Encomendação das almas. Vice e Versa
O Tendências do Imaginário está a desviar-se do pensamento para o sentimento. Importa travar. A quem interessam os acordes de um violino pessoal?


Dor em quarto minguante no clamor da madrugada. Fogo que queima as nuvens. Seara que aborrece a ceifeira. Sarabanda em eira despida. Teimosia realizadora da esperança. Encomendação do Aquém, pelos presentes. O outro lado da encomendação das almas, filmada em Penha Garcia, Idanha-a-Nova, por António Ventura, numa bela curta-metragem documental de 2017. Agradeço a partilha à Rita Ribeiro. Como contraponto, três músicas do grupo irlandês The Pogues: Dirt Old Town; Young Ned of the Hill; e Tuesday Morning.
Resistência e impotência
“De todos os fenômenos religiosos, mesmo os considerando apenas de fora, é a oração que apresenta imediatamente a impressão de vida, riqueza e complexidade. Ela possui uma história maravilhosa: parte de baixo, e ascende gradualmente até as cimeiras da vida religiosa. Infinitamente flexível, assume as formas mais variadas, alternadamente adorativas e vinculativas, humildes e ameaçadoras, secas e abundantes em imagens, imutáveis e variáveis, mecânicas e mentais. Preenche os papéis mais diversos: aqui é um pedido brutal, lá uma ordem, noutro lugar um contrato, um ato de fé, uma confissão, uma súplica, um elogio, um Hosana. Às vezes, uma mesma espécie de orações tem passado sucessivamente por todas as vicissitudes: quase vazia na origem, encontra-se um dia cheia de sentidos; em outro, quase sublime no início, se reduz gradualmente a um salmo mecânico (Marcel Mauss, La Prière, 1909, traduzido por Mauro Guilherme Pinheiro Koury)”.
As orações podem ser de revolta e desespero. A canção The Great Gig In The Sky, dos Pink Floyd, versa sobre a resistência e a impotência perante o “destino da vida”.
The song began life as a Richard Wright chord progression, known variously as “The Mortality Sequence” or “The Religion Song”. During 1972 it was performed live as a simple organ instrumental, accompanied by spoken-word samples from the Bible and snippets of speeches by Malcolm Muggeridge, a British writer known for his conservative religious views (The Great Gig In The Sky. Wikipaedia, acedido em 28/11/2018).
Para um descrente de Deus, do Homem e do Diabo, nestes dias, já rezei muito.
Pink Floyd. The Great Gig In The Sky. The Dark Side Of The Moon. 1973.
Os óculos do Pai Natal
Estamos na estação da generosidade. Começa lá para o Halloween e acaba com o S. Brás, senão com o Carnaval. Quanto o calendário se pautava pelos trabalhos agrícolas, este era, com escassas colheitas, um período de alguma miséria, logo de partilha. As sociedades camponesas quase desapareceram, mas continuamos a trocar prendas. O Pai Natal continua incansável a cruzar a noite com o seu trenó de renas. Mas acontece confundir-se para desconcerto das crianças e dos adultos. O Pai Natal não envelhece, mas está a perder a visão. Baralha os pedidos. Precisa de usar óculos. A Générale d’Optique oferece os óculos. A ele e a mais 25 000 pessoas. Mas o Pai Natal não tem óculos? Uma pesquisa relâmpago sugere que quando é uma pessoa, como no anúncio, costuma usar óculos. Sucede o contrário quando é um desenho. Não percebo.
Marca: Générale d’Optique. Título: Un Noël presque parfait. Agência: La Chose. Direcção: Hugues de la Brosse. França, Novembro de 2018.
Oração II
Reza-se de joelhos e de pé, de cabeça baixa ou erguida, de pé atrás ou à frente, de olhos fechados ou abertos, de cor ou de improviso, em silêncio ou não. Nem sequer é fácil saber quando se está ou não a rezar (Marcel Mauss, “La prière”, 1909). Nina Simone, Don’t Let me Be Misunderstood, ao vivo.
Nina Simone. Don’t Let Me Be Misunderstood. 1964. Live 1968.
Filhos de um deus menor
En premier lieu toute prière est un acte. Elle n’est ni une pure rêverie sur le mythe, ni une pure spéculation sur le dogme, mais elle implique toujours un effort, une dépense d’énergie physique et morale en vue de produire certains effets. Même quand elle est toute mentale, qu’aucune parole n’est prononcée, que tout geste est presque aboli, elle est encore un mouvement, une attitude de l’âme (Mauss, Marcel, 1909, La prière).
