História de um melro que morreu por ser feliz

Um melro costuma fazer ninho no quintal. Atarefado, tem-se saído bem com os gatos. Pior destino teve “o melro” do Guerra Junqueiro, vítima da vingança do Velho Padre Cura, num extenso conto em verso que o meu avô recitava de cor. Segue a digitalização do poema “O Melro” a partir da segunda edição ilustrada do livro A Velhice do Padre Eterno (1ª edição: 1885). Segue o respetivo pdf,
Quem fala em melros, pode falar em rouxinóis. Porque a opressão e a maldade não têm pouso exclusivo. Ao melro raptaram-lhe os filhos; ao rouxinol da Cantilena de Francisco Fanhais cortaram quase tudo.
Com imagens pode dizer-se muito. Com poucas imagens pode, por vezes, dizer-se ainda mais. Na curta-metragem dos bauhouse, sopra-se no medo e na esperança até que explodem como tiros e bombas. Porque as nossas asas são tão frágeis como as dos pássaros.
O medo e o racismo

É difícil discorrer sobre o racismo sem incorrer em contradições. René Gallissot fala de Misère de l’Antiracisme (Paris, Editions de l’Arcantère, 1985). O anúncio Démasquons la Peur, da associação Licra, merece particular atenção. Em primeiro lugar, o morphing permite revelar a diversidade e a plasticidade humanas. Em segundo lugar, o recurso ao preto e branco propicia o esbatimento das cores e a acentuação dos contrastes. O discurso lembra uma árvore de palavras: alia a abrangência troncal à especificação dos ramos. O tópico do medo é matricial: “O racismo é o medo da diferença” (Franck Ntasamara).
Músicas de medo, morte e pranto

A vida é uma cereja
A morte um caroço
O amor uma cerejeira.
Jacques Prévert. Histoires. Folio, 1972
Para entrar na distopia, duas músicas menos conhecidas do Lou Reed, Waves of Fear, e dos Pink Floyd, Dramatic Theme.
A sociedade do medo. O riso e a morte.

O espetáculo é o mau sonho da sociedade moderna acorrentada, que acaba por exprimir apenas o seu desejo de dormir (Guy Debord, La société du Spectacle. 1967).
Há uma eternidade que não ria tanto com um anúncio. Aberta e espontaneamente. Uma empresa de electricidade malaia ridiculariza as novas tecnologias da realidade virtual. Importa rir.
A sociedade actual menospreza o riso. Aposta, em contrapartida, no medo, na catequese da ameaça, a modos como a santa inquisição, o nazismo, o estalinismo e outros guardadores de homens. Receamos tudo, até a água que bebemos e o ar que respiramos. Novos pastores, novos rebanhos, novos lobos, novos fantasmas, novos cavaleiros do Apocalipse.

Morre-se um pouco todos os dias. Nada escapa, tudo prejudica, tudo mata. Perdi a conta aos catastrofismos políticos e mediáticos a que sobrevivi. Acrescento uma bandeira à procissão: a vida precede a morte, viver pode matar! Mas, apesar da proliferação de infortúnios, só se morre uma vez. Parece que estamos pendurados num rosário de mortes. Se tudo mata, o riso ressuscita! É o que interessa. Convém reconhecer que os nossos pastores, ao contrário dos inquisidores, não nos conduzem a uma vala comum, satisfazem-se com o comboio fantasma. Não tenho emenda. Este comentário não faz jus ao anúncio. No meio de tanto humor, atravessou-se um espantalho.
Pedagogia de choque
Do ponto de vista do cidadão moderno, os atropelamentos são inadmissíveis. Demasiada imprudência, distracção e morte. A publicidade destaca-se como um dos principais meios de prevenção. Há várias formas de dissuadir o peão imprevidente: acidentes tecnicamente estetizados ou dramatizados; mortos faladores; desespero dos pais das vítimas; anjos salvadores… Predominam os anúncios que chocam e assustam. É o caso do Stunt piétons, da canadiana SAAQ (Société de l’Assurance Automobile du Québec). O anúncio recorre ao choque e ao susto. O desvio é o caminho mais avisado. Os acidentes e as vítimas, reduzidas a esqueletos, reconhecem-se no ecrã de um aparato técnico. A simulação de uma realidade pode ter mais impacto do que a própria realidade.
A pedagogia do choque e do medo não é apanágio dos regimes e das instituições totalitárias. Mais ou menos eficaz, configura um discurso do poder. A pedagogia do choque e do medo esmera-se, mas, muitas vezes, sem grandes resultados. Por exemplo, contra o tabaco ou o álcool. Tudo indica que a pedagogia do choque e do medo também é apanágio das sociedades democráticas. A prudência não está associada ao medo? O medo não sensibiliza?
Marca: SAAQ. Título: Stunt piétons. Agência: Lg2. Direcção: Olivier Labonté Lemoyne. Canadá, Novembro 2018.
Susto
A publicidade também serve para pregar sustos. Neste caso, até faz sentido: trata-se de promover um parque de diversões. A quadra é propícia. Partidas, de bom e de mau gosto, sempre existiram. Algumas, como esta, são impróprias para cardíacos. Às vezes, pergunto: de que matéria somos amassados para apreciar rostos de espanto e medo?
Marca: Grona Lund. Título: The Hounted Poster. Agência: Pool, Stockholm. Suécia, Outubro 2014.
Misericórdia a martelo
Estes três anúncios são, fruto da época, misericordiosos. Também são chocantes. Convocam catástrofes e acidentes. O primeiro, A toonie is all it takes to fill a hungry tummy, canadiano, mostra imagens de catástrofes reais (cheia, tornado, desabamento de terras, incêndio) para terminar com um pedido de ajuda destinada a crianças com fome. No segundo, Heart Attack, peruano, uma mulher tem um ataque cardíaco ao ver o custo das suas compras. No terceiro, Get out from under, canadiano, uma mulher, submersa, é salva do afogamento pela mão de uma instituição bancária. Esta série de anúncios lembra-me Thomas Müntzer (1490-1525), um teólogo do séc. XVI que, radical, se afastou de Lutero e esteve associado à Guerra dos Camponeses que incendiou a Europa Central. Friedrich Engels dedicou um pequeno livro às Guerras Camponesas na Alemanha (1850) e Ernst Bloch escreveu um longo ensaio sobre o próprio Thomas Müntzer (Thomas Müntzer, O Teólogo da Revolução, 1921). Thomas Muntzer, decapitado aos 35 anos, tinha a particularidade de assinar os textos que colocava nas portas das igrejas do seguinte modo: “Thomas Müntzer, à martelada”. Esta leva de anúncios generosos com terapia de choque também se podia apelidar, independentemente da respectiva bondade, “misericórdia à martelada”.
Anunciante: Toonies for Tummies. Título: A toonie is all it takes to fill a hungry tummy. Agência: Capital C. Canadá, Fevereiro 2014.
Marca: Hipermercados Tottus S.A. Título: Heart Attack. Agência: Circus, Lima. Perú, Fevereiro 2014.
Marca: Credit Canada. Título: Get Out From Under. Agência: Reason Partners. Direção: Steve Gordon. Canadá, Fevereiro 2014.