Tag Archive | semiótica

A ave e os nus

Ando muito entretido a tentar interpretar duas esculturas estranhas que acolhem os crentes no portal da fachada principal da igreja de São João Baptista em Lamas de Mouro, Melgaço. Quando tal acontece, nada mais existe!

A abertura do documentário de Ricardo Costa dedicado a Castro Laboreiro, publicado pela RTP em 1979, (https://tendimag.com/2022/05/12/castro-laboreiro-o-fantasma-de-tarkovsky/) teve a arte de me lembrar um dos meus discos de eleição, e menos conhecido, do Vangelis, Heaven and Hell, lançado em 1975. Segue a parte I (lado A: 22:06). A parte II, minha preferida, já a coloquei mais do que uma vez (ver https://tendimag.com/2019/05/31/divertimento/). Não desistam a meio que não merece!

Vangelis. Heaven and Hell. Parte I. 1975.

Semiótica da árvore

René Magritte. The Blank Signature. 1965.

Um idiota não vê a mesma árvore que um sábio (William Blake, 1757-1827).

A árvore é um dos principais símbolos da humanidade.

Árbol. Uno de los temas simbólicos más ricos y más extendidos, cuya bibliografia formaría por sí sola un libro. Mircea Eliade distingue siete interpretaciones principales (ELIT, 230-231) que no considera por otra parte exhaustivas, pero que se articulan todas alrededor de la idea del Cosmos vivo en perpetua regeneración. A despecho de apariencias superficiales y de conclusiones apresuradas, el árbol, incluso sagrado, no es siempre objeto de culto; es la figuración simbólica de una entidad que lo supera y que puede convertirse en objeto de culto. Símbolo de la vida en perpetua evolución, en ascensión hacia el cielo, evoca todo el simbolismo de la verticalidad: así el árbol de Leonardo da Vinci. Por otra parte, sirve también para simbolizar el carácter cíclico de la evolución cósmica: muerte y regeneración; los árboles de hoja caduca sobre todo evocan un ciclo, ya que cada año se despojan y se recubren de hojas. El árbol pone así en comunicación los tres niveles del cosmos: el subterráneo, por sus raíces hurgando en las profundidades donde se hunden; la superficie de la tierra, por su tronco y sus primeras ramas; las alturas, por sus ramas superiores y su cima, atraídas por la luz del cielo. Reptiles se arrastran entre sus raíces; aves vuelan por su ramaje: pone en relación el mundo ctónico y el mundo uránico. Reúne todos los elementos: el agua circula con su savia, la tierra se integra a su cuerpo por sus raíces, el aire alimenta sus hojas, el fuego surge de su frotamiento” (Chevalier, Jean & Gheerbrandt, 1969, Diccionario de los símbolos. Titivillus, pp. 174 e 175).

Anunciante: Ecosia. Título: Weird Search Requests. Produção: Filmacademy Baden-Württemberg. Direção: Sandro Rados. Internacional, abril 2021.

Os Farrangalheiros

Farrangalheiros. Entrudo. Castro Laboreiro. Melgaço.

Faço parte de uma equipa que está a estudar os Farrangalheiros de Castro Laboreiro. Segue uma série precoce de apontamentos. Ainda estamos no início da investigação. Mas os apontamentos não servem apenas para registar o que foi feito mas também para antever o que falta fazer. Abrem janelas.

“Desanimado, meti para Castro Laboreiro à procura dum Minho com menos milho, menos couves, menos erva, menos videiras de enforcado e mais meu. Um Minho que o não fosse, afinal. Encontrei-o logo dois passos adiante, severo, de curcelo e carapuça.
A relva dera finalmente lugar à terra nua que, parda como o burel, tinha ossos e chagas. O colmo de centeio, curtido pelos nevões, perdera o riso alvar das malhadas. Identificara-se com o panorama humano, e cobria pudicamente a dor do frio e da fome. Um rebanho de ovelhas silenciosas retouçava as pedras da fortaleza desmantelada. E uma velha muito velha, desmemoriada como uma coruja das catacumbas, vigiava a porta do baluarte, a fiar o tempo. Era a pré-história ao natural, à espera da neta.
Ó castrejinha do monte,
Que deitas no teu cabelo?
Deito-lhe água da fonte
E rama de tormentelo.
Bonita, esbofeteada do frio, a cachopa vinha à frente dum carro de bois carregado de canhotas. Preparava a casa de inverno para quando chegasse a hora da transumância e toda a família —pais, irmãos, gados, pulgas e percevejos— descesse dos cortelhos da montanha para os cortelhos do vale, abrigados das neves (…) Pisava, realmente, a alta e livre terra dos pastores, dos contrabandistas e das urzes.
Miguel Torga. Portugal. 1950.

