Dom Caio, o Salvador

Manuel Casimiro. Sem título. 1987.

Manuel Casimiro. Sem título. 1987.

Um dia virá, envolto em nevoeiro, um alfaiate, terror das moscas. “A cavalo e sem cair”, munido de dedal e agulha, vai costurar os cortes das tesouras orçamentais e reconquistar os sete castelos aos usurários dos Mercados. Sem Dom Caio, a vida é uma Aljuderrota. Mas, no Panteão nacional, depois dos mata-moiros, dos expulsa-judeus, dos mata-frades e dos esfola-funcionários, repousarão, um dia, os mata-moscas. Entretanto, a bandeira nacional sangra, como no quadro de Manuel Casimiro (1987). Resta fechar os olhos e ver! Ver Dom Caio aos gritos, “eu caio, eu caio”, e o povo atrás em coro, “nós também, nós também”.

Henrique Monteiro. Cortugal. Notícias.sapo.pt. 16.09.2013

Henrique Monteiro. Cortugal. Notícias.sapo.pt. 16.09.2013

Dom Caio

Era um alfaiate muito poltrão, que estava trabalhando à porta da rua; como ele tinha medo de tudo, o seu gosto era fingir-se de valente. Vai de uma vez viu muitas moscas juntas e de uma pancada matou sete. Daí em diante não fazia senão gabar-se:
– Eu cá mato sete de uma vez!
Ora o rei andava muito aparvalhado, porque lhe tinha morrido na guerra o seu general Dom Caio, que era o maior valente que havia, e as tropas do inimigo já vinham contra ele, porque sabiam que não tinha quem mandasse a combatê-las. Os que ouviram o alfaiate andar a dizer por toda a parte: “Eu cá mato sete de uma vez!” foram logo metê-lo no bico do rei, que se lembrou de que quem era tão valente seria capaz de ocupar o posto de Dom Caio.
Veio o alfaiate à presença do rei que lhe perguntou:
– É verdade que matas sete de uma vez?
– Saberá Vossa Majestade que sim.
– Então nesse caso vais comandar as minhas tropas e atacar os inimigos que me estão cercando.
Mandou vir o fardamento de dom Caio e fê-lo vestir ao alfaiate, que era muito baixinho, e que ficou com o chapéu de bicos enterrado até às orelhas; depois disse que trouxessem o cavalo branco de Dom Caio para o alfaiate montar. Ajudaram-no a subir para o cavalo, e ele já estava a tremer como varas verdes; assim que o cavalo sentiu as esporas botou à desfilada, e o alfaiate a gritar:
– Eu caio, eu caio!
Todos os que o ouviam por onde passava diziam:
– Ele agora diz que é o Dom Caio; já temos homem.
O cavalo, que andava acostumado às escaramuças, correu para o sítio em que se combatia, e o alfaiate com medo de cair ia agarrado às crinas, a gritar como um desesperado:
– Eu caio, eu caio!
O inimigo, assim que viu o cavalo branco do general valente e ouviu o grito: “Eu caio, eu caio!”, conheceu o perigo em que estava, e disseram os soldados uns para os outros:
– Estamos perdidos, que lá vem o Dom Caio; lá vem o Dom Caio!
E botaram a fugir à debandada; os soldados do rei foram-lhes no encalço e mataram-nos, e o alfaiate ganhou assim a batalha só em agarrar-se ao pescoço do cavalo e em gritar: “Eu caio”.
O rei ficou muito contente com ele e, em paga da vitória, deu-lhe a princesa em casamento, e ninguém fazia senão louvar o sucessor de Dom Caio pela sua coragem.

Teófilo Braga, Contos tradicionais do povo português, 1ª ed. 1883, Lisboa, Publicações Dom Quixote, 1999, p. 215.

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