Um contra um, todos por todos

O videojogo afirma-se como vanguarda das indústrias do lúdico e do audiovisual. Potente, competitivo, flexível, acelerado, certeiro e ubíquo. Como o arco de Dario (sobre o arco de Dario, rei da Pérsia, recomendo o artigo: O Espetáculo do Poder).
Não é de admirar que os anúncios a videojogos constem entre os mais impactantes das últimas décadas. HUMANKIND (Amplitude Studios) frisa a perfeição apelativa, narrativa, técnica e estética. Nada é descurado: a luz, a cor, a fotografia, o desenho, os cortes, os contrastes, o enquadramento, a profundidade, os planos, os ritmos, as sequências, o som, as referências… Qualidade, critério e criatividade. HUMANKIND recupera uma opção cada vez mais frequente: a substituição da figura humana por objetos e símbolos. Ganha em projeção e sublimação. Os objetos e os símbolos tornam-se, porventura, mais humanos do que o humano.
Retenhamos a lição: agonístico e diabólico, o universo, assevera-se exíguo para dois protagonistas; o anúncio termina, porém, com uma avalanche de multidão. Quem conta um conto acrescenta-lhe um ponto: o anúncio não enjeita ressonâncias bíblicas e míticas: o crepúsculo, egoísta e homicida, de Caim, e a alvorada, coletiva e mobilizadora, de Moisés. Onde não cabem dois, cabem milhões.
Fernando Gonçalves e Albertino Gonçalves
A mulher com cabelo aos caracóis. Caetano Veloso.
Betsabé banha-se numa fonte do jardim. O rei David observa-a seduzido. Tiveram uma relação sexual. Casada com Urias, Betsabé engravidou. David mandou Urias para frente da batalha para ser morto. Salomão foi um dos filhos de Betsabé. Esta é uma história bíblica com pendor shakespeariano. Segue, no final do artigo, a passagem da Bíblia (Samuel 11).
Galeria: Iluminuras com mulher a tomar banho no jardim
1. David and Bathseba. Illustration from the middle ages, book of the hours, ca 1500 2. Robert Boyvin. Betsabé. Livro de Horas. Séc. XVI 3. Taking a bath. Hours of Claude Molé, MS M.356 fol. 30v. Ca 1500. 4. Book of Hours, MS M.179 fol. 114v. Paris. 1480-1500 .
Cismei encontrar uma iluminura de Betsabé com cabelos encaracolados. Betsabé aparece em muitas iluminuras. Retenho quatro (ver galeria). A primeira segue o modelo-padrão: Betsabé banha-se nua e o rei David observa. A segunda acrescenta uma alusão: um homem, em princípio Urias, sai do palácio com uma carta na mão, a carta que dita a sua morte. A terceira iluminura multiplica os cenários: o banho de Betsabé, o adultério e a morte de Urias. Na quarta iluminura, a mulher tem cabelos eventualmente encaracolados, mas não se vê David. O enquadramento é semelhante às demais iluminuras com Betsabé, mas a ausência de David só permite afirmar que se trata de uma cena de higiene. Não é uma iluminura, mas na pintura Betsabé observada pelo rei David, de Jan Matsys, nos cabelos, presos, esboçam-se alguns caracóis.

Todo este desvio para quê? Para introduzir a canção Debaixo dos Caracóis dos seus Cabelos, de Caetano Veloso.
Bíblia – Samuel 11
- “Na primavera, época em que os reis saíam para a guerra, Davi enviou para a batalha Joabe com seus oficiais e todo o exército de Israel; e eles derrotaram os amonitas e cercaram Rabá. Mas Davi permaneceu em Jerusalém.
- Uma tarde Davi levantou-se da cama e foi passear pelo terraço do palácio. Do terraço viu uma mulher muito bonita, tomando banho,
- e mandou alguém procurar saber quem era. Disseram-lhe: “É Bate-Seba, filha de Eliã e mulher de Urias, o hitita”.
- Davi mandou que a trouxessem e se deitou com ela, que havia acabado de se purificar da impureza da sua menstruação. Depois, voltou para casa.
- A mulher engravidou e mandou um recado a Davi, dizendo que estava grávida.
- Em face disso, Davi mandou esta mensagem a Joabe: “Envie-me Urias, o hitita”. E Joabe o enviou.
- Quando Urias chegou, Davi perguntou-lhe como estavam Joabe e os soldados e como estava indo a guerra;
- e lhe disse: “Vá descansar um pouco em sua casa”. Urias saiu do palácio e logo lhe foi mandado um presente da parte do rei.
