Sujar faz bem

Free the kids

“As crianças passam menos tempo ao ar livre do que os prisioneiros”

Free the Kids – Dirt is Good, da Persil, é um anúncio bem construído, tecnicamente primoroso, com um enredo surpreendente. À partida, os horários dos reclusos pouco têm a ver com o produto: um detergente. O filme cativa a atenção numa trama de tensão crescente, que a música acentua. Suspenso, o espectador assume a postura de um arqueiro que aponta a flecha e estica a corda sem alvo à vista. Tudo se decripta nos últimos segundos, com a introdução de um lema (Free the Kids – Dirt is Good: as crianças têm direito a estar fora de casa pelo menos tanto tempo quanto os reclusos fora da cela. Acresce um nome, Persil, o reparador da sujidade infantil. Sem esquecer, o emblema, o logótipo da marca. Estão, assim, reunidos os componentes de uma alegoria (Gilles Deleuze, Le Pli: Leibniz et le baroque, 1988).

A alegoria na publicidade, com focagem em temas alheios ao produto, não é recente, mas persiste e alastra-se (ver “Dobras e fragmentos”, in Gonçalves, Albertino, Vertigens, 2009). Dirt is Good apresenta uma especificidade. Propõe uma heterotopia disfórica: a prisão e a falta de liberdade / sujidade. O conceito e o propósito lembram as campanhas da Benetton no tempo do fotógrafo Oliviero Toscani.  Temas tais como a sexualidade, a discriminação, o racismo, a sida, a pena de morte, a fome, o crime e o poder ficaram associados à Benetton. “Dizer Chique com Choque” (Coelho, Maria Zara & Gonçalves, Maria Helena, “Quando chique se diz com choque, Cadernos do Noroeste, 4: 6-7, 1991, pp. 270-282 ) define uma opção num quadro de mediatização do mediatizável. À partida, não se vislumbra uma ligação razoável entre esses temas e as lojas da Benetton. Tão pouco existe uma ligação entre os intervalos ao ar livre dos reclusos e um detergente. Desencantemos! A semiose social é complexa e a publicidade, a alquimia da nova comunicação. Estes anúncios convocam as marcas. Criam imagens de marca. Alegóricos e performativos, estes anúncios logram efeitos extraordinários. Enxertam-se, por exemplo, na memória. Volvidas algumas décadas, recordo o padre a beijar a freira, o moribundo vítima da sida ou a mulher negra a amamentar um bebé branco. Associo-os à Benetton, mas não aos cachecóis, às camisolas e à equipa de Fórmula 1. Recordo muitos anúncios como, por exemplo, os anúncios da Ford com embriões de animais ou da Orange com a população a recuar para reparar o passado. Em contrapartida, confesso não me lembrar da maior parte dos anúncios colocados, nos últimos meses, no Tendências do Imaginário. Pela magia é que vamos! Pelo esquecimento, também.

Marca: Persil: Título: Free the Kids – Dirt is Good. Agência: Mullen Lowe London. Reino Unido, Março 2016.

 

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