Tag Archive | dança macabra

Feliz dia dos mortos!

SLOVENIA – MAY 03: Death accompanying a merchant and a wealthy banker, Dance of Death (1490), detail from the frescoes by Janez Iz Kastva, Trinity Church, Hrastovlje fortified church, Slovenia. Detail. (Photo by DeAgostini/Getty Images)

Feliz dia dos mortos! Dancem, dancem a dança macabra! Treinem os fémures e as tíbias.

Para o vídeo, convém uma resolução de, pelo menos, 720p.

Camille Saint-Saëns (1835-1921) Danse Macabre (1874) Opus 40 in G minor for violin + orchestra. National Philharmonic Orchestra, conductor Leopold Stokowski.

Saída de palco

Bink’s Sake. One Piece.

Alguém pediu uma homologia? Noção recomendável na sociologia dos anos sessenta. Lucien Goldman foi um praticante convicto, mormente nos livros Sociologie du roman (1964) e Dieu Caché (1955). Pierre Bourdieu acumula homologias, designadamente, na Distinção (1979), e na “semiótica” da casa cabila (“La maison ou le monde renversé”, in Esquisse d’une théorie de la pratique, 1972). Não esquecendo o contributo de autores clássicos como Max Weber e Georg Simmel. O afunilamento da investigação não ajuda ao estudo das homologias, cuja pesquisa pressupõe abrangência, comparação e sentido da diferença. A comparação não requer, antes pelo contrário, igualdade de origens, conteúdos ou funções entre realidades

Pode-se falar de homologia entre o vídeo da canção Bink’ Sake, do anime One Piece, e a Sinfonia do Adeus de Haydn. Os músicos retiram-se paulatinamente da orquestra. Trata-se de uma despedida colectiva e individual. Um corpo que se fragmenta. Os intérpretes retiram-se um a um, sem cronograma pré-definido. No palco, permanece, “abandonado”, o maestro.

Na canção Bink’ Sake relevo duas correspondências: uma relativa à dança macabra, a outra à Sinfonia do Adeus.

O protagonista de Bink’ Sake é um mortal que se tornou imortal. Imortal como a morte. Apesar de ser imortal, não escapa à corrosão do tempo: decompõe-se como um transi. Conforme antes ou após a imortalidade, ora aparece como humano, ora como esqueleto. O que não o impede de comandar a música e a dança. Na parte final, os músicos e os cantores formam um círculo, à semelhança da maioria das danças macabras, e (des)falecem desamparados. A letra da canção confirma o destino: “We all end up as skeletons”.

A canção Bink’ Sake e a Sinfonia do Adeus são de géneros distintos. Concentram-se nos intérpretes: instrumentistas, cantores e maestros. A saída da vida, num caso, e do palco, no outro, são quase desenhadas a papel químico. Uma a uma, as pessoas retiram-se do grupo, da vida ou do palco. O último conta os estragos: “What’s wrong… We’re just a quartet… Trio…Duet… Solo.”

Fernando Gonçalves e Albertino Gonçalves

Bink’ Sake. One Piece. Vídeo.

Os ossos não enganam: a dança dos esqueletos

Figura 1. Franciszek Lekszycki . Dança macabra. Cracóvia, Polónia. Século XVII. Curiosamente, as danças da morte neste quadro e no seguinte contemplam apenas mulheres. Lembram as naves das loucas (ver
https://tendimag.com/2014/07/29/michel-foucault-e-a-nave-dos-loucos/ )

“Nenhum homem há naquele ponto que não desejara muito uma de duas: ou não ter nascido, ou tornar a nascer de novo, para fazer uma vida muito diferente. Mas já é tarde, já não há tempo” (Padre António Vieira).

The dance of death. Oil painting. Sec. XVII. Credit: Wellcome Library, London. Wellcome Images images@wellcome.ac.uk http://wellcomeimages.org.