- Mas Urias dormiu na entrada do palácio, onde dormiam os guardas de seu senhor, e não foi para casa.
- Quando informaram a Davi que Urias não tinha ido para casa, ele lhe perguntou: “Depois da viagem que você fez, por que não foi para casa?”
- Urias respondeu: “A arca e os homens de Israel e de Judá repousam em tendas; o meu senhor Joabe e os seus soldados estão acampados ao ar livre. Como poderia eu ir para casa para comer, beber e deitar-me com minha mulher? Juro por teu nome e por tua vida que não farei uma coisa dessas!”
- Então Davi lhe disse: “Fique aqui mais um dia; amanhã eu o mandarei de volta”. Urias ficou em Jerusalém, mas no dia seguinte
- Davi o convidou para comer e beber e o embriagou. À tarde, porém, Urias saiu para dormir em sua esteira, onde os guardas de seu senhor dormiam, e não foi para casa.
- De manhã, Davi enviou uma carta a Joabe por meio de Urias.
- Nela escreveu: “Ponha Urias na linha de frente e deixe-o onde o combate estiver mais violento, para que seja ferido e morra”.
- Como Joabe tinha cercado a cidade, colocou Urias no lugar onde sabia que os inimigos eram mais fortes.
- Quando os homens da cidade saíram e lutaram contra Joabe, alguns dos oficiais da guarda de Davi morreram, e morreu também Urias, o hitita.
- Joabe enviou a Davi um relatório completo da batalha,
- dando a seguinte instrução ao mensageiro: “Ao acabar de apresentar ao rei este relatório,
- pode ser que o rei fique muito indignado e lhe pergunte: ‘Por que vocês se aproximaram tanto da cidade para combater? Não sabiam que eles atirariam flechas da muralha?
- Em Tebes, quem matou Abimeleque, filho de Jerubesete? Não foi uma mulher que da muralha atirou-lhe uma pedra de moinho, e ele morreu? Por que vocês se aproximaram tanto da muralha?’ Se ele perguntar isso, diga-lhe: E morreu também o teu servo Urias, o hitita”.
- O mensageiro partiu e, ao chegar, contou a Davi tudo o que Joabe lhe havia mandado falar,
- dizendo: “Eles nos sobrepujaram e saíram contra nós em campo aberto, mas nós os fizemos retroceder para a porta da cidade.
- Então os flecheiros atiraram do alto da muralha contra os teus servos e mataram alguns deles. E morreu também o teu servo Urias, o hitita”.
- Davi mandou o mensageiro dizer a Joabe: “Não fique preocupado com isso, pois a espada não escolhe a quem devorar. Reforce o ataque à cidade até destruí-la”. E ainda insistiu com o mensageiro que encorajasse Joabe.
- Quando a mulher de Urias soube que o seu marido havia morrido, chorou por ele.
- Passado o luto, Davi mandou que a trouxessem para o palácio; ela se tornou sua mulher e teve um filho dele. Mas o que Davi fez desagradou ao Senhor”.
(https://www.bibliaon.com/david_e_bate-seba/).
A parábola da garrafa de plástico

O que uma pessoa não faz por uma garrafa de plástico! Só um prodígio consegue resgatá-la do fundo de uma lixeira.
“Qual é a mulher que, possuindo dez dracmas e, perdendo uma delas, não acende uma candeia, varre a casa e procura atentamente, até encontrá-la? E quando a encontra, reúne suas amigas e vizinhas e diz: ‘Alegrem-se comigo, pois encontrei minha moeda perdida’” (Lucas, 15).
Talvez seja uma boa ocasião para investir em garrafas de plástico, porque em breve vão ser peças de museu leiloadas na Sotheby’s. Atente-se: “by 2025, Sodastream will eliminate 67 billion single-use bottles on this planet. So we won’t have to go looking for a new one”. Afigura-se mais fácil ver-se livre das garrafas de plástico do que dos “endemoninhados gadarenos”:
Quando ele chegou ao outro lado, à região dos gadarenos, foram ao seu encontro dois endemoninhados, que vinham dos sepulcros. Eles eram tão violentos que ninguém podia passar por aquele caminho.
Então eles gritaram: “Que queres conosco, Filho de Deus? Vieste aqui para nos atormentar antes do devido tempo?”
A certa distância deles estava pastando uma grande manada de porcos.
Os demônios imploravam a Jesus: “Se nos expulsas, manda-nos entrar naquela manada de porcos”.
