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Serão dos Medos (Fotografias)

À Júlia que ousou abrir a porta para um mundo assombroso

Já aludi ao ambiente, ao público e à dinâmica da última edição dos Serões dos Medos. Falta relevar a caraterística mais notável: a originalidade da quinzena de testemunhos partilhados. Nenhum foi estereotipado ou obedeceu a padrões rebatidos. Todas as intervenções foram pessoais e com narrativas únicas. O meu repositório do imaginário sobrenatural resultou substantivamente enriquecido. Acontece-me numa suposta prestação receber mais do que dou. Promovi e participei em muitos tipos de encontros. O Serão dos Medos afirma-se diferente. Pela vocação, pelo público, pelo envolvimento e pelo alcance. Sensibiliza-me, em particular, o sentimento de proximidade. Não estou perante uma massa indistinta mas com pessoas conhecidas, que dizem muito. Nunca é tarde para regressar e refrescar!

Geração e criação

Fernando – O Grove

Um filho gera-se, não se cria (inspirado em C.S. Lewis: “uma pessoa gera um filho, mas cria uma estátua” – Cristianismo puro e simples, Vida Melhor Editores, 2017, p. 211)

Sociólogo da arte, da cultura e dos estilos de vida, interesso-me pelos gostos partilhados pelas pelos indivíduos, na senda de autores tais como Norbert Elias, Erwin Panofsky, Howard S. Becker, Paul-Henry Chombart de Lauwe, Roland Barthes, Jean Duvignaud, Umberto Eco, Jean Baudrillard, Pierre Bourdieu e Bernard Cathelat.

Ensaiar acertar no gosto desta ou daquela pessoa é um dos meus desportos favoritos. Mas nem sempre é óbvio. Existem, porém, aves especiais. Oferecer-lhes algo que apreciem é um desafio. Dedico estas duas músicas, da compositora inglesa Imogen Holst (1907-1984) e do compositor japonês Tôru Takemitsu (1930-1996), a uma dessas raras aves do paraíso.

Tōru Takemitsu – November Steps for Biwa. 1967. Charles Dutoit & NHK Symphony Orchestra Salzburg Festival 2013. Biwa: Kakujo Nakamura; Shakuhachi: Kaoru Kakizakai.
Imogen Holst – The fall of the leaf. 1963. Intérprete: Steven Isserlis. A fly on the wall. 2016.

Progressivo e psicadélico

Nektar. Nektar. 1975.

Há grupos de rock que parecem deslocar-se com os sinos de Mafra: os Beatles, os Rolling Stones, os Pink Floyd… Outros batem à porta da memória com dedos de algodão. É o caso dos britânicos Van Der Graaf Generator e Nektar. Perdura, contudo, alguma influência junto de alguns segmentos herdeiros do rock progressivo e psicadélico. Ressoam, por exemplo, no festival SonicBlast, de Moledo do Minho. Se gosto da música? O ouvido esquerdo gosta, o direito, não. Por que publicar? Pela dialética do reconhecimento e do estranhamento. Os Beatles, os Rolling Stones e os Pink Floyd não há quem não os reconheça. Convocá-los é iniciar uma valsa num jogo de espelhos. No blogue, garantem picos de visualização. Os Van Der Graaf Generator e os Nektar estranham-se. As visualizações afundam-se. Um abismo distintivo mas com interesse. O desgosto, bem temperado, faz falta. Os gostos não são como os colarinhos; dispensam andar engomados. A mesmidade repete-se, regala-se e pasma.

Van Der Graaf Generator. Man Erg. Pawn Hearts. 1971.
Nektar. It’s all in the mind. Journey to the Centre of the Eye. 1971.

Pinguins

Acordei preguiçoso. Temo cansar-me. Lembram-se capas dos álbuns dos Penguin Cafe Orchestra? Humanóides com cabeça de pinguim em movimentos parados (ver galeria). Os Penguin Café Orchestra são um testemunho de que, muitas vezes, a originalidade é um opção para o esquecimento. A originalidade é indigesta, preferimos adubar a inteligência com com mais do mesmo, de preferência, com certificação ISO. A originalidade é indigesta. Para exemplo da música dos Penguin Café Orchestra, escolhi, por preguiça, as primeiras faixas do álbum Broadcasting From Home.

