémios ao nascimento, subsídios e demais almofadas. Esforço ingrato. As políticas multiplicam-se e a fecundidade declina. A França, com o índice de fecundidade mais elevado da Europa, configura uma exceção. Iniciou, nos anos setenta, uma política natalista pioneira e arrojada. Se na maioria dos países europeus a fecundidade desceu, em França manteve-se numa espécie de planalto (1978, 1.89 filhos por mulher; 2017, 1,90; ver gráfico 1). Mas as medidas natalistas beneficiaram de outros contributos.
A França afirma-se, em 2008, como um dos países europeus com mais imigração, se incluirmos a segunda geração (ver Gráfico 2).

A fecundidade das mulheres imigrantes supera a das “francesas”. Em 2008, o índice de fecundidade ascendia a 1,89, nas mulheres nascidas em França, e 2,89, nas mulheres nascidas no estrangeiro. A incidência dos nascimentos provenientes de mães imigrantes não cessa de aumentar: 16,7%, em 1977, e 22,8% em 2017 (fonte: Tableau T38bis, Insee 2017). Na Ile-de-France (região parisiense), em cada cem nascimentos, 48 têm pelo menos um dos pais estrangeiro. Retenha-se que, por pequena que seja, existe uma dimensão cultural, ver civilizacional, que influencia a fecundidade em França.
Mudemos de assunto. A actividade profissional feminina não começou nos anos sessenta. Em França, no período entre as duas Guerras Mundiais, a taxa de actividade feminina rondava os 38%. Este valor desce no pós-guerra e só será recuperado nos anos 90.
No gráfico 3, observa-se o aumento regular da taxa de actividade das mulheres (15-64), entre 1975-2017. Regressaremos a este gráfico.
3. Taxa de atividade: por sexo e idade (%). França, 1975-2017.

Os portugueses apresentam duas séries estatísticas distintas para a mesma realidade: os censos e as estimativas por inquérito.


Do censo de 1981 para o censo de 2011 (gráfico 4), a taxa de atividade feminina sobe 11,2 pontos percentuais (de 38,2 para 51,0). Nas estimativas dos inquéritos ao emprego (gráfico 5), a diferença, entre 1983 e 2019, resume-se a 3 pontos percentuais (de 51,7 para 54,7). A evolução da taxa de atividade masculina diminui significativamente. Do censo de 1981 para o censo de 2011, a taxa desce 16,8 pontos percentuais. Nas estimativas, 14,4 pontos percentuais. A taxa de atividade masculina desce mais do que sobe a taxa de atividade feminina. Algo semelhante, embora menos vincado, sucede em França (ver gráfico 3).
Importa descobrir o óbvio. Para fazer um filho são precisas duas pessoas: um homem e uma mulher. A quebra da atividade, mais acentuada nos homens (Ver, para a França, o gráfico 3) repercute-se no índice de fecundidade. Envolve, sobretudo, os mais jovens. Entre 1983 e 2019, o grupo etário “menos de 25 anos” é o único grupo etário em que diminui de um modo persistente a taxa de atividade (ver gráfico 6). Desce para quase metade: 67,6%, em 1983, e 34.2%, em 2019. Este decréscimo prende-se com o aumento da escolaridade e com o “prolongamento da adolescência”. A independência dos jovens adultos é tardia. Começam a trabalhar, casam-se e adiam o aumento da família, o que torna problemático, por exemplo, o nascimento do terceiro filho. São económicas as causas deste fenómeno? Diria que são culturais. A economia permite muitas possibilidades. Possibilidades que a cultura escolhe.
A evolução da fecundidade depende da taxa de actividade feminina? Do prolongamento da adolescência? Das políticas demográficas? Estão associados, mas o desejo é decisivo. No Inquérito à Fecundidade, promovido pelo INE, em 2013, as mulheres dos 18 aos 49 anos de idade e os homens dos 18 aos 54 anos de idade, residentes em Portugal, têm em média, 1.03 filhos (fecundidade realizada); pensam vir a ter, em média, 0,74 filhos; assim, o numero médio de filhos que têm e que ainda pensam vir a ter é 1,78 (fecundidade final esperada) (INE, Inquérito à Fecundidade, 2013). Não é uma perspetiva animadora. É a espuma do desejo.
O que mudou, no século XX, foi a condição e a identidade da mulher. Mudou a sua relação com o outro, com a família, com cônjuge, com os filhos, com os colegas e os amigos. Mudou a relação com a casa, com o trabalho e com o lazer. Mudou a relação com o tempo, com o corpo, com o sacrifício e com o prazer. Mudou a autoimagem. Mudou, também, a condição masculina. Uma mudança cultural. O declínio da fecundidade faz parte deste “processo civilizacional”. São novos os laços, as dinâmicas e as âncoras simbólicas. Esta evolução mobiliza o desejo. Águas profundas. A intervenção quer-se mais da ordem da massagem do que da mensagem. Mais contextual do que pontual. Envolvente. O contrário do que se está a fazer. Neste mundo, para motivar é preciso valorizar. Para valorizar é preciso embeber simbolicamente. Quem se lembra, nos últimos sessenta anos, de uma iniciativa simbólica valorativa da figura do casal procriador? Dos outros casais a promoção é, no mínimo, todos os meses? O nevoeiro tem estas artes: enxerga-se bem na encosta e mal junto ao rio. A quem serve o estrabismo social?

O Japão debate-se com um índice de fecundidade baixo: 1,36 filhos por mulher, em 2019. Adivinha-se sinais de uma aposta numa intervenção desmultiplicada e ambiental para estimular a fecundidade. A célebre série de anime Naruto prossegue, mas o novo herói é o filho de Naruto. Crescem os manga e os anime em que o herói é familiar: pais e filhos. Talvez seja a hora de tomar um chá de benchmarking.