É costume encarar Castro Laboreiro como uma povoação isolada, num extremo do País, cercada pela Espanha. Com acessos difíceis até meados do século XX. Em verdade, não é uma população isolada. Outrora, a maioria dos homens migrava sazonalmente para o Douro, para as Beiras ou para a Galiza. A partir da Segunda Guerra, a emigração castreja para a Europa foi pioneira. Outras atividades contribuíram para a abertura de Castro Laboreiro. Por exemplo, a mineração do volfrâmio e o contrabando, que mobilizou homens e mulheres. Castro Laboreiro não é o fim do mundo. É, antes pelo contrário, “princípio do mundo” (Manoel de Oliveira, Viagem ao princípio do mundo, 1997). Quem se encontra com um castrejo, arrisca-se a conversar com um cidadão do mundo. Num recanto nas alturas, o cosmopolitismo prevalece. A saída massiva dos homens constrange as mulheres a substituir os pais e os maridos ausentes. Cumpre-lhes a responsabilidade do governo da casa, das propriedades, dos animais, dos pais e dos filhos. Conservam e criam o mundo, ao nível económico, social e cultural.

Castro Laboreiro localiza-se na serra da Peneda. A aldeia do Curral do Gonçalo ergue-se a 1 166 metros de altitude. Esta inscrição geográfica não isola, nem repele. Cedendo à poesia, aproxima do céu. Castro Laboreiro é rico em tradições antigas e originais. Os Farrangalheiros (esfarrapados) do Entrudo representam um exemplo.

Traje. Entrudo. Farrangalheiro. Mulher. Castro Laboreiro.

O entrudo castrejo (entroido na língua local), que inclui os Farrangalheiros, é um ritual carnavalesco comunitário. Não há memória da sua origem. As mulheres solteiras destacam-se como os principais protagonistas. Vestem um traje específico (ver fotografias). O saiote vermelho pertence à roupa interior, que, retirada a saia escura, fica, por um tempo, exposta. Na cabeça, os “garruços” são enfeitados com fitas coloridas. A cobrir a face, um bordado de renda serve como máscara. É feito pelas próprias portadoras. Como calçado, umas socas; na mão, um pau, um animal ou outro elemento provocador. Excetuando o “lenço franjon, todas as participantes usam o mesmo traje. Percorrem, neste preparo, os largos, os caminhos e as casas, a “meter-se” com as pessoas, achincalhando-as com humor. O ritual culmina, no último dia, terça-feira, com a queima do Entrudo. Um boneco de palha envolto em roupas velhas é queimado em local alto para ser visto ao longe pelos lugares vizinhos.

“A  palavra Entrudo provém do latim introitus, que significa «acto de entrar, entrada, acesso, introdução, começo». Nos textos medievais, aparecem registados os termos entruido e entroydo. Mais tarde, o termo apresenta a grafia com i: Intrudo. O Entrudo começou por designar a noite de terça-feira, que era a entrada da Quaresma; depois a própria terça-feira e, finalmente, os três dias que precedem imediatamente a entrada da Quaresma” (Ciberdúvidas da língua portuguesa: https://ciberduvidas.iscte-iul.pt/consultorio/perguntas/entrudo-novamente/26236).

O Entrudo é uma passagem, uma transição entre dois mundos, entre dois tempos. O antes e o depois. O interior e o exterior. A vida e a morte. O Entrudo despede-se do Inverno, do “velho”, rumo à Primavera. Para trás fica a escassez, o sono dos campos e a hibernação social. O Entrudo é um prenúncio, que se projeta para além da Quaresma. Crescem os dias, amanha-se a terra e rasgam-se os horizontes. O colorido exuberante dos “garruços” ofusca a escuridão invernal. Nesta perspetiva, o Entrudo é uma premonição mágica. Os rituais querem-se promessa. O banquete, por exemplo, é uma antecipação da abundância. Simula-se agora para garantir depois. Sobre as cinzas do passado, semeia-se o futuro.