Penguin Café Orchestra. Music for a found harmonium. Broadcastint From Home. 1984.
Penguin Café Orchestra. Prelude & Yodel. Broadcastint From Home. 1984.
Penguin Café Orchestra. More Milk. Broadcastint From Home. 1984.

A regra e a originalidade

René Magritte. Not to be reproduced. 1937

É nos tempos de crise que se toma o pulso às instituições. Um mar de regras inunda as aulas. Espremidas como limões, vertem burocracia por todos os lados. Na linguagem de Max Weber, o professor deixou de ser uma autoridade carismática, como o profeta, e passou a deter um poder de direcção, de pastor, como o árbitro de futebol. O ensino evolui numa arena cercada por um coliseu de normas. Admito que estou a exagerar, mas a hipérbole afirma-se como um excelente artifício de comunicação. Requisitos, regras, plataformas e ferramentas, o que individualiza o ensino?

Entende a intelligentsia orgânica (para cruzar Karl Manheim e Antonio Gramsci) que uma aula ganha em ter um rosto, nem que seja estampado num ecrã. Concordo! Mas ganha em quê? Em aprendizagem? Duvido. Em “hiperritualização” (Erving Goffman)? Talvez. Todos concordamos que a sabedoria mora na testa, sai pela boca e resplandece nos olhos. Um dia, as aulas oscilarão entre o défice de atenção e o excedente de informação. Entre o défice e o excedente, repousa, recatada, a sabedoria. Normalize-se e certifique-se, que a originalidade é um estorvo.

Uma ovelha negra melancólica não resiste à voz “abrasiva” de Tom Waits.

Tom Waits. Cold Cold Ground. Franks Wild Years. 1987.
Tom Waits. Hold On. Mule Variations.1999.

Ignorância de estimação

Nietzsche

O PINTOR REALISTA
“A Natureza”; fiel e completa!” Como pode ele
chegar a isso?
Quando é que alguma vez se conseguiu liquidar a
natureza numa imagem?
A minha ínfima parcela do mundo é uma coisa infinita!
Dele só pinta aquilo que lhe agrada.
E o que é que lhe agrada? Aquilo que sabe pintar!
(Nietzsche, Frederico, 1882, A Gaia Ciência, Lisboa, Guimarães Editores, 1996, p. 31).

Abraham Kaplan (The conduct of inquiry: methodology for behavioral science, 1964) ilustra uma falácia habitual na Sociologia com a seguinte anedota:

Noite cerrada, um bêbado regressa, cambaleante, a casa. Chegado à porta, não encontra a chave. Começa a procurar. Passa um segundo bêbado que lhe pergunta:
– Que estás a fazer?
– A procurar uma chave.
– E perdeste-a junto ao candeeiro?
– Não sei! Mas aqui vê-se melhor.

Estou em crer que a falácia denunciada por Nietzsche e Kaplan é um vírus ainda activo. Investiga-se o investigado e comunica-se o comunicado. O que “se sabe pintar”. O resto pode inexistir à vontade. Estatisticamente falando, a distribuição da investigação científica por temas aproxima-se mais de uma distribuição de Student do que de uma distribuição normal. A ciência apraz-se a “chover no molhado”. Segundo Vilfredo Pareto, existem elites em todo o lado. Em todo o lado, existem membros que se destacam. Sobre as elites, produziram-se muitos estudos. Em todas as categorias sociais, existem parasitas. Um fenómeno da maior relevância. E, no entanto, pouca obra sobre o assunto. Para encontrar uma obra dedicada ao parasitismo social, convém pedir a Diógenes de Sínope a lanterna com que procura o homem. Trata-se, porventura, de uma “douta ignorância” (Pierre Bourdieu).

O mundo da ciência é uma caricatura. Quanto mais saturado está um domínio, mais rende. Mais encontros, mais parceiros, mais citações, mais revistas e, sobretudo, mais afinidades nos concursos e nos financiamentos. Se insiste em ser parvo, seja original!