Ele lhes disse: “Vão!” Eles saíram e entraram nos porcos, e toda a manada atirou-se precipício abaixo, em direção ao mar, e morreu afogada.
Os que cuidavam dos porcos fugiram, foram à cidade e contaram tudo, inclusive o que acontecera aos endemoninhados.
Toda a cidade saiu ao encontro de Jesus, e, quando o viram, suplicaram-lhe que saísse do território deles” (Mateus 8: 28-34).
Amanhã, dia 2 de Fevereiro, será o Super Bowl, o delírio da publicidade.
Quando o corpo incomoda a alma
Avoir un corps, c’est la grande menace pour l’esprit (Marcel Proust, Le temps retrouvé, NRF, 1927).

O corpo fala. Não se cala. E grita! Dores, avisos, urgências e avarias; a alma não sossega. A quem tem o purgatório em vida, apetece-lhe cegar os sentidos, pontapear o mundo e puxar o paraíso pelos cabelos.
A Bíblia permite várias interpretações. No Génesis, Adão e Eva andavam nus. Mal comeram a maçã, procuraram folhas de figueira para se resguardar. Foi nesse preparo que Deus os encontrou. O primeiro castigo não foi o trabalho, nem o parto, mas o corpo! Acontece zangar-me com o corpo. E não adianto nada.
A canção Child in Time, dos Deep Purple, vem, já tardava, a talhe de foice.
Superstar

Recorremos à linguagem religiosa para dizer o mundo e a vida. Confessada ou inconfessadamente, latente ou patente. No anúncio do artigo precedente (Receitas Milagrosas), o religioso permanecia latente, subentendido. Na “série bíblica”, da campanha da Renault Argentina, o religioso é patente, explícito.
No primeiro anúncio, um homem (Jesus) aborda uma prostituta, chamada Madalena. Ela lava-lhe os pés (Evangelho de Lucas) e ele perdoa-lhe os pecados (Evangelho de Marcos). Separam-se, Madalena como prostituta perdoada e penitente. O homem (Jesus) desloca-se num Renault Clio dourado (ver Maria Madalena: O Corpo e a Alma).
O segundo anúncio inicia com uma ceia, a “última ceia”. “Jesus” conduz um automóvel com dois ladrões (o bom e o mau?). Capturados pelas autoridades, os automóveis formam uma cruz. O responsável, ao jeito de Pôncio Pilatos, lava as mãos. “Jesus” ressurge ao volante de um Renault Clio. Se o primeiro anúncio foca Madalena, este centra-se na crucificação.
No terceiro anúncio, “Jesus” estaciona o Renault Clio e entra numa casa escura tumular. Encontra um idoso despedido da vida. “Jesus” ilumina e anima a casa e o idoso. O idoso chama-se Lázaro. Estamos, sem dúvida, perante uma ressurreição.
Não sei se estes anúncios relevam de uma catequese secularizada ou de uma publicidade evangélica. Alguma coisa será.
Sombras

Alexey Bednij
Por causa dos milagres que os apóstolos faziam, as pessoas colocavam os doentes nas ruas, em camas e esteiras. Faziam isso para que, quando Pedro passasse, pelo menos a sua sombra cobrisse alguns deles. Multidões vinham das cidades vizinhas de Jerusalém trazendo os seus doentes e os que eram dominados por espíritos maus, e todos eram curados. (Acto dos Apóstolos, capítulo 5, versículos 15 e 16).
Perguntei ao meu rapaz, que anda nas engenharias, se era possível tocar a sombra dos outros. “Não, a sombra não é um concreto. Mais, quando pensas que estás a tocar a sombra de outra pessoa é a tua própria sombra que estás a tocar”. O meu rapaz é assim: um quase engenheiro que pensa. Mas a minha vocação são as “ciências moles”. Não diz a Bíblia que o apóstolo cura os enfermos com a sua sombra? Se o milagre se faz pela sombra, não pode o toque da sombra ser erótico? Doutor Freud, o toque na sombra alheia é susceptível de provocar prazer?
Ando a escrever um artigo pontuável. Um artigo “duro” e tenso, que me vai envenenar os próximos dias. Resta-me espalhar disparates no Tendências do Imaginário. Seguem um anúncio em que a sombra se revolta, L’ombre, da Chanel (1993), e duas canções de Mike Oldfield, Shadow on the Wall e Moonlight Shadow, ambas do álbum Crises (1983).
