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De braço dado com a solidão

Soares dos Reis. O Desterrado. Detalhe. 1872.

Avec le temps, va, tout s’en va (…) Avec le temps, va, tout va bien (Léo Ferré, 1972).

Fazer-se só

Senti-me só, na infância, “órfão de vivos”, a lutar com heróis de ficção.

Senti-me só, na adolescência, com a “mortificação do eu”, num internato com excesso de alteridade.

Senti-me só, em Paris, exilado numa “multidão solitária”.

Senti-me só, ao regressar, a um ninho que já não era o meu.

Senti-me só, adulto, no trabalho, pela diferença.

Sinto-me só, na reforma, por deixar de ser o que tanto fui.

Senti-me só, na doença, mais de um ano, isolado, sem mobilidade, a perder faculdades, sem interlocutor na procissão das horas, a sorver o pasmo dos ecrãs. Costuma dizer-se que a comunicação e as redes sociais nos fazem companhia. Talvez sim, talvez não. Talvez se reduzam a uma paisagem, paisagem significante da solidão, como em muitas pinturas da melancolia.

Poderei dizer, como Georges Moustaki, que “nunca me senti só com a minha solidão”, que “fiz dela uma companhia”? Nunca estamos sós quando estamos com nós próprios? Este paradoxo nem sempre convence. Existem momentos em que a repetição sufoca o tempo e a memória. Subsiste sempre o risco de nem a nossa companhia desejarmos, da queda em vórtices em que a existência nos pesa e a identidade nos oprime. Nesses casos, a extrema solidão aproxima-se da morte, social ou não.

A solidão fez, portanto, quem sou. Contributo e produto que estimo.

Albertino Gonçalves, Braga, 03 de fevereiro de 2022.

Entre a toma de um medicamento e o pequeno almoço, tenho um tempo morto de 30 minutos. Como rotina, consulto o correio eletrónico. O meu amigo e colega Adalberto Faria insiste num pedido feito há algum tempo a “solicitar uma singela colaboração no [seu] trabalho de campo para um livro a editar sobre a temática «A SOLIDÃO – SOLIDÕES» (…) Gostaria que cada um, consoante a sua experiência, vivência ou opinião, pudesse definir o que pensa do conceito de solidão, entre os vários tipos de solidões, de físicas a psicológicas, e que abranjam na sua diversidade geográfica a urbe e o campo. Aceito um simples parágrafo ou uma conversa com conceitos mais profundos ou complexos”.

O Adalberto soube insistir e o pedido de “um simples parágrafo” foi um argumento feliz. Decidi responder de imediato, para não voltar a esquecer o desafio.

Esbocei mentalmente o texto “Fazer-se só” enquanto tomava o pequeno almoço. Selei-o antes da fisioterapia. Pessoal, alude a diversas formas de solidão: a ausência do próximo, a evasão, a anulação nas “instituições totais”, o desterro, a diluição na multidão, o desencontro e o desaninho, a diferença e a unicidade, a rutura e a descontinuidade, a incomunicação de massas e a desmaterialização das redes sociais, a rotina e a repetição, a reificação e a espacialização do tempo e da memória, o isolamento e a morte social, a crise subjetiva, a desintegração e a alienação do ego. Faltou falar, porque não consigo, da solidão da escrita. Tudo isto coube neste texto raquítico com letras vividas.

Penso que o Adalberto não se importa por eu não ter resistido à tentação de colocar este textinho no arquivo do Tendências do Imaginário.

Seguem três canções, das minhas preferidas, dedicadas à solidão enquanto companhia, destino e erosão da vida: Georges Moustaki, Ma Solitude (1969); Léo Ferré, La Solitudine (1972); e Léo Ferré, Avec le Temps (1972).

Georges Moustaki. Ma Solitude. Le Métèque. 1969. Ao vivo no Olympia, em 2000.
Léo Ferré. La Solitudine. Gravado em Maio e Junho de 1972. Fotografias de Misha Gordin.
Léo Ferré. Avec le temps. Avec le temps. 1972. Top à Léo Ferré, ORTF : émission du 04/11/1972

Perder a vontade

De todos os animais, o homem é aquele a quem mais custa viver em rebanho.“ (Jean-Jacques Rousseau).

Começar o dia com três cigarros, Anna F. e dois gramas de vontade é um prenúncio batido.

Perdi a vontade num dia de nevoeiro. Viajava rumo ao Alto Minho. A minha vontade gosta do Alto Minho. Em Nine, mudei de comboio. Não me acompanhou, entrou noutro comboio, não sei se por engano. Segui para Viana do Castelo e ela, para o Porto. Nunca mais nos reencontrámos. Sem a vontade, não há vontade. Apodera-se de nós um vazio que nos cansa. E nos devora. “A espécie de felicidade de que preciso não é tanto a de fazer o que eu quero, mas a de não fazer o que eu não quero.” (Jean-Jacques Rousseau).

Anna F., Too Far, For Real. 2010.
Anna F., Most of all, For Real. 2010.

Virados do avesso

Kate MacDowell. Daphne. 2007.

Kate MacDowell. Daphne. 2007.

Quem rejeita desencontros como este?
O anúncio da Interflora é uma bela parábola.
Diferença, aproximação, devir.
O gótico torna-se clássico, e vice-versa.
Tu não és apenas o que és mas o que podes ser.
Contraditorial, é atributo do homem poder virar-se do avesso.

Marca: Interflora. Título: Odd love. Agência: Brandhouse. Direcção: Martin Werner. Dinamarca, Fevereiro 2015.