Um silêncio de morte: Goya.

Goya. O Fuzilamento de 3 de Maio de 1808. 1814.

Goya. O Fuzilamento de 3 de Maio de 1808. 1814.

Goya ficou surdo em 1793, aos 46 anos de idade. Faleceu volvidos 35 anos, em 1828, com 82 anos. Pintou e gravou até à morte. Goya desfrutava, por altura da doença, de excelente reputação junto da corte e da aristocracia. No reinado de Carlos IV, foi nomeado “Primeiro Pintor da Câmara do Rei”. Não lhe faltavam encomendas. Era um homem abastado. Com a surdez, a vida de Goya altera-se significativamente. Em busca de liberdade de criação, aposta na produção para o mercado. A série Caprichos foi um fracasso. Granjeou-lhe a animosidade da Igreja e da Santa Inquisição. A primeira edição da série Os Desastres da Guerra ocorreu apenas em 1863, 35 anos após a sua morte. As pinturas negras só foram trasladadas das paredes da Casa del Sordo para tela entre 1874 e 1878. Cada vez mais isolado, a sua obra torna-se sombria mas expressiva.

Goya é o artista da morte. Rivaliza com Hans Baldung (1480-1545); James Ensor (1860-1949), Otto Dix (1891-1969) ou Felix Nussbaum (1904-1944). O Três de Maio de 1808 em Madrid (1814) é uma obra-prima universal, representação ímpar da guerra, da violência e da morte. Curiosamente, não encontrei na obra de Goya nenhuma vanitas, segundo os padrões tradicionais: caveiras descarnadas em naturezas mortas ou associadas a figuras consagradas, como São Jerónimo ou Santa Maria Madalena.

Na obra de Goya, a morte não é seca, é húmida, com pele, carne, ossos e, eventualmente necrófilos (Schmit, Juliana, “O imaginário do cadáver em decomposição”, Ilha do Desterro v. 68, nº 3, p. 083-097, Florianópolis, set/dez 2015, p. 84). Principal protagonista dos quadros e das gravuras de Goya, a morte tem vida. Por um lado, os cadáveres de Goya lembram os transi; Por outro, os corpos vivos acusam o toque da morte, como nas pinturas de Hans Baldung. Não é preciso estar morto para andar com a morte.

Goya. Dois velhos a comer sopa, 1819-1823

Goya. Dois velhos a comer sopa, 1819-1823

No seu conjunto, a obra de Goya é uma vanitas. Há personagens cujas cabeças deixam entrever caveiras e corpos em que a pele e a carne não escondem o esqueletos: Os Dois velhos a comer a sopa, o rosto do Tio Paquete, os corpos das Velhas.

Nas estampas 3 (Aqui tampoco) e 56 (Al cementerio) dos Desastres da Guerra, as personagens centrais têm feições cadavéricas, quase se confundindo com uma imagem da morte. Se o corpo vivo é um espectro, o corpo morto é um desassossego. Comunica e acusa. Incomoda. Vêem-se cadáveres nauseabundos nas estampas 12 (Para eso habeis nacido) e 18 (Enterrar e callar); requintes da barbárie humana nas estampas 16 (se aprovechan),  37 (Esto es peor) e 39 (Grande Hazaña com muertos); nem os animais  dão tréguas aos mortos (estampa 73, Las resultas).

As 82 estampas da série Os desastres da guerra (1810-1815) foram concebidas durante a Guerra da Independência (1808-1814) entre espanhóis e franceses. Arriscando o  anacronismo, pode-se encarar Goya como um repórter de guerra fora do teatro das operações. Não fotografa mas cria estampas, segundo a sua arte e a sua visão dos acontecimentos. Não toma partido. O que é raro. Sendo mais exacto, toma o partido das vítimas, espanholas ou francesas. Para Goya, a guerra é mortífera: destrói os vivos e os mortos; degrada os corpos e os espíritos. A guerra desperta os monstros e deprava a dignidade humana. As estampas  ilustram este eclipse da humanidade: violações (estampa 11, Ni por esas), pilhagem e profanação dos cadáveres (estampa 16, Se aprovecham), desde o calçado e as roupas até aos testículos (estampa  aos dentes (Caprichos, estampa 12, A caza de dientes).

Ceder a uma tentação é pecado ou salvação? Aspirar, por exemplo, a aceder à essência de uma obra a partir de um elemento particular, uma espécie de chave mestra. Há quem sustente que a estampa 69 (Nada. Ello dirá) dos Desastres de Guerra possui essa virtude. Um cadáver, parcialmente fora do túmulo,  escreve, numa placa, a palavra “nada”. Entre corpos e rostos grotescos, vislumbra-se uma balança com os pratos invertidos, sinal de ausência de justiça.

Goya. Los Desastres de la Guerra - No. 69 - Nada. Ello dirá

Goya. Los Desastres de la Guerra – No. 69 – Nada. Ello dirá

Importa resgatar o quadro de Juan de Valdés Leal, Finis Gloriae Mundi (1672), que Goya, supostamente, conhecia. Numa cripta, o corpo de um bispo , repasto de insectos, é rodeado por outros cadáveres, igualmente em decomposição e por esqueletos, caveiras e ossos Ao centro, uma balança pondera os vícios (Ni más) e as virtudes (Ni menos). Em suma, os quadros de Goya e de Valdés Leal confrontam-nos com corpos e balanças, num entorno fantasmagórico. Como apraz a um transi, em ambos os casos figura uma inscrição: “Finis Gloriae Mundi” e “Nada”, as quatro letras do vazio do mundo.

Juan de Valdés Leal. Finis Gloriae Mundi, 1672

Juan de Valdés Leal. Finis Gloriae Mundi, 1672

A propósito da estampa 69 (Nada. Ello dirá) dos Desastres de Guerra, Laurent Matheron, um dos primeiros biógrafos de Goya, conta o seguinte episódio:

Em muitas ocasiões, o artista formulou claramente a sua profissão de fé. Um dia, o bispo de Granada, de visita ao seu atelier, na sua Casa de Campo, parou diante de um quadro representando um espectro meio saído do túmulo escrevendo com a sua mão descarnada, sobre uma página que os seus olhos cavados não podiam ver, a palavra : Nada! Fantasmas, com formas indecisas, povoavam o fundo da tela; um deles segurava balanças cujos pratos vazios estavam invertidos. O bispo contemplou durante algum tempo esta composição e exclama: Nada! Nada! Ideia sublime! Vanitas vanitatum, et omnia vanitas! Goya, já velho e surdo, pergunta a um dos assistentes o que tinha dito o Prelado. Ah! exclama por seu turno, desatando a rir, pobre Monsenhor! como ele me compreendeu (Matheron, Laurent, 1858, Goya, Paris, Schulz et Thuillié, sem paginação. Minha tradução a partir da edição original).

Na arte funerária proliferam as inscrições com avisos e pedidos. Não conheço nenhuma tão lapidar como o “nada” de Goya. Não somos nada e nada seremos. Quando muito, lixo. Basura.

Para terminar, recomendo o pequeno documentário Francisco de Goya. Los desastres de la guerraÁlbum de Juan Agustín Ceán Bermúdez, The British Museum, dirigido por José Mauel Matillam, 2008.

 

One response to “Um silêncio de morte: Goya.”

  1. Beatriz Martins says :

    Muita informação, para a minha pequena cabeça. Mas, há uma evidência irrefutável – O realismo das obras de Goya, não poupam a verdade da correlação vida/morte.

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