O poder da lingerie
No artigo “A mulher, o homem e objecto” avancei que “a figura da mulher centrada nos seus dotes corporais parece em vias de desaparecimento nos anúncios publicitários”. Acentuar-se-ia, em contrapartida, a visibilidade do corpo do homem objecto. Convém ressalvar que existem segmentos do mercado em que o recurso ao corpo feminino não só se mantém como, o que é mais significativo, se renova. É o caso da lingerie, associada a marcas como Victoria’s Secret, Intimissimi, Blush e, especialmente, Agent Provocateur. O corpo da mulher continua exposto, mas cada vez menos como um objecto. As categorias construídas por Erving Goffman (1977) para caracterizar a imagem da mulher na publicidade dos anos sessenta (mulher escondida, mulher longínqua, mulher submissa, mulher dócil, mulher brinquedo, mulher jogadora) não bastam para abarcar a realidade actual. Silvana Mota-Ribeiro acrescentou, entretanto, a categoria “mulher erótica e disponível”. Mas estou em crer que, nos tempos que correm, também já não é suficiente. Anúncios como os da Agent Provocateur confrontam-nos com uma imagem que transcende a mulher erótica e disponível. Erótica, sem dúvida, mas insinuante, provocante, ousada, conquistadora, poderosa… E sensual! Não se vislumbram sinais de disponibilidade expectante no anúncio Proof em que Kylie Minogue monta um “touro de rodeio”. A mulher toma a iniciativa, age e mostra-se pronta a continuar a agir e a segurar as rédeas.
Marca: Agent Provocateur. Título: Proof. Agência: Cdp Travissully. Reino Unido, Janeiro 2002.
Neste tipo de anúncios, a passividade pende para o lado masculino: o homem surge intermitente, secundário, suspenso, de cócoras, a jeito para uma excitante vergastada (anúncio Silvia Demitrova). A cavalo ou a pé, com ou sem chicote, a mulher liberta-se, em todos os sentidos e em todas as orientações sexuais, incluindo a homossexualidade. Como é apregoado no respectivo site, “a Lingerie Agent Provocateur é uma gama de criações (…) destinada a intensificar os prazeres da vida e desbloquear os seus desejos mais íntimos”(http://www.agentprovocateur.com/lingerie.html).
Marca: Agent Provocateur. Título: Silvia Demitrova. Sem país, Outubro 2011.
Pode-se contra-argumentar que estamos perante um caso muito particular. A Agent Provocateur é uma marca que foi criada em 1994 por Joseph Corré e Serena Rees. Ora, Joseph Corré é filho de Viviane Westwood, reputada estilista, e Malcom Mclaren, empresário da banda Sex Pistols, ambos pioneiros do movimento punk. Uma conjugação, extraordinária, de sensibilidade e irreverência. Mas, de facto, não se trata de um caso isolado confinado à Agent Provocateur. Nem sequer ao segmento da lingerie. O fenómeno abrange outros domínios… Até o podemos surpreender num anúncio de sensibilização dedicado à promoção do vegeterianismo (Veggie Love)!
Anunciante: PETA. Título: Veggie Love. Agência: Peta People For The Ethical Treatment of Animals. Direcção: Chris Hooper. EUA, Março 2009.
Elas cavalgam como amazonas, libertam os desejos como sereias e mordem como vampiros (anúncio Fleurs du Mal)! Em suma, uma subversão dos princípios da dominação masculina (Bourdieu, 1998). Enfim, uma coisa é um anúncio, outra a realidade que o circunda. O anúncio Proof foi, por exemplo, proibido em vários países, tornando-se, paralelamente, um sucesso viral. Nem tudo o que luz é tolerado pela “sociedade oficial”.
Marca: Agent Provocateur. Título: Fleurs du Mal. Agência : Epoch Films. Direcção: Justin Anderson. França, Outubro 2011.
Bourdieu, Pierre (1998), La domination masculine, Paris, Ed. du Seuil.
Goffman, Erving (1977), « La ritualisation de la feminité », Actes de la recherche en sciences sociales, Vol. 14, pp. 34-50
Mota-Ribeiro, Silvana (2005), Retratos de mulher, Porto, Campo das Letras.