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Esperança e resignação

Hope is Power. The Guardian. 2019

Gosto do anúncio Hope is Power, do The Guardian. Uma alegoria bem lapidada. Dispersão ao mínimo e saturação ao máximo: a aflição de uma borboleta fechada dentro de casa, que não baixa as asas. E o vidro quebra-se, num instante milagroso de libertação. Um anúncio sem palavras (as borboletas não falam), excepto o laconismo das duas frases escritas no final do anúncio: Change is possible; Hope is power. Neste tipo de anúncio, a banda sonora é crucial. Revela-se uma excelente escolha a música, despojada, Nothing Changes, de Anaïs Michell, do álbum Hadestown (2010). A duração da canção (0:51) “combina” com a duração do anúncio (1:00).

Marca: The Guardian. Título: Hope is Power. Agência: Uncommon London. Direcção: James Marsh. Reino Unido, Setembro 2019.

O anúncio Hope is Power lembra o anúncio Release Me (2007), da Saab. Vitalista e mais turbulento, Release Me versa sobre os mesmos tópicos: o encarceramento e a vontade de libertação. Retomo-o.

Marca: Saab. Título: Release Me. Agência: Lowe Brindfors, Sweden. Suécia, Junho 2007. Música: Oh Laura.

O robot emocionado

As alegorias são, no reino dos pensamentos, o que as ruínas são no reino das coisas (Walter Benjamin, Origem do Drama Trágico Alemão, 1928)

Perante o anúncio Robot, da Cinemark Hoyts, não hesito em repetir-me: por que motivo no mundo das imagens, sobretudo no que respeita à comunicação emocional, se observa uma propensão para o recurso a máquinas, animais, desenhos animados ou bebés? A repetição parece perda de tempo, mas talvez não seja. Repetir não é pensar o mesmo, repetir é voltar a pensar, ou seja, repensar. Na arte, por exemplo, o papel da repetição é desmedido e criativo.

O espectáculo mediático global tem particular apetência por duas formas estilísticas: o fetiche e a alegoria. Por pouco, escrevia “fetichismo alegórico”.

Por que nos acontece adorar mais a fotografia do que o fotografado? A relíquia do que o santo? Ou, recordando, Freud, a lingerie do que a mulher? No domínio dos símbolos, somos perversos. Os caminhos que nos comovem são desvios obscuros.

O robot do anúncio tem uma paleta expressiva ínfima. Uma espécie de “expressionismo minimalista” ao jeito dos Emoticons.

A par do fetichismo e da alegoria, a focagem afirma-se como uma forma de abordar a realidade. Por aproximação, como no microscópio; por desbaste marginal, como na floresta amazónica. Elimina-se tudo aquilo que, para além da pauta, faz ruído. O rosto humano irradia, a cada instante, uma infinidade de significações; a cabeça de um robot, muito poucas. Importa, pelos vistos, reduzir, ou especializar, os estímulos e convergir para o alvo.

A focagem da parte, em vez do todo, lembra as ruínas. Um pormenor que enferma, à primeira vista, de uma orfandade de sentido. Falta o resto, quase tudo. Mas, paradoxalmente, enquanto partes à deriva, os pormenores afirmam-se como oásis semióticos, mananciais inesgotáveis de sentido. As ruínas falam, por vezes, mais do que o todo. Sentimo-nos desapossados quando uma ruína é restaurada. Na ruína, cavalgam os nossos fantasmas, na obra redonda, acabada, perfeita, pastam, em visita guiada, os olhos de um boi pasmado.

Marca: Cinemark & Hoyts. Título: Robot. Agência: Geometry. Direcção: CLAN. Argentina, Julho 2019.

PS: Não tenho nada contra os robots, tão pouco contra os seus fabricantes e utilizadores. Por sinal, o meu rapaz mais novo está a construir um robot. Dispenso, contudo, que façam de nós robots. Quando termino um texto mais refratário, gosto de o trocar por música. Por exemplo, o Al lis full of love, da Bjork ou o cover, não do The robots, mas do The model (1978), dos Kraftwerk, pelo Balanescu Quartet, ao vivo, em Praga, no ano 2017.

Björk. All is full of love. Homogenic. 1999.
Balanescu Quartet. Cover de The Model, dos Kraftwerk (1978). Mute 2011.

Alegoria das cuecas

opel

Os olhos já viram muito, mas nunca semelhante coisa. Viram anúncios de automóveis que se esquecem de mostrar o automóvel. Mostram, por exemplo, fetos de animais, concluindo com a marca, o emblema e o lema. Tantos! Mas nenhum com cuecas! Surpresa? Sinal que estamos vivos, e o mundo também. Publicitar um automóvel discorrendo, alegoricamente, sobre cuecas é obra. Porventura, uma obra genial.