Existe uma mudança cíclica na vida de Castro Laboreiro. Provavelmente, não se prende com o Entrudo. Não resisto, porém, a mencioná-la. Trata-se da “transumância”. Em muitas aldeias, os castrejos passavam o Inverno nas inverneiras, situadas nos vales, para onde descem no início do Outono. Em março, por altura do Entrudo, subiam, pessoas, animais e mobília, para as brandas, no planalto. A proximidade da data do Entrudo e da deslocação para as brandas resume-se, presumo, a uma mera coincidência. Não obstante, convém verificar.

O Entrudo encena e regenera a comunidade. Momentos como o banquete ou a queima do Entrudo propiciam uma comunhão emocional. O rebaixamento e a crítica revitalizam a sociedade numa espécie de caldo reparador. O mal é denunciado e Judas queimado. A fogueira é ambivalente: queima, ilumina e aquece. O fogo dizima mas também purifica. Ilumina a noite. A fogueira ameaça mas também aquece e redime o corpo, a alma e a comunidade. À volta da fogueira, a sociedade expõe-se e recompõe-se. A potência simbólica do fogo é universal (Bachelard, Gaston, La Psychanalyse du Feu, 1938; Durand, Gilbert, Les Structures Anthropologiques de l’Imaginaire, 1960).

“Queimas, há muitas! Do Judas, da velha, do velho, das bruxas, dos hereges, das fitas… Queima-se o frio no São Martinho e a noite no São João. Queima-se o galo em Barcelos. Tudo se queima, tudo se regenera, tudo se purifica. Queimamos tudo, queimamos tudo, e quase não deixamos nada. Mas as cinzas não são cinzas, não; são sementes, sementes da nossa condição” (Gonçalves, Albertino, A queima dos vampiros, https://tendimag.com/2019/05/25/a-queima-dos-vampiros/).

“Um pouco por todo o mundo, na noite de São João, acendem-se, nas praças e nos campos, fogueiras para dar mais dia à noite. Mas ninguém se ilude: amanhã, por artes do solstício, o dia será mais curto e a noite mais longa. Há algo de trágico e de glorioso nesta luta lúcida contra o inelutável (Gonçalves, Albertino, A bênção escatológica num mundo às avessas”. Os Serviços da Tarde na Festa de São João de Sobrado, https://tendimag.com/2017/12/14/a-bencao-escatologica-num-mundo-as-avessas-os-servicos-da-tarde-na-festa-de-sao-joao-de-sobrado/).

Nos Farrangalheiros do Entrudo castrejo, a participação feminina está confinada às mulheres solteiras. A roupa interior, o saiote vermelho, é exibida. Um pano de renda protege o rosto. Se fosse psicanalista, ao jeito de Sigmund Freud ou de Carl Jung, avançaria que são símbolos de fecundidade, ver de sexualidade. Os bailes e os animais transportados podem ser incluídos nesta leitura. É costume associar-se as manifestações carnavalescas à desordem, ao convívio, à liberdade, à crítica, à igualdade, à utopia e à folia. Na realidade, a fecundidade e a sexualidade rivalizam com estes tópicos (Bakhtin, Mikhail, A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: O contexto de François Rabelais, S. Paulo, Editora Hucitec, 1987). De Roma ao Brasil, passando pela Idade Média, a sexualidade palpita na experiência carnavalesca.

Numa sociedade pendurada no presente e omnívora, Castro Laboreiro guarda memórias e segredos.

Sociologia sem palavras 23. Rituais.

William_Blake. The Night of Enitharmon's Joy, 1795. Blake's.

William Blake. The Night of Eritharmon’s Joy. 1795.

