Condição de felicidade. O efeito de idade.

Que tenho contra os velhos? Nada. Dispenso, porém, pedir às crianças para ser adultas, aos adultos, crianças e aos jovens, velhos. Também prescindo pedir aos velhos para ser jovens. Existem ”idades da vida” (ver: https://tendimag.com/2016/12/23/as-idades-da-vida/). Nenhuma fase da vida tem o monopólio da importância ou da felicidade. Mas as “condições de felicidade” (Erving Goffman) são distintas.
A eloquência da velhice
“Pode-se nascer velho bem como morrer jovem” ( Jean Cocteau).
“Estou velho. Mas não me preocupa nem a natureza nem a idade. Dispensava os sintomas…” (AG).
As pessoas de idade aparecem frequentemente nos anúncios publicitários. Representam mundos, experiências e valores. São associadas à tradição, à continuidade, à natureza, ao saber-fazer, à confiança, à autenticidade, ao respeito e ao carinho.
No anúncio à água Rozana, é o próprio presidente da empresa que dá a cara. “É uma água naturalmente gasosa. A natureza é perfeita”.
Marca: Rozana. Título: Pierre Papillaud. França, 2009.
O anúncio Mère Denis é um clássico da história da publicidade. A figura da Mère Denis tornou-se um ícone na França dos anos 70 e 80. Um impacto semelhante ao dos anúncios da Frize, com Pedro Tochas, em Portugal no início do milénio (ver https://tendimag.com/?s=freeze). A máquina de lavar roupa Vedette inscreve-se na continuidade do saber-fazer da Mère Denis.
Marca: Vedette. Título: La Mère Denis. Agência: Synergie Polaris. França, 1980.
Simone de Oliveira confia no Calcitin: a cantora e atriz não só confia no Calcitin, garante a autenticidade e a eficácia do produto.
Marca: Calcitrin. Título: Simone de Oliveira confia no Calcitrín. Realizado pela Marketividade. Portugal, Novembro 2017.
Na canção O Velho e a Flor, de Vinicius de Morais e Toquinho, apenas um “velhinho” soube dizer ao poeta o que era o amor.
Vinicius de Morais & Toquinho. O Velho e a Flor.
O eclipse da velhice

01. Karthik – Goolgle +. Idades da Vida
Acabo de reescrever um artigo sobre a representação das idades da vida na Idade Média e na Idade Moderna (https://tendimag.com/2016/12/23/as-idades-da-vida/). O homem medieval cresce até atingir um planalto em que o adulto e o idoso permanecem, à mesma altura, até à morte (ver figura 2).

