O caso dos palhaços assustadores
A propósito da praga dos palhaços assustadores, colocaram-me as seguintes perguntas:
– Como se justifica este tipo de comportamento de grupo em relação aos palhaços assustadores?
– Qual o motivo da sociedade encarar os palhaços com algum receio?
Tentei responder sem saber a resposta.
O palhaço é uma figura bem-disposta. Amigo das crianças. Mas é também uma figura grotesca. Oscila entre polaridades. Abraça contrários. E joga com eles. Nos Estados Unidos, os indígenas chamavam ao palhaço trikster, o trapaceiro. A figura do palhaço tanto pode provocar o riso como o medo, o bem como o mal, a familiaridade como a estranheza. O palhaço desafia as nossas expectativas, baralha-nos, ostentando uma máscara no limiar de mundos confusos. Não se vaticina, por exemplo, que, por detrás da máscara, os palhaços são pessoas tristes? Esta ambivalência possibilita a existência de palhaços assustadores. Abundam, por exemplo, no cinema e na publicidade. Recorde-se o Batman (1989) de Tim Burton, com Jack Nicholson no papel de Joker, o palhaço assassino. Recorde-se, também, o fabuloso anúncio Carousel (2009), da Philips, uma batalha, em slow motion, entre polícias e palhaços. Se o palhaço é uma figura do bem, nada obsta a que albergue o mal.
A máscara não é neutra. Influencia quem a usa e quem a vê. A máscara adere à pele e ao espírito. Apodera-se do portador, induzindo-o a sentimentos e comportamentos inusitados. O corpo mascara-se e a máscara incorpora-se. No teatro grego, a máscara ressoa. Através dela, falam outras vozes. Um mascarado transcende-se, veste alteridades. Recorde-se a commedia dell’ arte, o Ku-Klux-Klan, os Anonymous, os terroristas ou os foliões do Carnaval.
O palhaço assusta graças à máscara. A visão do rosto gera confiança nas pessoas. Foi esta intuição que motivou Alexandre o Grande a imprimir o seu perfil nas moedas. Adivinhou o poder persuasivo da face. O ocultamento do rosto causa insegurança. Acresce que as pessoas ficam perturbadas perante situações de dissonância cognitiva. Um palhaço violento confunde o senso comum e abala as convicções das vítimas.
Não se esqueça, porém, que, em primeira e última instâncias, quem assusta as pessoas não são as máscaras mas os mascarados, com os respectivos símbolos, gestos, atitudes, comportamentos e agressões. Não é qualquer pessoa que se mascara de palhaço para assustar desconhecidos. Nem todos somos palhaços assustadores.
Por que motivo os palhaços assustadores se disseminaram tanto e tão rápido? Antes de mais, porque o fenómeno começou nos Estados Unidos, plataforma da comunicação à escala planetária. Outro país e o fenómeno não lograria tamanha visibilidade. Os Estados Unidos concentram as principais alavancas de divulgação de informação, e de lixo, da era da Internet. Sempre houve desvio e violência, embora com outra base, forma e encenação. Hoje, compomos a plateia de uma sociedade espectáculo cujo palco é o ecrã. Por incrível que pareça, até nas freguesias rurais do distrito de Braga existem, hoje, aspirantes a palhaço assustador, antes e depois do Halloween.
O grotesco está no vento. Tanto que, às vezes, satura. Na Idade Média, multiplicavam-se as festividades desvairadas, mas confinadas no tempo e no espaço. Assim acontecia com a missa do burro ou o riso pascal, nas igrejas, ou com o carnaval, na praça pública. Hoje, apregoa-se a ultrapassagem dos limites. Se o Natal é todos os dias, o carnaval, também. O grotesco e o brutesco tornam-se imprevisíveis. A sociedade mostra-se febril e epidémica. Delira e espirra. Sem contenção. Entretanto, instaurou-se um estranho costume: quando alguém se desvia ou se excede, damos-lhe um palco. O exibicionismo dos palhaços assustadores tornou-se espectáculo mundial. Um caso exemplar de propagação mediática.
Confesso que nunca soube o que era uma não notícia. Às vezes, sinto-me perto (ver http://g1.globo.com/pb/paraiba/jpb-1edicao/videos/v/policia-nega-aparicoes-de-palhacos-assustadores-em-joao-pessoa/5377371//).
Máscaras: Bugiada e James Ensor
Apeteceu-me revisitar a Bugiada de Sobrado. Desta vez, via Internet. As máscaras lembram James Ensor (Bélgica, 1860-1949). Não têm qualquer ligação, mas, ressalvando a obsessão de Ensor pelo tema da morte, é uma tentação ensaiar um diálogo. A cor, a fantasia e a exuberância justificam-no. Segue uma miscelânea de imagens da Bugiada e da obra de James Ensor.
A Bugiada de Sobrado é caracterizada por uma riqueza, uma originalidade, uma ancestralidade e uma participação popular notáveis. Chamo a atenção para a fotografia com o burro montado ao contrário. Tal como na Idade Média, durante a missa do burro (ver Figura 20, na página da direita, em baixo). Outrora como agora, o burro montado ao contrário significa a inversão do mundo, um mundo às avessas (sobre a missa do burro, ver http://tendimag.com/2015/02/19/tolos-e-burros/).