Distribuição t de Student

Distribuição de t de Student

Distribuição normal

Distribuição normal

Originalidades

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O anúncio Original is never finished chapter3, da Adidas, arrisca tornar-se num marco no mundo da publicidade. Tema arrojado, imagens primorosas e intertextualidade subtil. Ironicamente, a originalidade é declamada com citações. A originalidade não acaba, recria-se. Por exemplo, a canção do anúncio, My Way, associada a Paul Anka e Frank Sinatra, é, afinal, uma originalidade francesa: Comme d’habitude (1967), com autoria e interpretação de Claude François. Nada como ser original graças à originalidade dos outros. Ser original em segunda mão. Reoriginalidades.

Marca: Adidas. Título: Original is never finished chapter3. Agência: Johannes Leonardo New York. Estados Unidos, Agosto 2017.

O romantismo atribui a originalidade ao indivíduo e ao génio. Esquece que a originalidade requer poder. Para ser original, a inteligência e a criatividade não bastam. Sem posição, alavanca e recursos, resulta improvável o reconhecimento como original. A originalidade é cada vez mais um luxo da academia dos Balnibarbos (Swift, Jonathan, 1726, As Viagens de Gulliver, Terceira Parte, Capítulo V). Não tarda a originalidade ser instituída por decreto. “Segundo publicação no Diário da República (…), está aberto concurso para originais (…) O júri é composto por clones especialistas na padronização do espírito”.

Não se deve brincar com coisas sérias! Caminhamos para um mundo que não sabe distinguir entre originalidade e repetição. Receio que as tendências actuais na organização da actividade científica (infografias, concursos, avaliação, financiamento) concorram para um menosprezo crescente do valor da originalidade.

 

 

Novidade e originalidade

M.C. Escher, Circle Limit IV (1960) The angels and devils

M.C. Escher, Circle Limit IV (1960) The angels and devils.

O anúncio brasileiro Anjos, da Telefónica, é uma festa da memória. Lembra “as asas do desejo”, de Wim Wenders. Como poderia não lembrar? Nada expõe mais o homem do que o desejo. Desejar é o âmago de nosso ser (Sigmund Freud).

Olhos de crianças, inocentes e sonhadores, surpreendem anjos, uma ilusão feliz a partir de um ponto de vista enganador. Existem imensos anúncios com anjos, mas não os anjos de Escher, entrelaçados com demónios (Fig. 1). Em contrapartida, existem muitas ilusões inspiradas em Escher. Importa ver com o coração, como Pascal, Magritte e o principezinho.

A publicidade é a alquimia de todos os desejos. A intertextualidade fere a originalidade do anúncio? Antes pelo contrário. “Não me digam que não disse nada de novo, a disposição das matérias é nova. Quando se joga à péla um e outro jogam com a mesma bola, mas um coloca-a melhor” (Pascal, Blaise, Pensamentos, 696-22). Pouco originais são aqueles que enchem um armário com coisas novas, esvaziam-no e voltam a enchê-lo com novas coisas novas. Sempre o mesmo armário com coisas sempre novas.

Marca: Telefónica. Título: Anjos. Agência: DDB Worldwide. Brasil, 2001.

Despasmar o prazer

Dune. Elements. 2017.

Estética orquestral num anúncio da Dior votado à sedução. Sem parasitar atributos alheios. “Je suis comme je suis, je plais à qui je plais” (Jacques Prévert). What else? A dança do corpo nas cordas de um violoncelo; o âmbar de um tempo humano e divino. Entre dois mundos, o cósmico e o feminino, e quatro elementos: o vento, a areia, o fogo, a água. E um perfume: Dune.

“A woman embodies the dune, created in the low chamber of an hourglass. After breaking free, she is able to control the Elements. This piece is a dreamlike journey from the sands of the dune to the waters of the ocean”.

Marca: Dior Dune. Título: Elements. Agência: Art Center College of Design. Direcção: Ignacio Sepúlveda. Estados Unidos, Junho 2017.