Os rituais são fenómenos sociais de extrema importância. Objectiva e subjectivamente (cf., por exemplo, James George Frazer, The Golden Bough, 1911-1915: Marcel Mauss, Oeuvres, 1968-1969; Mary Douglas, Pure and Danger, 1966; Victor Turner, The Forest of Symbols, 1967; ou Jean Cazeneuve, Sociologie du Rite, 1971). Uma mão cheia de referências, sem valor acrescentado… Lamentavelmente, no que respeita às referências, quantas mais, menos! Esqueci Van Gennep, Evans-Pritchard, Malinowski, Ruth Benedict, Margareth Mead, Gregory Bateson, Edward T. Hall, Georges Condominas, Erving Goffman, Pierre Bourdieu… Esqueci, no mínimo, dezenas de bibliotecas. Paradoxalmente, quantas menos refiro, menos esqueço. Como é belo e tentador não referir. A “vertigem das listas” bibliográficas é um risco. Confessionário e penitências à parte, quem não quero esquecer é o tão esquecido Claude Lévi-Strauss.

Ritos e Mitos. A opinião de Claude Lévi-Stauss. Terre Humaine. RTBF. 07.03.1969. Excerto.

A parte final do filme Nostalgia (1983), de Andrei Tarkovski, alonga-se sobre um ritual. Promessa sacrificial, incerteza e purificação. A travessia de uma piscina vazia com uma vela acesa na mão. Apagada a vela, recomeça o percurso, solitário, de devoção e purificação. A missão, a fé e a entrega não são meramente individuais. A prova está carregada de símbolos. O simbólico religa. O ritual está ancorado no colectivo, mobiliza o colectivo e destina-se ao colectivo. A purificação e a redenção relevam da comunhão, eventualmente uma solidão comunitária (ver https://wordpress.com/stats/day/tendimag.com). Cada passo na piscina é uma incógnita. Tanto pode aproximar do fim como do início. Cada passo representa um nada necessário ao todo. A vela é uma chama, um chamamento. Sem chama, não há destino, nem caminho. Como diria Lucien Goldmann (Dieu Caché, 1955), os deuses permanecem mudos. Não falam, e nós não os sabemos ouvir. Uma tragédia em sentido duplo.

nostalghia

Andrei Tarkovski. Nostalgia. 1983.

O protagonista do filme avança com uma vela acesa numa piscina vazia. Pisa charcos de água. A piscina vazia forma um recipiente, uma cavidade. Quanto à água, sobressai como um dos principais símbolos da humanidade. Apenas um apontamento alheio: “As significações simbólicas da água podem reduzir-se a três temas dominantes: fonte de vida, meio de purificação, centro de regenerescência. Estes três temas encontram-se nas tradições mais antigas e formam as combinações mais variadas, ao mesmo tempo que as mais coerentes” (Chevalier, Jean & Gheerbrant, Alain, Dictionnaire des Symboles, 1969). Em termos simbólicos, a vela e a água interligam-se. A piscina forma uma cavidade. Três lugares e elementos de fecundidade e regeneração… Acode-me uma súbita e passageira alergia à semiótica. A vela, a água e a piscina ainda acabam por me levar para além da Índia, e não quero. Não querem tomar conta do leme e prosseguir a navegação? Alguns autores podem soprar nas velas: Gaston Bachelard, L’Eau et les Rêves, 1941; Gilbert Durand, Les Structures Anthropologiques de l’Imaginaire, 1960; e Georges Vigarello, Le Propre et le Sale, 1987. Os filmes de Tarkovski são autênticos “bancos de símbolos”. Mas, por hoje, basta de escavação semiótica.

Andrei Tarkovski. Nostalgia. 1983. Excerto. Versão original.

O parto na Modernidade Avançada

Frida Kahlo. Henry Ford Hospital. 1932.

Frida Kahlo. Henry Ford Hospital. 1932.

A comunicação audiovisual é para a actualidade aquilo que as iluminuras foram para a Idade Média. Umas e outras compõem a nossa paisagem sensorial e simbólica, convocam a vida e constroem a realidade. Comparando as imagens do parto medieval com os vídeos actuais, constata-se uma mudança do olhar. As iluminuras medievais são sérias e realistas, os vídeos são fictícios e cómicos. Na Idade Média, o parto não dava vontade de rir. O parto bem-disposto é apanágio da Modernidade Avançada. Contanto que o homem medieval fosse mestre na arte do riso e do absurdo. Os gracejos (droleries) nas margens dos manuscritos (marginália), bem como as festas tresloucadas, rivalizam com as fábricas de humor dos nossos dias. Na Idade Média, tinha-se medo de não ter filhos e temia-se a morte durante o parto. Na modernidade, tem-se receio de ter filhos e os riscos de mortalidade durante o parto são ínfimos. Uma característica une, no entanto, a Baixa Idade Média e a Modernidade Avançada: constituem dois picos históricos de propagação da imagem.