- 01. Bugiada
- 02. Bugiada
- 03. bugiada
- 04. James Ensor. Christ’s Entry into Brussels in 1889. 1888
- 05. Bugiada
- 06. James Ensor, La Mort et les masques. 1890
- 07. James Ensor.Death and the masks. 1900
- 08. bugiada
- 09. James Ensor. A Intriga, 1890
- 10. Bugiada
- 11. James Ensor. Masks Confronting Death. 1888, detail.
- 12. Bugiada
- 13. James Ensor Du rire aux larmes Laughter with the tears. 1908.
- 14. Bugiada.
- 15. James Ensor . Still Life in the Studio, Nature morte dans l’atelier, 1889
- 16. James Ensor. Astonishment of the Wouse mask. 1889
- 17. Bugiada
- 18. James Ensor. Masques regardant une tortue. 1894.
- 19. Bugiada
- 20. Macclesfield Psalter. 1330.
Três faces e um pescoço
Para além do Cristo da Trindade (http://tendimag.com/2014/04/10/as-tres-faces-de-cristo/), cabeças com três faces aparecem em máscaras pré-colombianas, mexicanas, africanas, venezianas e orientais, em esculturas de shiva e na arte contemporânea. Há quem represente o tempo com três faces: o passado, o presente e o futuro (ver galeria). Esta pequena digressão à volta do mundo serve para encalhar na capa do primeiro cd dos Goldfrapp: dois rostos femininos laterais simétricos; na parte frontal, o capricho dos cabelos esboça a carranca de um monstro. É difícil escolher uma música do álbum Felt Mountain (2000). Segue a faixa Utopia, com a capa.
Goldfrapp. Utopia. Felt Mountain. 2000
- Fig 01. Máscara précolombiana. México
- Fig 02. Três faces do Rei. Museu Cultural de Izamal. México
- Fig 03. Máscara. Lega. Zaire.
- Fig 04. Máscara de Veneza
- Fig 05. Deus Shiva. Índia
- Fig 06. As três faces de shiva
- Fig 07. Pai Tempo
- Fig 08. Leyton Franklin. Mask with three faces in one.
- Fig 09. Karan A L (hester). Three Faces of Art. 2005.
- Fig 10. Goldfrapp. Felt Mountain. Frontal. 2000.
Mascarada
A máscara encobre, protege, liberta, excede e absorbe. Segundo Stanislavski, a personagem tende a tomar conta da pessoa. Pele da pele, a máscara (in)veste a carne, os ossos e o que resta do espírito.
Estas vinte máscaras antigas celtas, gregas e romanas, provenientes do arco sobreendividado que se estende da Grécia até à Irlanda, passando por Portugal, talvez ajudem a variar da careta de bom aluno.
- 01. Máscara celta
- 02. Máscara dionisíaca grega
- 03. Máscara funerária grega, ca. 1600-1500 AC
- 04. Máscaras trágicas do teagro grego
- 05. Máscara grega, ca. 336-100 AC
- 06. Máscara de teatro grega, séc I AC
- 07. Máscara grega de teatro.
- 08. Máscara de teatro representando um camponês. Grécia
- 09. Máscara de teatro, séc III AC
- 10. Máscara de sátiro romana, séc II DC
- 11. Retrato romano em forma de máscara de teatro, séc I DC
- 12. Máscara romana
- 13. Máscaras da Sicília, 100-300 AC
- 14. Máscaras da Sicília, 100-300 AC
- 15. Máscara em pedra do Coliseu de Roma
- 16. Máscara militar romana, séc. III DC
- 17. Máscara militar romana
- 18. Máscara militar romana, sécs. I a III DC
- 19. Mosaico romano com máscaras, séc. II DC.
- 20. Ficoroni, Francesco de. Dissertatio de Larvis Scenicis, et Figuris Comicis Antiquorum Romanorum…, 2ª ed., Roma, 1754
Quem quer uma máscara mordaz?
Se ainda não escolheu a sua máscara para este Carnaval, que nos seja permitido sugerir este modelo património carrancudo, com três estilos a opção: gótico, clássico e Ilha da Páscoa. A prótese dentária, garantida contra a corrosão da austeridade, tem dupla função: tanto ri como morde.
- Iodosan. Classical.Ogilvy & Mather, Milão. Itália, Fev. 2007
- Iodosan. Easter Island.Ogilvy & Mather, Milão. Itália, Fev. 2007
- Iodosan. Gothic.Ogilvy & Mather, Milão. Itália, Fev. 2007
A pele e a máscara
O modelo canadiano Rick Genest, conhecido como Zombie Boy, tem quase todo o corpo tatuado. Quem viu o vídeo “Born this way”, de Lady Gaga, não o esquece. No anúncio “Zombie Boy”, aparece, estranhamente, de tronco nu e sem tatuagens. Removidas ou encobertas? Com uma esponja e o removedor de maquilhagem Dermablend, começa a esfregar o peito pondo a nu os desenhos escondidos. Prossegue com o rosto, revelando, finalmente, a sua identidade. Este anúncio aproxima-se muito de uma performance. Contanto compreensível no caso de um cosmético, há cada vez mais anúncios versando sobre a imagem e a plasticidade da identidade. O anúncio contempla uma pequena passagem alusiva ao respectivo making of. Penso que não basta. Vale a pena espreitar “behind the scenes”.