Sem sombras

Há mais de uma centena de músicos cegos célebres (ver um inventário em https://en.wikipedia.org/wiki/Category:Blind_musicians). Ray Charles, Stevie Wonder, José Feliciano e Andrea Bocelli constituem alguns exemplos. É admirável, mas sem pasmar. Como diria Vilfredo Pareto, o cego ouve e fala. Mais espantoso é um surdo compor uma sinfonia. Ou talvez não! Cego mesmo cego é o “que não vê com o coração”.

Cego não é invisual, invisual é aquilo que não se vê; invisual não é quem não vê. Assim como um cego não é um invisual, um velho não é um idoso, um sénior ou um terceiro idoso. Um velho é um velho! Os trapos são trapos! Irritam-me os reformadores de palavras empenhados em enfeitar artificialmente a língua.
Deu-me para colocar duas músicas com intérpretes cegos. De preferência, em dueto, para observar a interacção no palco. Optei por José Feliciano e Andrea Bocelli. José Feliciano fez, em 1968, um cover da canção Light my fire, dos Doors. Canta com Minnie Riperton um novo cover (1979). Pares não faltam a Andrea Bocelli. Hesitei entre a canção Time to say goodbye, com Sarah Brightman, e Dare to live, com Laura Pausini. Seja Laura Pausini.
Andrea Bocelli & Laura Pausini. Dare to live. Ao vivo no Teatro Del Silenzio. Itália, 2007.
Para aceder ao vídeo com o José Feliciano e a Minnie Riperton, carregar na imagem seguinte ou neste link: https://www.youtube.com/watch?v=RMttEWdVj7k.

Há coisa de uns vinte anos ou pouco mais, eu vivia em Lisboa e todos os dias ia apanhar o metro ao Marquês de Pombal. Costumava estar lá um cego, que tocava num acordeão as músicas do costume e a quem eu dava uma moeda, mais por desfastio do que por qualquer outro motivo, confesso. Uma manhã, para meu grande espanto, o cego tocava, de forma absolutamente irrepreensível, a Tocata e Fuga em Ré Menor, de Bach! Nessa manhã fiquei a ouvi-lo e cheguei atrasado ao emprego… Pouco tempo depois, saiu num jornal uma entrevista com ele, talvez por causa da sua mudança de repertório. Declarava o cego na entrevista que não era um pedinte. Era um animador cultural, que estava na estação do metro a dar um pouco de alegria às pessoas que iam tristes e sonolentas a caminho do seu emprego. E acrescentava que o dinheiro que as pessoas lhe davam não era esmola, era o seu salário de trabalhador independente.