Um silêncio de morte: Goya.
Goya ficou surdo em 1793, aos 46 anos de idade. Faleceu volvidos 35 anos, em 1828, com 82 anos. Pintou e gravou até à morte. Goya desfrutava, por altura da doença, de excelente reputação junto da corte e da aristocracia. No reinado de Carlos IV, foi nomeado “Primeiro Pintor da Câmara do Rei”. Não lhe faltavam encomendas. Era um homem abastado. Com a surdez, a vida de Goya altera-se significativamente. Em busca de liberdade de criação, aposta na produção para o mercado. A série Caprichos foi um fracasso. Granjeou-lhe a animosidade da Igreja e da Santa Inquisição. A primeira edição da série Os Desastres da Guerra ocorreu apenas em 1863, 35 anos após a sua morte. As pinturas negras só foram trasladadas das paredes da Casa del Sordo para tela entre 1874 e 1878. Cada vez mais isolado, a sua obra torna-se sombria mas expressiva.
Goya é o artista da morte. Rivaliza com Hans Baldung (1480-1545); James Ensor (1860-1949), Otto Dix (1891-1969) ou Felix Nussbaum (1904-1944). O Três de Maio de 1808 em Madrid (1814) é uma obra-prima universal, representação ímpar da guerra, da violência e da morte. Curiosamente, não encontrei na obra de Goya nenhuma vanitas, segundo os padrões tradicionais: caveiras descarnadas em naturezas mortas ou associadas a figuras consagradas, como São Jerónimo ou Santa Maria Madalena.
Na obra de Goya, a morte não é seca, é húmida, com pele, carne, ossos e, eventualmente necrófilos (Schmit, Juliana, “O imaginário do cadáver em decomposição”, Ilha do Desterro v. 68, nº 3, p. 083-097, Florianópolis, set/dez 2015, p. 84). Principal protagonista dos quadros e das gravuras de Goya, a morte tem vida. Por um lado, os cadáveres de Goya lembram os transi; Por outro, os corpos vivos acusam o toque da morte, como nas pinturas de Hans Baldung. Não é preciso estar morto para andar com a morte.
No seu conjunto, a obra de Goya é uma vanitas. Há personagens cujas cabeças deixam entrever caveiras e corpos em que a pele e a carne não escondem o esqueletos: Os Dois velhos a comer a sopa, o rosto do Tio Paquete, os corpos das Velhas.
Nas estampas 3 (Aqui tampoco) e 56 (Al cementerio) dos Desastres da Guerra, as personagens centrais têm feições cadavéricas, quase se confundindo com uma imagem da morte. Se o corpo vivo é um espectro, o corpo morto é um desassossego. Comunica e acusa. Incomoda. Vêem-se cadáveres nauseabundos nas estampas 12 (Para eso habeis nacido) e 18 (Enterrar e callar); requintes da barbárie humana nas estampas 16 (se aprovechan), 37 (Esto es peor) e 39 (Grande Hazaña com muertos); nem os animais dão tréguas aos mortos (estampa 73, Las resultas).
As 82 estampas da série Os desastres da guerra (1810-1815) foram concebidas durante a Guerra da Independência (1808-1814) entre espanhóis e franceses. Arriscando o anacronismo, pode-se encarar Goya como um repórter de guerra fora do teatro das operações. Não fotografa mas cria estampas, segundo a sua arte e a sua visão dos acontecimentos. Não toma partido. O que é raro. Sendo mais exacto, toma o partido das vítimas, espanholas ou francesas. Para Goya, a guerra é mortífera: destrói os vivos e os mortos; degrada os corpos e os espíritos. A guerra desperta os monstros e deprava a dignidade humana. As estampas ilustram este eclipse da humanidade: violações (estampa 11, Ni por esas), pilhagem e profanação dos cadáveres (estampa 16, Se aprovecham), desde o calçado e as roupas até aos testículos (estampa aos dentes (Caprichos, estampa 12, A caza de dientes).
Ceder a uma tentação é pecado ou salvação? Aspirar, por exemplo, a aceder à essência de uma obra a partir de um elemento particular, uma espécie de chave mestra. Há quem sustente que a estampa 69 (Nada. Ello dirá) dos Desastres de Guerra possui essa virtude. Um cadáver, parcialmente fora do túmulo, escreve, numa placa, a palavra “nada”. Entre corpos e rostos grotescos, vislumbra-se uma balança com os pratos invertidos, sinal de ausência de justiça.
Importa resgatar o quadro de Juan de Valdés Leal, Finis Gloriae Mundi (1672), que Goya, supostamente, conhecia. Numa cripta, o corpo de um bispo , repasto de insectos, é rodeado por outros cadáveres, igualmente em decomposição e por esqueletos, caveiras e ossos Ao centro, uma balança pondera os vícios (Ni más) e as virtudes (Ni menos). Em suma, os quadros de Goya e de Valdés Leal confrontam-nos com corpos e balanças, num entorno fantasmagórico. Como apraz a um transi, em ambos os casos figura uma inscrição: “Finis Gloriae Mundi” e “Nada”, as quatro letras do vazio do mundo.
A propósito da estampa 69 (Nada. Ello dirá) dos Desastres de Guerra, Laurent Matheron, um dos primeiros biógrafos de Goya, conta o seguinte episódio:
Em muitas ocasiões, o artista formulou claramente a sua profissão de fé. Um dia, o bispo de Granada, de visita ao seu atelier, na sua Casa de Campo, parou diante de um quadro representando um espectro meio saído do túmulo escrevendo com a sua mão descarnada, sobre uma página que os seus olhos cavados não podiam ver, a palavra : Nada! Fantasmas, com formas indecisas, povoavam o fundo da tela; um deles segurava balanças cujos pratos vazios estavam invertidos. O bispo contemplou durante algum tempo esta composição e exclama: Nada! Nada! Ideia sublime! Vanitas vanitatum, et omnia vanitas! Goya, já velho e surdo, pergunta a um dos assistentes o que tinha dito o Prelado. Ah! exclama por seu turno, desatando a rir, pobre Monsenhor! como ele me compreendeu (Matheron, Laurent, 1858, Goya, Paris, Schulz et Thuillié, sem paginação. Minha tradução a partir da edição original).
Na arte funerária proliferam as inscrições com avisos e pedidos. Não conheço nenhuma tão lapidar como o “nada” de Goya. Não somos nada e nada seremos. Quando muito, lixo. Basura.
Para terminar, recomendo o pequeno documentário Francisco de Goya. Los desastres de la guerra. Álbum de Juan Agustín Ceán Bermúdez, The British Museum, dirigido por José Mauel Matillam, 2008.
Muita informação, para a minha pequena cabeça. Mas, há uma evidência irrefutável – O realismo das obras de Goya, não poupam a verdade da correlação vida/morte.