Mais, par choses sacrées, il ne faut pas entendre simplement ces êtres personnels que l’on appelle des dieux ou des esprits; un rocher, un arbre, une source, un caillou, une pièce de bois, une maison en un mot une chose quelconque peut être sacrée (Durkheim, Émile, 1912, Les formes élémentaires de la vie religieuse).
O sagrado somos nós ! Todos sabemos o que é uma prece. O anúncio True Love, da True Corporation Public Co., aproxima-se de uma oração. Oremos, que a vida é um altar!
Anunciante : True Corporation Public Co. Título: True Love. Agência: GreynJ United Thailand. Direcção: Thanonchai Sornsriwichai. Tailândia, Abril 2018.
O espírito do surf
Em modalidades como o surf, “os desportistas controlam aparelhagens leves e flexíveis gerindo, em equilíbrio instável, as informações provenientes do ambiente (água e vento) de feição a retirar, não pela força mas graças aos reflexos e ao domínio técnico, o melhor proveito da situação” (Gonçalves, Albertino, Vertigens: Para uma sociologia da perversidade). É comum afirmar-se que em desportos como o surf o adversário é a natureza. Duvido. O surfista não joga contra a natureza; joga com a natureza, sua parceira. O surf é um desporto informacional e ecológico. Mas subsistem outros saltos no raciocínio. Encarar, por exemplo, o surf como uma experiência cósmica e quase sagrada, e a sua prática como uma espécie de oração. Proliferam as páginas da Internet que associam o surf ao sagrado. Dorian Paskowitz, surfista, médico, falecido em 2014, uma referência do surf, confirma:
“O surf é algo muito especial. Sei que cada um de vós tem uma ideia do surf – e está correto -, mas à medida que vão envelhecendo vão perceber que há algo de mágico no surf, e misterioso. É do sol que vem a energia para fazer o vento, o vento faz as ondas e nós só precisamos de surfá-las. É como surfar o sol, somos filhos das estrelas. É quase sagrado (…) É preciso o melhor de cada um de vocês. Têm de tomar conta da vossa saúde, amizades, responsabilidades. Surfar é uma prece, é a nossa forma de rezar” (Surftotal – Dorian Paskowitz: https://vimeo.com/110658972).
Acredito que muitos surfistas se reconhecem nas palavras de Dorian Paskowitz. Ao cósmico e ao quase sagrado (almost holy), convém acrescentar a estética. Estética de quem pratica e estética de quem observa. O surf é arte e espectáculo.
O anúncio Flow, da Corona, convoca estas vertentes do surf, desde a primeira onda do surfista até à comunhão final. O anúncio absorve estes traços, reais ou imaginados, envolve-os em emoção e beleza, de modo a dar corpo ao espírito do surf e, por extensão, da cerveja Corona. Se tal existe, deve ser isto a sobriedade eloquente.
Dedico este artigo ao Edu Petta, um aficionado do surf e um nómada à escala planetária. Sempre com a câmara fotográfica e a prancha na mão.
Marca: Corona. Título: Flow. Agência: Wieden + Kennedy Amsterdam. Holanda, Maio 2016.
The Memorable Doc Dorian Paskowitz. Surftotal TV.
Cliquemania
Há quem encare a oração como a voz da fé. A esta luz, o post, o follow , o like e o link são contas do rosário digital. A reza separa as águas e move cavalos. Há revoluções rezadas. Os cliques vitaminam a seiva comunicacional. Ambos convocam a magia. Já Montaigne escrevia no séc. XVI: “Parece, na verdade, que nos servimos das nossas orações como de um jargão, à semelhança daqueles que empregam palavras santas e divinas em feitiçarias e efeitos de magia” (Montaigne, Essais, cap. XXI).
Pelos vistos, os “likes” não curam à distância, nem concorrem para a cura (vídeo 1). À telemedicina falta-lhe ainda esse milagre. Mal não seja, os “likes” animam os internautas enredados. Um clique para ti, um clique para mim… E a vida sorri! (vídeo 2). Entretanto, vale a pena atender a este provérbio africano: “E enquanto você reza, vá fazendo!” Uma boa divisa para o apelo dos Médicos sem Fronteiras.
Anunciante: Doctors without borders. Título: Jonas. Agência: Kommunikationsbureauet København, Copenhagen. Dinamarca, Julho 2013.
Olá. Um corneto para ti, um corneto para mim. Portugal, anos 80.