Marca: Opel. Título: Ride Comfortably. UncleGrey, Copenhagen. Direcção: Laerk Hertoni. Dinamarca, Setembro 2016.

Sujar faz bem

Free the kids

“As crianças passam menos tempo ao ar livre do que os prisioneiros”

Free the Kids – Dirt is Good, da Persil, é um anúncio bem construído, tecnicamente primoroso, com um enredo surpreendente. À partida, os horários dos reclusos pouco têm a ver com o produto: um detergente. O filme cativa a atenção numa trama de tensão crescente, que a música acentua. Suspenso, o espectador assume a postura de um arqueiro que aponta a flecha e estica a corda sem alvo à vista. Tudo se decripta nos últimos segundos, com a introdução de um lema (Free the Kids – Dirt is Good: as crianças têm direito a estar fora de casa pelo menos tanto tempo quanto os reclusos fora da cela. Acresce um nome, Persil, o reparador da sujidade infantil. Sem esquecer, o emblema, o logótipo da marca. Estão, assim, reunidos os componentes de uma alegoria (Gilles Deleuze, Le Pli: Leibniz et le baroque, 1988).

A alegoria na publicidade, com focagem em temas alheios ao produto, não é recente, mas persiste e alastra-se (ver “Dobras e fragmentos”, in Gonçalves, Albertino, Vertigens, 2009). Dirt is Good apresenta uma especificidade. Propõe uma heterotopia disfórica: a prisão e a falta de liberdade / sujidade. O conceito e o propósito lembram as campanhas da Benetton no tempo do fotógrafo Oliviero Toscani.  Temas tais como a sexualidade, a discriminação, o racismo, a sida, a pena de morte, a fome, o crime e o poder ficaram associados à Benetton. “Dizer Chique com Choque” (Coelho, Maria Zara & Gonçalves, Maria Helena, “Quando chique se diz com choque, Cadernos do Noroeste, 4: 6-7, 1991, pp. 270-282 ) define uma opção num quadro de mediatização do mediatizável. À partida, não se vislumbra uma ligação razoável entre esses temas e as lojas da Benetton. Tão pouco existe uma ligação entre os intervalos ao ar livre dos reclusos e um detergente. Desencantemos! A semiose social é complexa e a publicidade, a alquimia da nova comunicação. Estes anúncios convocam as marcas. Criam imagens de marca. Alegóricos e performativos, estes anúncios logram efeitos extraordinários. Enxertam-se, por exemplo, na memória. Volvidas algumas décadas, recordo o padre a beijar a freira, o moribundo vítima da sida ou a mulher negra a amamentar um bebé branco. Associo-os à Benetton, mas não aos cachecóis, às camisolas e à equipa de Fórmula 1. Recordo muitos anúncios como, por exemplo, os anúncios da Ford com embriões de animais ou da Orange com a população a recuar para reparar o passado. Em contrapartida, confesso não me lembrar da maior parte dos anúncios colocados, nos últimos meses, no Tendências do Imaginário. Pela magia é que vamos! Pelo esquecimento, também.

Marca: Persil: Título: Free the Kids – Dirt is Good. Agência: Mullen Lowe London. Reino Unido, Março 2016.

 

Bolas

Bonds 2A roupa interior é um desafio para a publicidade, pela sobrecarga simbólica, sobretudo no caso dos homens. Existem formas de contornar este obstáculo: a estilização, o eufemismo, a metáfora, a metonímia, a alegoria, a animação, a personificação… Artes de dizer de outro modo, porventura mais eficiente, aquilo que não se quer dizer directamente. Neste anúncio, dois cestos pendurados, em forma de bola de futebol americano, albergam duas personagens “beckettianas” que só encontram alívio e conforto numas cuecas da marca Bonds.

Marca: Bonds. Título: The Boys – Part 1: Impact. Agência: Clemenger BBDO (Melbourne). Direcção: Tony Rogers. Austrália, Outubro 2015.

Deixa-me rir!

Coca cola smileO que une uma dúzia de bebés risonhos e a Coca-Cola? Aproximar aquilo que tudo separa é uma arte. A arte, por exemplo, da alegoria. Uma coisa puxa outra. Quanto mais estranhas, maior o efeito. Para Gilles Deleuze, a alegoria é caracterizada por três elementos: o símbolo, o lema e o nome (ver Dobras e Fragmentos), Pois, no final do anúncio, lá aparecem em pose, como num retrato de família, o símbolo (a garrafa), o lema (choose happiness) e o nome (Coca-Cola).

