A cabeça entre as orelhas. Paródia de uma semiótica do corpo
O corpo é o nosso maior banco de símbolos. Com ele nos significamos e com ele significamos o mundo. É um reportório pautado pela assimetria; privilegia umas partes em detrimento de outras. O alto e o baixo constituem uma das dimensões mais discriminantes: o alto é elevado e o baixo rasteiro; em cima, no peito e na face, mora a honra, em baixo, no ventre e no sexo, o pecado; a cabeça decide e as pernas seguem. Também existem membros superiores e membros inferiores, as mãos ágeis e os pés pesados. Alguém imagina as figuras de Deus e de Adão na Capela Sistina a quase se tocarem com os dedos dos pés? A criação do mundo começou com o verbo e não com um pontapé, não obstante a teoria do Big Bang. Embora sejam o sustento do corpo, os pés poucos elogios granjeiam. Submetemo-los, quando muito, ao duplo vexame da ironia: “pensar com os pés”. Os pés são, por vocação, estúpidos, pelo menos assim o entendem os franceses: “bête comme un pied”. “Pisar” é palavra feia. Até quando se pisam uvas, se está a perder tempo. Os pés não são elegantes nem edificantes. O seu rating estético e ético está pelas águas da amargura. Na pintura ocidental pós-medieval só sobressai um subgénero pedestre, as patas que ostentam a marca do inferno: os demónios, os sátiros… No nosso imaginário, os pés são, apesar da sua utilidade, um aborto da criação divina.
Mas não é só a altura que hierarquiza, a horizontalidade também conta: a parte da frente opõe-se à parte de trás. À frente, a luz; atrás, a sombra (vá-se lá saber por quê). A parte da frente é o nosso espelho, a nossa fachada. A parte de trás é cega e vulnerável. Tudo o que é mal atira-se para trás das costas. Como quando se encolhem os ombros. A nossa retaguarda alberga a nossa lixeira portátil. Tudo o que é limpo e digno estaciona à nossa frente, sobretudo no peito e na face.
Onde há vertical e horizontal também costuma haver diagonal. O supra-sumo da virtude está na face, ou seja, em cima e à frente. Em baixo e atrás, está o traseiro, o cúmulo das desgraças. É na diagonal que os extremos se exacerbam. Percorrendo-a, descemos dos píncaros para os abismos do invólucro corporal. Não é por acaso que a expressão “cara de cu” representa um dos piores insultos. Convoca os dois extremos numa dinâmica de rebaixamento: o alto frontal é degradado para o baixo traseiro.
A oposição entre interior e exterior oferece-se como uma dimensão adicional da semiótica corporal. Quem fala de interior e de exterior fala não só de limites mas também de passagens: a boca, o nariz, os ouvidos, os olhos, o sexo, o ânus, os poros… E quem fala de passagens, fala de movimentos: engolir, respirar, urinar… Ressalvando assinaláveis excepções, na maioria dos casos, o que entra no corpo é bom e o que dele sai é mau. Beber, comer e inalar são normalmente associados a actos positivos. Mas nem sempre é assim: os vírus e o fumo do tabaco são considerados nocivos. Esta avaliação varia cultural e historicamente: no século XVII, temia-se que a água infiltrada pelos poros alagasse o corpo, optando-se por uma “higiene seca” (Vigarello: O Limpo e o Sujo); em contrapartida, não se estimava o fumo do tabaco maléfico. Retomando, o que sai do corpo tende a ser encarado como poluição. É o caso da transpiração, do vómito, da expectoração, da mucosidade, da urina, dos excrementos e dos “ventos de baixo e de cima” (Erasmo). Como tudo o que envolve seres humanos, estes esquemas carecem a devida reserva. Há culturas onde o arroto nem sempre é indesejável. E convém não esquecer que isto que nós somos, fruto do nascimento, é um corpo saído de outro corpo.
É curioso notar que na semiose do corpo também se verifica a réplica quase fractal da macroestrutura nas microestruturas. Pierre Bourdieu insistiu sobre este efeito (defende, por exemplo, em La Distinction que os princípios configuradores do espaço social se reproduzem ao nível de cada uma das suas fracções). Anthony Giddens também aflorou estes agenciamentos. Mas este tipo de configuração foi claramente equacionado, alguns anos antes, por Lucien Goldmann ao sustentar que a arquitectura global da peça Les Nègres, de Jean Genet, se actualizava nas respectivas réplicas (ver “Microstructures dans les vingt cinq premières répliques des Nègres de Jean Genet », in Structures mentales et création culturelle, Paris, Éd. Anthopos, 1970). Acrescente-se que Blaise Pascal abordou, três séculos antes, este entrelaçamento entre o todo e as partes. No que toca a precedências, mais vale ser um anão que se apoia nos ombros de um mestre do que um gigante que pisa as cinzas dos pioneiros. Na semiótica do corpo também ocorre este encaixe de estruturas. Na cabeça, por exemplo, a testa e os olhos localizam-se nas alturas. Se o peito e a face são o lugar da honra, a fronte é a sua sede. Neste sentido, manifesta-se grave afrontar uma pessoa. Mas tudo permanece vulnerável. Nada está acima de qualquer mácula. “Espete-se um par de cornos na testa” e lá se vai a honra altaneira. Abaixo da testa estão os olhos. Se a frente do corpo é o espelho da pessoa, os olhos são “o espelho da alma”. Distinta é a sina das orelhas, os órgãos mais recuados da cabeça. Quis a contingência que houvesse mais orelhas de burro do que orelhas de lince… Muitos cientistas e historiadores de arte procuram na boca e nos olhos o segredo da célebre expressão da Gioconda. O nariz, embora em muito menor grau, também não é esquecido. Mas, as orelhas, Senhor? As orelhas não são dignas de brilhar no rosto mais venerado do mundo… Entre a nuca e o nariz, murcham numa zona de ninguém.
Eis-nos chegados ao ponto em que devíamos ter começado. A escrita é como a vida, mal começa logo se perde em dobras e fragmentos que não há ilusão capaz de costurar ou engomar. Estou farto de teclar. O estilo vai-se tornando estenográfico. Estamos na era do audiovisual (pelos vistos, a pós-modernidade é a era de quase tudo). Como tendemos a “pintar” o audiovisual? Imaginamos um pedestal, o áudio, montado por uma vedeta, o visual. Algo como o Sancho Pança e o Don Quixote da comunicação. Nada a estranhar, as parcerias para ser recíprocas não precisam de ser simétricas. O “homem tipógrafo” inflacionou a visão em detrimento dos demais sentidos, incluindo a audição. Crença, projecção, realidade? Na prática, é difícil destrinçar os sentidos. Recordo que mesmo o cinema mudo não prescindia do som, dando azo a belas composições musicais! Certo é que as tendências da publicidade, dos telediscos, dos videojogos e do cinema prenunciam um maior protagonismo para a componente sonora. Será uma apetência do “homem electrónico”? Será uma viragem na constelação dos sentidos? Sem quixotismos, Sancho Pança que conclua: “- Temo, Senhor, que com tantos moinhos não haja escudeiro que aguente!” Tradução: “ – Temo, Senhor, que com tantos ecrãs não haja olhos que cheguem!” Tanto mais que a vista começa a estar cansada.