“Para nascer Portugal: para morrer o mundo” (Padre António Vieira). A despedida é fado, o afastamento o corolário. Despedi-me da aldeia para estudar em Braga; de Braga para estudar em Paris; de Paris para trabalhar em Braga. O que mais custa na despedida não é a adaptação ao novo destino, é o afastamento de um pedaço de vida. É um vazio que trespassa o esqueleto. Partir e repartir é cavar cemitérios de amizades e desbastar florestas de rotinas. Partir empobrece! Suspende-se a familiaridade do mundo da vida. Afastei-me sempre voluntariamente. Volto a pressentir a semente do alheamento. Mas imagino esta nova travessia diferente. Não perco a familiaridade do mundo, nem os amigos; apenas aqueles que não tenho. Há três contingências a que os ossos não se habituam: à água do mar, à febre de protagonismo e ao feiticismo da sabedoria. Prevejo afastar-me aos poucos num alheamento a prestações. Como os intérpretes da Sinfonia do Adeus, de Joseph Haydn, que se retiram do palco sem que a música deixe de cumprir a sua promessa. A Dança dos Esqueletos, de Walt Disney (1929), precede A Sinfonia do Adeus (1772) de Joseph Haydn (no vídeo, a deserção dos intérpretes começa no minuto 4).

Walt Disney. A Silly Shimphony: The Skeleton Dance. 1929.
Joseph Haydn. Sinfonia 45. A Sinfonia do Adeus. 1772.

Vida de esqueleto II. O espelho

01. Despertador. Science Museum. Londres. 1840 – 1900.

01. Despertador. Science Museum. Londres. 1840 – 1900

O esqueleto acompanha-nos desde a expulsão de Adão e Eva do paraíso. A dança da morte da ponte Spreuer, em Lucerna, na Suíça (Figura 3), mostra Adão e Eva, mais o esqueleto, a sair, curvados, do paraíso:

“Mas do fruto da árvore que está no meio do jardim, disse Deus: Não comereis dele, nem nele tocareis para que não morrais” (Genesis 3:3).

Dança macabra da ponte Spreuer, em Lucerna

O esqueleto sempre assombrou a humanidade. Condenado, tal como o ser humano, ao trabalho, esmera-se. Toca os clientes, captura-os e transporta-os para o outro mundo. Assedia como um toureiro, ceifa como um camponês, pesca como um lobo-do-mar e caça como um nobre ou como um predador furtivo. Usa a gadanha, o arco e a flecha, o machado, a espada, a lança, a rede e a pá. Desloca-se a pé, montado num caixão (Figura 1), num cavalo, num burro ou numa vaca. Por finais do século XIX, também voa (Figuras 6 a 11).

O ofício de esqueleto

Às vezes, o esqueleto, enquanto trabalha, diverte-se com outros esqueletos. Nas danças macabras, toca música e baila de mãos dadas com os vivos mortos. O transporte para o outro mundo resulta festivo. O esqueleto investe na política. Faz a guerra e não desdenha o poder. Nos triunfos, a morte senta-se no trono, rodeada pelo seu séquito, com as autoridades mundanas a seus pés (Figura 2 e 12 a 15).

Triunfo da morte

12. Discípulo de Andrea Mantegna. Triunfo do Amor, da Castidade e da Morte. 1460s

12. Discípulo de Andrea Mantegna. Triunfo do Amor, da Castidade e da Morte. 1460s

13 a 15. Triunfos da morte do Palazzo Abbattelis, de Clusone e de Pieter Bruegel

O esqueleto também repousa. Cansa-se, como o esqueleto sentado na escada da figura 15. Aprecia o lazer e a actividade espiritual. Dormita aconchegado em prazeres, come, joga, espera, aborrece-se, vê-se ao espelho, lê, contempla uma caveira (uma dupla vanitas), ouve e toca música, parodia a arte e, sublinhe-se, reza (ver figuras 16 a 29).

Actividades de lazer

O espelho da morte mostra-nos a nossa finitude. Em vez da nossa imagem, vemos a morte. As actividades do esqueleto são semelhantes às nossas. Podiam ser as nossas. Com a ressalva da procriação. Ao olhar para o espelho, mais do que a morte, vemo-nos a nós próprios. O esqueleto é uma projecção. O esqueleto somos nós. Somos, pelo menos, o modelo (Figuras 30 a 33)

O espelho da morte

Tanto nos dá para temer o esqueleto como para o venerar. Dedicamos-lhe cultos, os cultos da morte e dos mortos. Nas igrejas, nos cemitérios, em casa, na rua e durante o Halloween. Às vezes, exorbitamos. É o caso dos santos descobertos no século XVII nas catacumbas romanas que o papa distribuiu por várias igrejas germânicas. Identificados como esqueletos dos primeiros mártires, beneficiaram do esmero póstumo de freiras, joalheiros e outros artífices dos séculos XVII e XVIII (Figuras 34 a 37).