Marca: Coca-Cola. Título: Choose to smile. Agência: Ogilvy & Mather Amsterdam. Direcção: Marleen Jonkman / Czar. Holanda, Maio 2015.

A Pedra Filosofal na Era Electrónica

apple

Acaba de sair um anúncio da Apple, Dreams, centrado na versatilidade e nas potencialidades do iPhone 5s. Trata-se de uma opção clássica. Pelos vistos, o iPhone 5s é mais do que um canivete suíço; é um canivete suíço electrónico. Se o MacGyver possuísse um iPhone 5s, os episódios da série seriam mais curtos. O anúncio culmina, porém, com uma frase banal que é um golpe de mestre: “You are more powerful than you think”!

Um capítulo do livro Vertigens (download em pdf: Dobras e Fragmentos) releva que muitos anúncios ganham em ser encarados como alegorias. Por outro lado, um artigo deste blogue (http://tendimag.com/2014/06/14/todos-tugas-chamamento/) chama a atenção para uma tendência recente na publicidade: o anúncio como chamamento. Mais do que o produto ou do que a marca, o anúncio pretende caracterizar o consumidor. “O anúncio não é teu, tu és o anúncio, mais precisamente, tu és o anunciado.”

Neste novo anúncio da Apple, o essencial não é, afinal, o canivete suíço versão iPhone 5s. O anúncio tem ares de pedra filosofal da idade electrónica. O anúncio é, mas não é, uma descrição do produto. O anúncio é, mas não é, uma alegoria da marca. O conteúdo é uma alegoria do consumidor. A marca é uma alegoria do consumidor. Ambos profetizam o que ele é e o que ele pode. O anúncio é, assim, uma alegoria do consumidor. A aura do produto e da marca adere à pele do consumidor, “mais poderoso do que imagina”.

Marca: Apple – iPhone 5s. Título: Dreams. Agência: TBWA / Media Arts Lab (Los Angeles). USA, Agosto 2014.

Parkour: A Liberdade em Movimento

Land Rover. Roam FreeHoje, propomos um parkour a quatro, quase dança ao ar livre, temperado com slow motion e com o toque de Noam Murro. Um anúncio da Land Rover. Viram o carro? Não é preciso, basta sentir… O que interessa é a matriz, sugerida pela alegoria. Quatro jovens (4×4 versão humana) entregam-se a um Free Running (modalidade mais artística do parkour). Vencem todos os obstáculos em todos os terrenos, com prazer, em liberdade e em beleza. O resto é boa música: Johann Sebastian Bach, mais uma componente barroca.

Marca: Land Rover. Título: Roam Free. Agência: Y&R New York. Direção: Noam Murro. USA, Abril 2013.

Homens e Bestas 2

No que respeita à fisiognomonia, Giambattista della Porta não foi um caso isolado. O imaginário da Idade Média destacou-se pela proximidade, híbrida ou não, entre seres humanos e animais. Gostaria de mencionar três grandes vultos da história da arte que também abordaram o tema: Ticiano Vecellio, Peter Paul Rubens e Charles Le Brun.

Ticiano. Alegoria da prudência. C. 1565-1570

Comecemos, neste artigo, com Ticiano Vecellio. Falecido em 1576, pintou entre 1565 e 1570, alguns anos antes do tratado de Giambattista della Porta, a Alegoria da Prudência. O quadro comporta dois níveis. Em cima, três rostos humanos, dispostos segundo as idades da vida: um idoso, à esquerda, de perfil na sombra; um adulto, ao centro, de face; e um jovem, à direita, de perfil, algo ofuscado pela luz. Há quem sustente, incluindo Erwin Panofsky, que os retratados são, da esquerda para a direita, o próprio Ticiano, seu filho Orazio e o seu jovem primo Marco. Em baixo, figuram três cabeças de animais alinhadas do mesmo modo que os três humanos: o lobo corresponde ao idoso, o leão ocupa o centro, a direita sobra para o cão. Para além destes dois reinos ou ordens, o quadro encerra mais duas dimensões. Em primeiro lugar, o tempo: passamos, gradualmente, do ancião para o jovem, do passado para o futuro. Em segundo lugar, a dimensão comportamental ou “psicológica”. A “prudência” assenta, da esquerda para a direita, em três pilares: a memória, a inteligência e a previdência. O lobo recorda ciosamente as suas presas, e o ancião as proezas. As figuras centrais, incluindo o leão, concentram-se, rápidas e vorazes, no imediato. Estão no vértice da ação. À direita, o jovem e o cão aguardam o futuro, afagam esperanças. O seguinte mote acompanha o quadro: “Com a experiência do passado, o presente age com prudência, para não comprometer a ação futura”.

Em próximo artigo, contemplaremos os outros dois “vultos da história da arte” anunciados.