Marca: Volkswagen. Título: Delivery. Agência: Red Urban. Direcção: Curtis Wehrfritz. Alemanha, 2013.

Concentremo-nos na representação do parto na Modernidade Avançada. Selecionei quatro anúncios, que dizem pouco sobre o parto e muito sobre a nossa bússola semiótica.

Marca: XBOX. Titulo: Champagne. Agência: BBH. Direcção: Daniel Kleinman. UK, 2002.

Autores como Paul Virilio e David Harvey consideram a “velocidade” e a “compressão do espaço e do tempo” expressões-chave do nosso modo de ser e de estar no mundo. No anúncio da Volkswagen, graças ao poder de aceleração do automóvel, o trabalho de parto é quase instantâneo. Dispensa tempo e espaço. No anúncio da Xbox, o bebé passa, em 45 segundos, do ventre da mãe para a sepultura, num processo de envelhecimento vertiginoso. No anúncio da MTS, a criança tem um crescimento físico e intelectual acelerado. No anúncio da B!, da Compal, o pai grávido dá à luz uma filha já adolescente.

Marca: MTS. Título: Internet Baby. Agência: Creativeland Asia. Índia, 2014.

A dependência das máquinas constitui outro traço relevante da Modernidade Avançada. No anúncio da Volkswagen, a parteira é o automóvel. No anúncio da XBOX, a mãe lembra um canhão e o filho, um projétil. No anúncio da MTS, as máquinas digitais recebem um bebé viciado em comunicação e Internet.

A desmaterialização fascina-nos. No anúncio da Volkswagen, o parto resulta virtual. No anúncio da MTS, só falta substituir o cordão umbilical por um dispositivo sem fios.

Marca: B! Abacaxi. Título: É uma menina. Agência: Brandia Central(Lisboa). Portugal, 2007.

Estes anúncios têm um ar barroco a descair para o grotesco. Tudo se oferece estranho e excessivo: o parto assistido pelo automóvel; o disparo do bebé que voa em direcção à morte; o bebé que nasce viciado em Internet. E, por último, o anúncio português, grotesco e barroco até não poder mais. Um anúncio profuso! Tal como a sociedade. E se a sociedade, para além de líquida, hipermoderna, hiper-real, pós-moderna, acelerada e desmaterializada, também se configurasse como uma sociedade da profusão? Profusão de bens, de cenários, de símbolos, de desejos, de identidades, de contradições e de frustrações. Mais que uma sociedade de consumo, do espectáculo ou da abundância, participamos numa sociedade da profusão! Ou talvez não. Ouvi falar de um reino que visa poupar nos partos e no apoio às crianças. Para além da poupança com tantos jovens e adultos que vão criar os filhos além fronteiras.

A estatura do género

Cuca. Tarraxinha

O corpo humano é o principal banco de símbolos. Como alvo e como fonte. O corpo feminino talvez mais do que o masculino. Neste anúncio angolano, o corpo feminino serve para significar uma cerveja mini. Não podia ser um corpo masculino? Poder, podia, mas desafiava as coordenadas do nosso imaginário, coordenadas que a publicidade, regra geral, respeita. Uma mulher alta a dançar com um homem baixo é uma figura que inverte o nosso mapa mental. Como diriam Claude Lévi-Strauss, Pierre Bourdieu e muitos outros autores, o alto tende a ser associado ao masculino e o baixo ao feminino.

Marca: Cuca. Título: Tarraxinha. Agência: TBWA Luanda. Angola, Maio 2013.

A Maçã, o Desejo e o Caos

Allstate Insurance. MayhemA maçã é um fruto pretensioso e perverso. Ainda sinto o caroço na garganta. E as duas laranjas que Eva tem no peito, não são laranjas, não: são duas metades de maçã, fontes primitivas do desejo. As maçãs caem como anjos na cabeça de Newton e brilham tenebrosas nas mãos da bruxa malvada. São diabólicas. “Pomo da discórdia”, semeiam caos. Erotizam a vida. A macieira é do género Malus (Malus domestica). E o planeta é cada vez mais a uma grande maçã. Proteja-se! Você não é o Guilherme Tell. Entregue-se nas mãos da Allstate Insurance, e beberá sidra para sempre.