Santos das catacumbas romanas

Nas fotografias de Paul Koudounaris (2013, Heavenly Bodies, New York, Thames Hudson), contam-se mais jóias e ornamentos do que ossos. Ao bom jeito barroco, são esqueletos em majestade. Rivalizam com Nossa Senhora da Boa Morte ou com a Santa Morte, padroeira, entre outros, dos traficantes e dos bandidos (Figuras 38 a 41).

Morte santa

Se os esqueletos são ecos, por que os imaginamos? Para personalizar ou eufemizar a morte? Para acomodar o vazio? Ou será porque prestamos mais atenção ao eco do que à voz? A vida do esqueleto é o paroxismo da reflexividade e da catequese humanas.

A canção da morte a passo de caranguejo

Igreja de São Virgílio. Pinzolo. Itália

Figura 01. Igreja de São Virgílio. Pinzolo. Itália

Figura 02. O Baile da Morte na Igreja de São Virgílio. Postal ilustrado. 1903

Figura 02. O Baile da Morte na Igreja de São Virgílio. Postal ilustrado. 1903

O vídeo O Desconcerto do Mundo inicia com imagens de danças macabras acompanhadas pela canção Ballo in Fa diesis Minore (Sono Io la Morte, 1977) de Angelo Branduardi, cuja letra corresponde aos ditos da dança macabra de Pinzolo (Itália, 1539), dança situada na Igreja de São Virgílio, na fachada que confina com o cemitério (ver Figura 1). No início do século XX, o cemitério estendia-se até à igreja (ver, na Figura 2, bilhete postal datado de 1903).

Pela localização, junto ao cemitério, a dança macabra de Pínzolo lembra a dança macabra do Cemitério dos Inocentes, em Paris, a primeira dança macabra de que há conhecimento: os frescos percorriam os muros interiores do cemitério, por cima dos ossários (ver Transi 3: Viver com os mortos). Segue canção de Angelo Branduardi, com tradução dos versos iniciais.

Angelo Branduardi. Ballo in fa diesis minore. Versão original: La pulce d’Acqua. 1977.

Tradução dos primeiros versos da canção Sono Io la morte, de Angelo Branduardi

Tradução dos versos inicio da canção Ballo in fa diesis minore, de Angelo Branduardi

Descobrir é “coisa corrente”. “De sábios e tolos todos temos um pouco”. Intrigou-me, por exemplo, a afinidade entre alguns autores surrealistas (Salvador Dali, Giorgio de Chirico e M.C. Escher) e vários artistas do séc. XV a XVII, tais como Lorenz Stoer, François Desprez, Wenzel Jamnitzer e Giovanni Battista Braccelli (ver: Arquitectura de paisagem na geometria maneirista: Lorenz Stoer ; Criaturas pantagruélicas 1 ; Criaturas pantagruélicas 3 ; Perspectivas: Wenzel Jamnitzer e M. C. Escher ; Braccelli. À maneira surrealista ).

Estas duas “descobertas”, versos da “canção da morte” e influência do maneirismo no surrealismo, são, de facto, descobertas da pólvora. De algum modo, já se sabia!

Figura 03. Início da dança macabra de Pínzolo. Músicos e primeiros versos

Figura 03. Início da dança macabra de Pínzolo. Músicos e primeiros versos

Qual o interesse em descobrir o descoberto? A felicidade e o treino: descobrir é uma experiência grata e uma competência que ganha em ser cultivada. “o acaso só toca os espíritos bem preparados” (Joseph Pasteur). O episódio da letra da canção de Angelo Branduardi deve muito ao acaso, acaso que só toca, contudo, à minoria que lê os versos das danças da morte. “Preparar bem o espírito” não se resume à promoção de estudos exploratórios e à revisão da literatura”. Requer mergulho na realidade e capacidade de discernimento dos “fenómenos anómalos, relevantes e estratégicos” (Merton, Robert K., 1968 [1949], Social structure and social theory, New York, The Free Press, 158).

