Semear seixos na areia
Aproxima-se a praia, a nossa utopia de estimação! Após trezentos e trinta dias encavalitados, podemos, enfim, pasmar o presente e ler o futuro na meteorologia. É tão bom sentir o vento nos pêlos, a água nos calcanhares e um par de mãos a besuntar-nos as costas. E escurecer o mundo com óculos de sol! Se mandasse, decretava obrigatório o uso de óculos de sol. Há pessoas que adoram este enterro da agenda e esta ressurreição dos corpos. Nada se compara a este mergulho imaculado no caldeirão do pecado. A gula, a luxúria, a inveja, a preguiça e o orgulho tostam ao sol. A gente sente-se tão bem! A vida e a alma remam ao sabor da maré. A vida vai a banhos!
Não gosto da praia. Do mesmo modo que a raposa rejeita as uvas. Não me dou com aquele ar molhado e empoeirado, com tempero a sal. Não há momento da praia que não pague com tosse. Por mês, condescendo três idas à areia e uma dúzia à esplanada. É quanto baste! Se, por penitência, desço à praia, entretenho-me a ver a minha sombra a escrever poemas na areia. Guardo estes versos com sete camadas de pudor. Não são poemas. São escapatórias de quem seca sem se ter molhado. Tenho algum carinho por esta Antecipação da praia. Pelos últimos versos: “semear seixos na areia à espera que cresçam árvores de pedra”. Reconheço-me, a mim e ao meu País.
“Que tenho a força de sumir também”
(Mário de Sá-Carneiro)
Antecipação da praia
Na orla salgada
Um pêndulo pasmado
Sem voo, nem asa
Apenas ar trovoado
Desfio nos dedos
O sargaço do tempo
Acendo um cigarro
Nas barbas do sol
Com a alma a tossir
Deixo-me afundar
Num caldo de cinzas
Com búzios de luto
Vultos sem sombra
Passeiam nuvens de pó
Com óculos escuros
E mamilos estrávicos
Corpo dobrado
Semeio seixos na areia
À espera que cresçam
Árvores de pedra
É dessa força que gosto!O mar!Não do espetáculo na areia!