Marca: Allstate Insurance. Título: Mayhem. Agência: Leo Burnett. Direção: Phil Morrison. EUA, Janeiro 2013.

A redenção dos Pés

Física e simbolicamente dominados, os pés são ímpares no que respeita a abnegação e sacrifício. Parece ser sua vocação, e nossa também, suportar os outros e o mundo, andar com a altivez às costas. “Pés de todo o mundo, uni-vos!” Dai um pontapé aos vossos fardos! Rexonem-se!

Marca: Rexona Efficient. Título: Acknowledgement. Agência: Ponce, Buenos Aires. Direção: 300 ml. Argentina, Maio 2012.

A cabeça entre as orelhas. Paródia de uma semiótica do corpo

O corpo é o nosso maior banco de símbolos. Com ele nos significamos e com ele significamos o mundo. É um reportório pautado pela assimetria; privilegia umas partes em detrimento de outras. O alto e o baixo constituem uma das dimensões mais discriminantes: o alto é elevado e o baixo rasteiro; em cima, no peito e na face, mora a honra, em baixo, no ventre e no sexo, o pecado; a cabeça decide e as pernas seguem. Também existem membros superiores e membros inferiores, as mãos ágeis e os pés pesados. Alguém imagina as figuras de Deus e de Adão na Capela Sistina a quase se tocarem com os dedos dos pés? A criação do mundo começou com o verbo e não com um pontapé, não obstante a teoria do Big Bang. Embora sejam o sustento do corpo, os pés poucos elogios granjeiam. Submetemo-los, quando muito, ao duplo vexame da ironia: “pensar com os pés”. Os pés são, por vocação, estúpidos, pelo menos assim o entendem os franceses: “bête comme un pied”. “Pisar” é palavra feia. Até quando se pisam uvas, se está a perder tempo. Os pés não são elegantes nem edificantes. O seu rating estético e ético está pelas águas da amargura. Na pintura ocidental pós-medieval só sobressai um subgénero pedestre, as patas que ostentam a marca do inferno: os demónios, os sátiros… No nosso imaginário, os pés são, apesar da sua utilidade, um aborto da criação divina.

Livro de Salmos de Windmill. Inglaterra. Séc. XIII

Mas não é só a altura que hierarquiza, a horizontalidade também conta: a parte da frente opõe-se à parte de trás. À frente, a luz; atrás, a sombra (vá-se lá saber por quê). A parte da frente é o nosso espelho, a nossa fachada. A parte de trás é cega e vulnerável. Tudo o que é mal atira-se para trás das costas. Como quando se encolhem os ombros. A nossa retaguarda alberga a nossa lixeira portátil. Tudo o que é limpo e digno estaciona à nossa frente, sobretudo no peito e na face.

Onde há vertical e horizontal também costuma haver diagonal. O supra-sumo da virtude está na face, ou seja, em cima e à frente. Em baixo e atrás, está o traseiro, o cúmulo das desgraças. É na diagonal que os extremos se exacerbam. Percorrendo-a, descemos dos píncaros para os abismos do invólucro corporal. Não é por acaso que a expressão “cara de cu” representa um dos piores insultos. Convoca os dois extremos numa dinâmica de rebaixamento: o alto frontal é degradado para o baixo traseiro.

François Desprez, Songes drolatiques de Pantagruel, Paris, 1564.