O risco de descobrir a pólvora tende a diminuir quando o tema da investigação é menos concorrido e mais circunscrito.

This slideshow requires JavaScript.

Escolhíamos imagens para o livro sobre as Festas d’Agonia (Martins, Moisés, Gonçalves, Albertino & Pires, Helena, 2000, A Romaria da Srª da Agonia, Grupo Recreativo e Cultural dos Trabalhadores dos Estaleiros Navais de Viana do Castelo), quando deparei como uma fotografia com um aeroplano. Em letras muito pequenas, enxergava-se o nome: Quo Vadis. Desde 1913, os programas das festas e os jornais locais anunciam, ano após ano, a exibição de um aeroplano. O cartaz de 1913 “representa uma figura de Zé P’reira, assentando num bombo, admirando basbaquemente, um aero plano que cruza o espaço” (Aurora do Lima, 16.07.1913). Mas foi preciso aguardar pelo ano de 1918 para ver um aeroplano a sobrevoar, durante as festas, Viana do Castelo. O aeroplano chamava-se Quo Vadis… Por mesquinhas que sejam, estas micro descobertas despertam o investigador e a investigação. Podem, ainda, contribuir para o património e a memória locais.

A micro descoberta não programada requer competência, treino e disponibilidade, tanto de tempo como de espírito. Investir em quase nada é uma aventura ousada.

Para o “livrinho” A Idade de Ouro do Postal Ilustrado em Viana do Castelo, recorri à pesquisa na Internet, designadamente páginas de leilão e blogues especializados. A determinada altura, deparo-me com um postal ilustrado, datado de 31 de Agosto de 1911, com a mensagem escrita inesperadamente incompleta. Uma curiosidade. Passei em frente. Alguns dias mais tarde, surge um postal ilustrado com o mesmo emissor e a mesma destinatária, do mesmo dia e com mensagem incompleta, ambos numerados. Coleccionador de selos e leitor de romances policiais, não resisti a prestar atenção este caso anedótico. A missão consistia em descobrir o maior número possível dos doze postais enviados (“mando daqui doze bilhetes postais para assim teres a certeza que vão todos ao destino”) por um visitante de Viana do Castelo a Magdalena Manzoni, de Torres Vedras. Consegui encontrar dez, todos na Internet (ver Galeria de imagens). Faltam o 2 e o 5. Valeu a pena? Não sei, mas ainda me sinto orgulhoso. Não deixa de ser um bom indicador da paixão pelos postais ilustrados no início do século XX.

Galeria de Imagens: Postais enviados por um visitante de Viana do Castelo em 1911

Aprecio as fábulas de La Fontaine: a Lebre e a Tartaruga, o Leão e o Mosquito, a Cigarra e a Formiga, o Lobo e o Cordeiro… Por que não o Galgo e o Caranguejo?

A Passo de Caranguejo é uma obra de Umberto Eco (2007, Difel). Segundo o autor, o mundo está a retroceder: regressa à guerra quente, retoma os fundamentalismos… O caranguejo do Umberto Eco anda para trás. Aqueles que conheço tendem a andar para o lado. O galgo corre para a frente sem tirar os olhos do isco e sem sair um milímetro da pista. Na estrada, o galgo acelera nas rectas sem abrandar nas curvas rumo à meta. O caranguejo não resiste a desvios, perde-se em atalhos e demora-se em inutilidades. O caranguejo sabe o que quer, mas relativiza os objectivos. É um “flâneur” (ver Benjamin, Walter, 2012, El Paris de Baudelaire, Buenos Aires, Eterna cadencia Editora). O galgo é racional; o caranguejo, romântico. O galgo aprecia problemas e protocolos; o caranguejo, enigmas e travessias. O cúmulo do galgo é saber os resultados antes de começar a investigação. O cúmulo do caranguejo é acreditar que para ser investigador basta existir. O sociólogo Paul F. Lazarsfeld (ver a colectânea On Social Research and Its Language, The University of Chicago Press, 1993) aproxima-se do tipo ideal do galgo; Georg Simmel (ver a colectânea La tragédie de la culture, Paris, Editions Rivages, 1988), do tipo ideal do caranguejo. Galgo ou caranguejo? Já fui galgo, caranguejo e híbrido. “No estado em que as coisas chegaram”, estou em crer que ser caranguejo dá mais prazer e ser galgo mais poder. Para a frente, para trás ou para o lado, a cada um andar a seu contento. Mais do que formas de estar no ofício de sociólogo, o galgo e o caranguejo são formas de estar na vida.