Marca: Chanel. Título: L’ombre. Produção: Pac. Direcção: Jean-Paul Goude. França, 1993.
Mike Oldfield. Shadow on the Wall. Crises. 1983.
Mike Oldfield. Moonlight Shadow. Crises. 1983.
O gosto de gostar
É mais gostoso gostar do que ser gostado. Afeiçoei-me com o tempo a esta ideia. Não deixa de ser uma paráfrase de um pensamento de Jesus Cristo: “Há maior felicidade em dar do que em receber” (Atos dos Apóstolos 20:35).
Na Segunda Epístola aos Coríntios (9:6), Jesus Cristo lembra: “Aquele que semeia pouco também colherá pouco, e aquele que semear com fartura também colherá fartamente”. Insinua-se, agora, a ideia de investimento: semear para colher. Uma dádiva interessada. Ao contrário do primeiro pensamento, este último poderia constar do livro O Caminho da Riqueza, de Benjamin Franklin (1757). Os homens movem-se pelo interesse, incluindo os estúpidos.
Marca: John Lewis. Título: The Journey. Agência: Adam & Eve DDB (London). Direcção: Dougal Wilson. Reino Unido, 2012.
Histórias aos quadradinhos do tempo de D. Afonso Henriques
Quão antigas são as histórias aos quadradinhos? Não me refiro às histórias gravadas, pintadas, esculpidas que remontam às cavernas, aos túmulos egípcios, aos palácios assírios, aos frisos gregos, aos arcos de triunfo e às colunas imperiais dos romanos. Cinjo-me a histórias dispostas em séries de pequenos quadrados ilustrados. Estas histórias têm, no mínimo, 850 anos. Entre 1155 e 1160, foi manuscrito o Livro de Salmos de Canterbury, alvo de várias cópias. Creio existirem bíblias mais antigas com o mesmo esquema de ilustração. De qualquer modo, já existiam histórias aos quadradinhos no tempo de D. Afonso Henriques.
O Livro de Salmos de Canterbury relata várias passagens bíblicas em páginas divididas em quadrados, cada um com sua imagem. A figura 2, dedicado ao Genesis, é acompanhada por uma “legenda” que identifica as imagens (http://www.moleiro.com/fr/livres-bibliques/psautier-anglo-catalan.html). Graças a esta multiplicação das ilustrações, o Livro de Salmos de Canterbury é considerado o manuscrito inglês do séc. XII com maior número de imagens bíblicas (ver, a título de exemplo, as Figuras 3 a 6). Como prova da qualidade das iluminuras, acrescenta-se um pormenor com a imagem de um quadrado (Figura 1).
“Dieu créant la lumière : Fiat lux: dixit Deus, et facta est lux (Gén. 1: 3); Dieu créant l’ étendue entre les eaux : Fecit Deus firmamentum in medio aquarum (Gén. 1: 6); Dieu séparant les eaux de la terre : Congregentur aque, que sub celo sunt, in locum unum et appareat arida (Gén. 1: 9); Dieu créant le Soleil et la Lune : Fecit Deus duo magna luminaria, solem et lunam, et stellas (Gén. 1: 16); Dieu créant les oiseaux et les poissons : Creavit Deus cete grandia atque volatile super terram (Gén. 1: 21); Dieu créant les animaux et Adam à son image : Producat terra animam viventem. Faciamus hominem ad imaginem (Gén. 1: 24, 26); création d’Eve : un ange tend un morceau d’argile à Dieu pour engendrer sa chair : Edificavit costam quam tulerat de Adam in mulierem (Gén. 2: 21-2); Dieu prévient Adam et Eve de l’interdiction de manger les fruits de l’arbre de la connaissance du bien et du mal : Eva. Adam. De fructu sciencie boni et mali ne comedas (Gén. 2: 17); Adam et Eve mangent le fruit, tentés par le serpent : Eva. Serpens decepit me et comedi. Adam(Gén. 2: 13); expulsion d’Adam et Eve du paradis : Ubi ejecti fuerunt de paradiso. Adam. Eva (Gén. 3: 23-4); Adam en train de creuser et Eve en train de filer la laine auprès de leurs enfants : In dolore paries filios. In sudore vultus tui vesceris pane (Gén. 3: 16-19); Dieu repousse l’offrande de Caïn tandis qu’il accepte et bénit celle d’Abel : Abel. Sacrificium. Caym (Gén. 4: 3-5)” (http://www.moleiro.com/fr/livres-bibliques/psautier-anglo-catalan.html).