A oposição entre interior e exterior oferece-se como uma dimensão adicional da semiótica corporal. Quem fala de interior e de exterior fala não só de limites mas também de passagens: a boca, o nariz, os ouvidos, os olhos, o sexo, o ânus, os poros… E quem fala de passagens, fala de movimentos: engolir, respirar, urinar… Ressalvando assinaláveis excepções, na maioria dos casos, o que entra no corpo é bom e o que dele sai é mau. Beber, comer e inalar são normalmente associados a actos positivos. Mas nem sempre é assim: os vírus e o fumo do tabaco são considerados nocivos. Esta avaliação varia cultural e historicamente: no século XVII, temia-se que a água infiltrada pelos poros alagasse o corpo, optando-se por uma “higiene seca” (Vigarello: O Limpo e o Sujo); em contrapartida, não se estimava o fumo do tabaco maléfico. Retomando, o que sai do corpo tende a ser encarado como poluição. É o caso da transpiração, do vómito, da expectoração, da mucosidade, da urina, dos excrementos e dos “ventos de baixo e de cima” (Erasmo). Como tudo o que envolve seres humanos, estes esquemas carecem a devida reserva. Há culturas onde o arroto nem sempre é indesejável. E convém não esquecer que isto que nós somos, fruto do nascimento, é um corpo saído de outro corpo.

É curioso notar que na semiose do corpo também se verifica a réplica quase fractal da macroestrutura nas microestruturas. Pierre Bourdieu insistiu sobre este efeito (defende, por exemplo, em La Distinction que os princípios configuradores do espaço social se reproduzem ao nível de cada uma das suas fracções). Anthony Giddens também aflorou estes agenciamentos. Mas este tipo de configuração foi claramente equacionado, alguns anos antes, por Lucien Goldmann ao sustentar que a arquitectura global da peça Les Nègres, de Jean Genet, se actualizava nas respectivas réplicas (ver “Microstructures dans les vingt cinq premières répliques des Nègres de Jean Genet », in Structures mentales et création culturelle, Paris, Éd. Anthopos, 1970). Acrescente-se que Blaise Pascal abordou, três séculos antes, este entrelaçamento entre o todo e as partes. No que toca a precedências, mais vale ser um anão que se apoia nos ombros de um mestre do que um gigante que pisa as cinzas dos pioneiros. Na semiótica do corpo também ocorre este encaixe de estruturas. Na cabeça, por exemplo, a testa e os olhos localizam-se nas alturas. Se o peito e a face são o lugar da honra, a fronte é a sua sede. Neste sentido, manifesta-se grave afrontar uma pessoa. Mas tudo permanece vulnerável. Nada está acima de qualquer mácula. “Espete-se um par de cornos na testa” e lá se vai a honra altaneira. Abaixo da testa estão os olhos. Se a frente do corpo é o espelho da pessoa, os olhos são “o espelho da alma”. Distinta é a sina das orelhas, os órgãos mais recuados da cabeça. Quis a contingência que houvesse mais orelhas de burro do que orelhas de lince… Muitos cientistas e historiadores de arte procuram na boca e nos olhos o segredo da célebre expressão da Gioconda. O nariz, embora em muito menor grau, também não é esquecido. Mas, as orelhas, Senhor? As orelhas não são dignas de brilhar no rosto mais venerado do mundo… Entre a nuca e o nariz, murcham numa zona de ninguém.

Tien Shinhan. Dragonball.

Eis-nos chegados ao ponto em que devíamos ter começado. A escrita é como a vida, mal começa logo se perde em dobras e fragmentos que não há ilusão capaz de costurar ou engomar. Estou farto de teclar. O estilo vai-se tornando estenográfico. Estamos na era do audiovisual (pelos vistos, a pós-modernidade é a era de quase tudo). Como tendemos a “pintar” o audiovisual? Imaginamos um pedestal, o áudio, montado por uma vedeta, o visual. Algo como o Sancho Pança e o Don Quixote da comunicação. Nada a estranhar, as parcerias para ser recíprocas não precisam de ser simétricas. O “homem tipógrafo” inflacionou a visão em detrimento dos demais sentidos, incluindo a audição. Crença, projecção, realidade? Na prática, é difícil destrinçar os sentidos. Recordo que mesmo o cinema mudo não prescindia do som, dando azo a belas composições musicais! Certo é que as tendências da publicidade, dos telediscos, dos videojogos e do cinema prenunciam um maior protagonismo para a componente sonora. Será uma apetência do “homem electrónico”? Será uma viragem na constelação dos sentidos? Sem quixotismos, Sancho Pança que conclua: “- Temo, Senhor, que com tantos moinhos não haja escudeiro que aguente!” Tradução: “ – Temo, Senhor, que com tantos ecrãs não haja olhos que cheguem!” Tanto mais que a vista começa a estar cansada.