Porcos, Famintos e Promíscuos

Festival de Vilar de Mouros. 7 e 8 de Agosto de 1971

Tomei conhecimento, via Abel Coentrão (https://www.facebook.com/abel.coentrao/posts/535112596558538?notif_t=close_friend_activity), deste relatório sobre o Festival de Vilar de Mouros, de Agosto de 1971, redigido por um informador da PIDE/DGS, do tempo de Marcelo Caetano. Este festival ficaria conhecido como o Woodstock português. O relatório constitui um documento ímpar. Da leitura, depreende-se que os participantes no festival eram porcos, estavam famintos e andavam com cio. O “elemento informativo” carrega nestas três teclas. É verdade que a “praga de gafanhotos” que “se lançou sobre as hortas próximas” ainda não se apagou da memória local. É também verdade que um cobertor era um luxo. Quem tinha um, que o agarrasse bem na ponta que os “hóspedes” ainda não tinham ocupado. Quanto ao resto… Este relatório é um bom exemplo de discurso da má língua. Seja como for, o primeiro festival de Vilar de Mouros distinguiu-se como uma andorinha solitária da “primavera marcelista”. Pelos vistos, a incorporação do vídeo que segue foi desactivada. Dá para ver na mesma carregando em “ver no YouTube”.

Elton John, dia 8, Manfred Mann’s Earth Band, dia 7, e Amália Rodrigues, dia 15, constavam do cartaz. Elton John era a estrela e os Manfred Mann’s Earth Band deram espectáculo. Por esse ou por outro motivo, Portugal foi um dos países onde colheram mais sucesso. Em 1971, já eram uma banda consagrada, A canção MIghty Queen (1968), escrita por Bob Dylan, esteve várias semanas topo das tabelas  (é a música do vídeo 1 com imagens do festival de Vilar de Mouros). Assisti, oito anos mais tarde, em 1979, a um concerto dos Manfred Mann’s Earth Band, em Paris. Uma experiência radicalmente diferente. A interpretação, o ambiente e o público resultaram impecáveis. Nem sombra de  “promiscuidade”, “indecência” ou “multidão de famintos”; ninguém “se aliviou no recinto do espectáculo” e as hortas das vizinhas ficaram intactas. Um cobertor, no entanto, teria dado jeito.

“Informação nº 226-C.I.(I)

Distribuição Presidência do Conselho, Ministério do interior, Ministério da Educação Nacional

Assunto: Festival de música “Pop” em Vilar de Mouros

A seguir se transcreve o texto de uma informação redigida por um nosso elemento informativo que assistiu ao “festival” em questão, que teve lugar nos dias 7 e 8 do corrente, a qual se reproduz na íntegra, para não alterar os detalhes que foram alvo do seu espírito de observação:

“Dias antes do festival, foram distribuídos, nas estradas do País e nas estradas espanholas de passagem de França para Portugal, panfletos pedindo aos automobilistas que dessem boleias aos indivíduos que iam ver o festival.

No 1º dia, o espectáculo começou às 18h00 e prolongou-se até às 4 da manhã.
Ao anoitecer, o organizador, um tal Barge, anunciou que tinham sido vendidos 20 mil bilhetes (a 50$00 cada).
Esperavam vender 50 mil bilhetes para cobrir as despesas, que seriam aproximadamente a 2.500 contos.
Diziam que tiveram de mandar vir o conjunto Manfred Mann de Inglaterra, mas parece que estava no Algarve, e por isso, a despesa com eles não foi tão grande como parecia.

Um dos cantores, Elton John, causou desde o começo má impressão, com os seus modos soberbos e as suas exigências: carro de luxo para as deslocações, quartos de luxo para os acompanhantes e guarda-costas, etc.
O recinto do festival era uma clareira cercada de eucaliptos, com um taipal à volta e uma grade de arame do lado do ribeiro.

Na noite de 7 estavam muitos milhares de pessoas e muita gente dormiu ali mesmo, embrulhada em cobertores e na maior promiscuidade.
Entre outros havia:
crianças de olhar parado indiferentes a tudo
grupos de homens, de mão na mão, a dançar de roda
um rapaz deitado, com as calças abaixadas no trazeiro
um sujeito tão drogado que teve de ser levado em braços, com rigidez nos músculos
relações sexuais entre 2 pares, todos debaixo do mesmo cobertor na zona mais iluminada
sujeitos que corriam aos gritos para todos os lados
bichas enormes a comprar laranjadas e esperando a vez nas retretes (havia 7 ou 8 provisórias) mas apesar disso, houve quem se aliviasse no recinto do espectáculo.
porcaria de todo o género no chão (restos de comida, lama, urina) e pessoas deitadas nas proximidades

Viam-se algumas bandeiras. Uma vermelha com uma mão amarela aberta no meio (um dos símbolos usados na América pelos anarquistas); outra branca, com a inscrição “somos do Porto” com raios a vermelho e uma estrela preta.

A população da aldeia, e de toda a região, até Viana do Castelo, a uns 30 km de distância, estava revoltada contra os “cabeludos” e alguns até gritavam de longe ao passar “vai trabalhar”. Foram vistos alguns a comer com as mãos e a limparem os dedos à cabeleira.
Viam-se cenas indecentes na via pública, atrás dos arbustos e à beira da estrada.

Em Viana do Castelo dizia-se que os “hippies” tinham comprado agulhas e seringas nas farmácias da cidade.
Havia muitos estudantes de Coimbra, e outros que talvez fossem de Lisboa ou do Porto. Alguns passaram a noite em Viana do Castelo em pensões, e viam-se alguns de muito mau aspecto, parece que vindos de Lisboa, que ficaram numa pensão.

Houve gritos de Angola é… (qualquer coisa) durante a actuação do conjunto Manfred Mann (de que faz parte um comunista declarado, crê-se que chamado Hugg).
Fora do recinto, junto do rio e de uma capela, havia muitas tendas montadas e gente a dormir encostada a árvores ou muros e embrulhada em cobertores.
Houve grande confusão junto às portas de entrada.
Havia quatro bilheteiras em funcionamento permanente e muito trânsito.

Toda aquela multidão de famintos, sem recursos para adquirir géneros alimenticios indispensáveis, como se de uma praga de gafanhotos se tratasse, se lançou sobre as hortas próximas colhendo batatas e outros produtos hortícolas, causando assim, grandes contrariedades aos seus proprietários, muitos deles de débeis recursos económicos.

26-8-71”.

O álbum mais marcante dos Manfred Mann’s Earth Band é, provavelmente,  Nithingales and Bombers, de 1975. Spirits in the Night é a primeira faixa.

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