A passo de caranguejo. A canção da morte

Igreja de São Virgílio. Lado do cemitério. Pinzolo. Itália.

Igreja de São Virgílio. Lado do cemitério. Pinzolo. Itália.

Ao passar um vídeo sobre o grotesco (http://tendimag.com/2012/08/31/o-desconcerto-do-mundo/), costumo relevar, na sequência dedicada às danças da morte, a correspondência entre os versos da Dança Macabra de Pinzolo (Itália, 1539) e a letra da música, de fundo, de Angelo Branduardi: Ballo in Fa diesis Minore (Sono Io la Morte; 1977).

Pinzolo. San Vigilio. Itália.  Pormenor da Dança Macabra.

Pinzolo. San Vigilio. Itália. Pormenor da Dança Macabra.

Texto inicial da dança macabra. Pinzolo. Itália

Texto inicial da dança macabra. Pinzolo. Itália

“Sono io la morte e porto corona,
io Son di tutti voi signora e padrona
e così sono crudele, così forte sono e dura
che non mi fermeranno le tue mura.

Sono io la morte e porto corona,
io son di tutti voi signora e padrona
e davanti alla mia falce il capo tu dovrai chinare
e dell ‘oscura morte al passo andare.

Sei l’ospite d’onore del ballo che per te suoniamo,
posa la falce e danza tondo a tondo
il giro di una danza e poi un altro ancora
e tu del tempo non sei più signora”.

Angelo Branduardi. Ballo in Fa diesis Minore (Sono Io la Morte). La pulce d’Acqua. 1977.

Não é fácil detectar este tipo de coincidências. São saltos laterais na “linha do raciocínio”. De desvio em desvio, anda-se “a passo de caranguejo”. Recordando Marshall McLuhan, trata-se de ensinar menos por mensagem e mais por massagem.

Angelo Branduardi é um compositor e interprete folk / rock italiano. “Trovador contemporâneo”, inspira-se na música medieval e renascentista. Compõe, frequentemente, letras alheias. Consta entre os compositores e cantores mais famosos da Europa (além-Pireneus). Partilhou uma música com Teresa Salgueiro, Nelle Palludi di Venezia (2000), integrada no álbum Obrigado (2005).  De Itália até Portugal, a passo de caranguejo.

Angelo Branduardi e Teresa Salgueiro, Nelle Palludi di Venezia. 2000. Teresa Salgueiro, Obrigado, 2005.

O Soldadinho de Chumbo

christian cross silhouette and the clouds in sepia tone

Totentdanz, Sturm und Drang, Deutschen ExpressionismusHumor alemão secular? Talvez… Certo é que muitos anúncios alemães bebem nas águas de um humor potente, cínico, sinistro e corrosivo. Absurdo e criativo, como que a revelar “o outro lado de Deus”. No anúncio Chewing-gum, da Hdi Insurance, enlaçam-se três pontos de vista: condutor / drama; espectador / humor; e seguradora / resgate. O espectador ri da desproporção das consequências; ri porque acredita tratar-se de um drama e não de uma tragédia (o problema, a anomalia, acabará por se resolver). Esta confiança é, porém, abalada pela suspensão final. A um passo do vazio, o riso gela. A confiança do espectador dá lugar à fatalidade da companhia de seguros, a única âncora passível de salvar objectos, corpos e, porventura, almas. Em caso de morte, convém aviar-se em vida! Uma última palavra sobre o condutor: resume-se, ao jeito do imaginário alemão, a um “soldadinho de chumbo” num pequeno barco de papel a boiar numa tremenda tempestade enfeitiçada (ler o conto de Hans Christian Anderson: http://pt.wikisource.org/wiki/O_valente_soldado_de_chumbo). Para prova de que não se trata de um esquema de humor ocasional, acrescento dois anúncios da mesma marca: Thermos Flask e Dog.