Houve tempos em que me revia no poema de Jacques Prévert. Hoje, infelizmente, só com um capacete de realidade aumentada. Seguem o anúncio Elements, da Dior, e o poema Je Suis Comme Je Suis, de Jacques Prévert, em francês e em português (tradução de Priscila Junglos). Não resisto a intercalar um vídeo musical com uma versão heavy Metal do poema de Prévert, pela banda Spike. O poema Je suis comme je suis foi interpretado, entre outros, por Juliette Greco (1952) e Wende Snigder (2004). Opto pela banda francesa de Salles-Sur-Hers (Carcassonne ):  o guitarrista é empregado municipal e bombeiro; o baixo, marceneiro; o bateria, “encarregado de negócios”. A música destoa da volúpia reinante, mas nada como uma dissonância para despasmar o prazer. Em vésperas de aniversário, acodem-me as originalidades da existência. O resto são inércias e formulários biográficos. Gosto de uma vertente da globalização. Não tanto a internacionalização, até um tomate bem calibrado se internacionaliza, mas o acesso ao local: a um lugar recôndito, com 695 residentes, e a uma banda de música, com 19 409 visualizações no You Tube. Como não a encaro como uma plataforma para alpinistas de rankings, a Internet agrada-me.

Spike. Je suis comme je suis. (J. Prévert / Spike). 2016.

Jacques Prévert. Je Suis Comme Je Suis. Paroles. 1946.

Je suis comme je suis
Je suis faite comme ça
Quand j’ai envie de rire
Oui je ris aux éclats
J’aime celui qui m’aime
Est-ce ma faute à moi
Si ce n’est pas le même
Que j’aime chaque fois
Je suis comme je suis
Je suis faite comme ça
Que voulez-vous de plus
Que voulez-vous de moi
Je suis faite pour plaire
Et n’y puis rien changer
Mes talons sont trop hauts
Ma taille trop cambrée
Mes seins beaucoup trop durs
Et mes yeux trop cernés
Et puis après
Qu’est-ce que ça peut vous faire
Je suis comme je suis
Je plais à qui je plais
Qu’est-ce que ça peut vous faire
Ce qui m’est arrivé
Oui j’ai aimé quelqu’un
Oui quelqu’un m’a aimé
Comme les enfants qui s’aiment
Simplement savent aimer
Aimer aimer…
Pourquoi me questionner
Je suis là pour vous plaire
Et n’y puis rien changer.

Jacques Prévert: Eu sou como eu sou

Eu sou como eu sou
Eu sou feita assim
Quando eu tenho voltade de rir
Sim, eu gargalho
Eu gosto de quem me gosta
Lá isso é culpa minha
Se não é o mesmo
Que eu gosto a cada vez
Eu sou como eu sou
Eu sou feita assim
O quê você quer além disso
O quê você quer de mim
Eu sou feita para agradar
E nada nisso posso mudar
Meus saltos são muito altos
Minha silhueta muito empinada
Meus seios são duros demais
E em meus olhos muitas olheiras
E depois, e daí
O quê isto tem a ver com você
Eu sou como eu sou
Eu agrado a quem eu agrado
O quê isto tem a ver com você
O quê aconteceu comigo
Sim, eu amei alguém
Sim, alguém me amou
Como as crianças que se amam
Simplesmente sabem amar
Amar amar…
Por que me questionar
Eu estou aqui para lhe agradar
E nada nisso posso mudar.

(Tradução de Priscila Junglos: http://triunfecomofrances.blogspot.pt/2012/11/je-suis-comme-je-suis-de-jacques-prevert.html).

Original sem limites

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As interpretações, organizadas qual fieiras em viveiro de plantas, começam a ficar entediantes; as pessoas têm saudades das florestas (Kayser, Wolfgang, O grotesco: configuração na arte e na literatura, São Paulo, Ed. Perspectiva [1957], 1986, p. 8).

Neste anúncio da Adidas, tudo está equacionado até ao mais ínfimo pormenor: a imagem, o som e a palavra. Original is never finished.

Marca: Adidas. Título: Original is never finished. Agência: Johannes Leonardo. Direcção: Terence Neale. Estados Unidos, Janeiro 2017.