Marca: HDI Insurance. Título: Chewing-Gum. Agência: KNSK Werbeagentur, Hamburg. Alemanha, 2005.

Marca: HDI Insurance. Título: Thermos Flask. Agência: KNSK Werbeagentur, Hamburg. Alemanha, 2006.

Marca: HDI Insurance. Título: Dog. Agência: KNSK Werbeagentur, Hamburg. Alemanha, 2004.

Macabro

Dança macabra de Clusone. 1485.

Dança macabra de Clusone. 1485.

Não gosto de dançar com cadáveres. Não é que sejam cadáveres; estão vivos. Mas, pelo sim, pelo não, já os depositaram na morgue.

Seguem duas canções dos Agua Viva (Apocalipsis, 1971). A primeira porque “me queda la palabra”, a segunda porque “los niños muertos no crecen”. Nunca imaginei, 43 anos depois, ouvi-los com os mesmos ouvidos.

Agua Viva. Me Queda la Palabra. Apocalipsis. 1971.

Agua Viva. La Niña de Hiroshima. Apocalipsis. 1971.

 

O Louco e a Morte

Dança da Morte. Alemanha. Séc. XVI

Figura 1. Dança da Morte. Alemanha. Séc. XVI

Por estas bandas, está a passar um enterro de vontades, bom pretexto para este artigo.

A morte e a loucura, se não andam de braço dado, andam, frequentemente, de mãos dadas. Ao nível do imaginário, naturalmente. Numa dança macabra alemã, do séc. XVI (Figura 1), o louco não dá, contra o costume, a mão à morte. As demais figuras dão a mão a dois esqueletos, um de cada lado da fila de dança. Exceptuando o homem de armas que, em vez de dar a mão direita à morte a dá ao louco. O louco não dá qualquer mão à morte, nem a direita, nem a esquerda. É o primeiro da fila, visivelmente, a contracorrente. Como compreender este estatuto excepcional? Poderá o louco ocupar o lugar da morte? Em determinadas circunstâncias, até parecem intermutáveis. Acresce que a posição do louco observada nesta dança macabra não é um caso isolado: na Dança e Canção da Morte, publicada por John Audelay, em 1569 (Figura 2), o louco é apresentado numa situação similar: no início da fila, sem dar a mão à morte.

Figura 2- The Daunce and Song of Death’, published by John Audelay in 1569

Figura 2- The Daunce and Song of Death’, published by John Audelay in 1569

A figura do louco é caracterizada pela liminaridade. Marginal, nem aqui, nem além, num rodopio excêntrico, sem pouso nem sentido fixos, a nave dos loucos não tem cais onde arrimar, nem destino a cumprir. Os territórios e os caminhos baralham-se, mesmo na última travessia, a da hora da morte.

“Voltando, pois, à felicidade dos loucos, devo dizer que eles levam uma vida muito divertida e depois, sem temer nem sentir a morte, voam direitinho para os Campos Elísios, onde as suas piedosas e fadigadas almazinhas continuam a divertir-se ainda melhor do que antes” (Erasmo, Elogio da Loucura).

“Sem temer nem sentir a morte”, os loucos não têm barca nem trânsito predefinidos. Como o parvo do Auto da Barca do Inferno, peça de Gil Vicente que lembra as danças da morte.

Figura 3. Hans Holbein, Dance of Death Alphabet, 1523

Figura 3. Hans Holbein, Dance of Death Alphabet, 1523

Esta ligação entre o louco e a morte emerge em muitas imagens. O louco e a morte envolvem-se, por vezes, numa luta grotesca (Figura 3), como na letra R do Alfabeto da Dança da Morte, de Hans Holbein (1523). Escusado será dizer que só um louco ousa lutar com a morte. Noutros casos, a morte adopta a roupa e os adereços típicos dos loucos (bobos). Na Dança da Morte de Heinrich Knoblochtzer (c.1488), a morte, trajada de louco, dá a mão a um capelão (Figura 4). Esta figura da morte travestida em louco repete-se na Dança da Morte de Wilhelm Werner von Zimmern (c. 1600), com a morte a conduzir um franciscano, bem como na gravura A Mulher e a Morte de Hans Sebald Beham (1541), em que a morte, trajada como um louco, incluindo o bastão de ar, abraça uma donzela (Figura 5).

Dança da Morte, Heinrich Knoblochtzer, c. 1488

Figura 4. Dança da Morte, Heinrich Knoblochtzer, c. 1488

Figura 5. Hans Sebald Beham. The Lady and Death. 1541

Figura 5. Hans Sebald Beham. The Lady and Death. 1541

Será esta ligação entre a loucura e a morte exclusivo da fantasia medieval? Talvez não. Hugo von Hofmannsthal escreve, em 1893, a peça dramática O Louco e a Morte. Raul Brandão retoma o título numa farsa publicada em 1923: O Doido e a Morte. Eis a sinopse:

“O Governador Civil, Baltazar Moscoso, dramaturgo frustrado, tenta escrever mais uma das suas peças medíocres. O contínuo Nunes avisa-o que o Senhor Milhões o vem visitar com uma carta de recomendação do ministro. Ao ser recebido, o Senhor Milhões liga a campainha eléctrica da secretária a uma caixa que transporta consigo, comunicando que acaba de activar uma bomba, a qual rebentará daí a vinte minutos. Perante o desespero do Governador Civil que se vê abandonado por todos, inclusive a sua mulher, D. Ana, o Senhor Milhões faz a crítica demolidora das convenções sociais e a defesa de um sentido último para a Vida; o próprio Governador Civil admite ter sido a sua uma mentira. E, na iminência da explosão, chegam dois enfermeiros, que vêm buscar o Senhor Milhões, o doido. Afinal, a bomba era apenas algodão em rama e não o temido peróxido de azoto, o que leva o Governador Civil a soltar um palavrão entre a raiva e o alívio” (O Doido e a Morte, Edições Colibri).

Tal como o Auto da Barca do Inferno, O Doido e a Morte, de Raul Brandão, bebe na matriz das danças macabras. A vítima é reduzida à sua condição miserável, não pela morte, mas por um louco. A arte de desmascarar tanto está associada à morte como à loucura. É, talvez, o atributo mais temível do bobo da corte.

Figura 6. James Ensor. Esqueletos disputando um arenque fumado. 1891

Figura 6. James Ensor. Esqueletos disputando um arenque fumado. 1891

A modernidade encerra, no entanto, alguma particularidade. Com tanta razão, tanto espírito positivo, tanta promessa de salvação, tanto juízo, a morte descompensou. Para além de vestir a roupa do louco, a morte, ela própria, endoideceu. Encontramo-la assim, louca, nos quadros de James Ensor (Figuras 6 e 7), Otto Dix e George Grosz. A morte anda à solta, mais maluca do que nunca: zombies, Halloween, death metal, Tim Burton… Para nossa perdição no “julgamento das almas”. Conduzidos por um louco ou por um esqueleto, estamos condenados a caminhar para a morte sem nos enganar no caminho.

Figura 7. James Ensor. Esqueletos disputando um cadáver. 1891

Figura 7. James Ensor. Esqueletos disputando um cadáver. 1891

Notas de rodapé:

Sobre o tema do louco e da morte, aconselho a leitura do artigo de Sophie Oosterwijk, “Alas, poor Yorick”. Death, the fool, the mirror and the danse macabre”, acessível no seguinte endereço: http://www.academia.edu/665091/Alas_poor_Yorick._Death_the_fool_the_mirror_and_the_danse_macabre.

Existem dois livros notáveis sobre a história do tratamento da loucura no Ocidente: a História da Loucura, de Michel Foucault, e L’Ordre Psychiatrique, de Robert Castel.

No vídeo O Desconcerto do Mundo, os primeiros minutos são preenchidos com imagens de danças macabras, acompanhadas com uma canção sobre o Triunfo da Morte. Está acessível no seguinte endereço: http://tendimag.com/?s=desconcerto+do+mundo.