02. Bartholomeus Anglicus,. The six ages of man. Livre des propriétés des choses. 1480
A Idade Moderna altera esta representação da curva da vida: ascensão até ao topo adulto e declínio até ao túmulo (ver figura 3). Os dois lados da curva não têm o mesmo valor: o esquerdo é agradável e forte, o direito é sofrido e fraco…
Concentrar-se num segmento etário é uma tentação para a publicidade, que namora a elipse do envelhecimento. A publicidade banha-se na fonte da juventude.
O anúncio português Ariel apresenta A começa com uma criança a gatinhar, depois a andar, culminando com uma mulher a correr que acaba por se transformar numa atleta equipada com as cores nacionais. Energia, eficácia, progresso e performance. Para a embaixadora da marca, a atleta de alta competição Patrícia Mamona, os melhores resultados estão garantidos. Uma ascensão sem queda (figura 4).
A vida é caprichosa: quanto mais se aponta, menos se acerta. Absorto com um hipotético efeito secundário ao nível da representação das idades, por pouco não esqueço o essencial. O anúncio da Ariel está bem concebido e bem realizado. É um bom anúncio. Foi apenas abordado por uma memória fresca num comentário lateral que não lhe faz justiça, mas que produz, paradoxalmente, conhecimento. Coincidências e manhas da razão! Gosto de vários pormenores do anúncio: a mesma criança a gatinhar e a dar os primeiros passos; a “metamorfose” da mulher antes do triplo salto e, insista-se, um guião votado ao amanhecer da vida.
Antes de virar a página, dois apontamentos. Primeiro, “a representação da velhice na publicidade” dava um bom tema de dissertação. Segundo, a observação não se reduz a “ver” o que “lá está”, importa “ver” o que “lá não está”. A realidade também se quer imaginada.
Marca: Ariel. Título: Ariel apresenta A+. Agência: Carat Portugal. Portugal, Outubro 2017.
O riso da velha grávida (revisto)
“Entre as célebres figuras de terracota de Kertch, que se conservam no Museu L’Ermitage de Leningrado, destacam-se velhas grávidas cuja velhice e gravidez são grotescamente sublinhadas. Lembremos ainda que, além disso, essas velhas grávidas riem. Trata-se de um tipo de grotesco muito característico e expressivo, um grotesco ambivalente: É a morte prenhe, a morte que dá à luz” (Mikhail Bakhtin, A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: O contexto de François Rabelais, São Paulo, HUCITEC, 1987, pp. 22-23).
Só de imaginá-las, essas figuras de terracota fascinam. Há anos que as procuro. Resignei-me a substituí-las pela velha com um bebé enfaixado, da Tentação de Santo Antão (1506), de Hieronymus Bosch, e pelas imagens da morte com o bebé ao colo (ver James Ensor, Morte com bebé ao colo). Alguns estudos sobre Bakhtin sinalizam uma estatueta de terracota (figura 1) que condiz com a descrição: uma mulher, aparentemente, idosa e grávida (ver, por exemplo, Vanessa Tarantini, O corpo grotesco). A estatueta provém de Kertch, contanto se encontre no Museu do Louvre e não no Museu L’Ermitage. Confesso que tenho visto e revisto esta idosa grávida, mas estou convencido que é antepassada da Gioconda: não é fácil descortinar se está ou não a rir. Tão pouco chora.
Está tudo na Internet? Quando o objetivo é específico, tropeça-se em muito desperdício. Explorar na Internet é cada vez mais navegar numa lixeira. Parafraseando Malthus, se o crescimento da informação é geométrico, o crescimento do lixo é exponencial. De qualquer modo, quem muito procura quase alcança. “Descobri” uma estatueta com uma mulher sentada: idosa, obesa e, com boa vontade, grávida e risonha. Condiz com as figuras de terracota de Mikhail Bakhtin. Até na data (três séculos a.C.). Só não foi produzida em Kertch, na Crimeia, mas, perto, na Beócia. Também não está no L’Ermitage, mas no British Museum (figura 3).

04. Figura de terracota de uma velha ama com um bebé. Beócia. Grécia. Cerca de 330-300 a.C. British Museum.
Outras estatuetas de terracota aproximam-se das figuras convocadas por Mikhail Bakhtin. Falta-lhes, no entanto, um ou outro atributo: a idade, a gravidez ou o riso. Destaca-se, porém, uma imagem: uma velha risonha sentada com um bebé ao colo, da mesma época, mas da Beócia (figura 4). Tal como a mulher do British Museum (figura 3), esta figura está coberta de dobras: de sombras, do tempo, do movimento e da dialéctica dos contrários. A velha ri enquanto cuida do bebé. Não está grávida, mas sustenta o crescimento da criança. Não é “a morte prenhe, a morte que dá à luz”, mas um atalho entre a morte e a vida, um laço entre a velhice, próxima da morte, e a infância, começo da vida. O mundo dobra-se e os extremos tocam-se.
Se no lugar do riso de uma velha grávida, tivesse optado pelo sono de uma mulher volumosa, com curvas muito generosas, ficaria satisfeito, 2 000 anos antes, com a estatueta da “Vénus adormecida”, datada de 4 000 a 2 500 a.C. (Museu de Arqueologia de Valletta, em Malta). Dorme, como a Terra Mãe, à espera da (re)generação do mundo. Um sono de Inverno com sonho de Verão. Baptizaram-na Vénus (Afrodite, na mitologia grega). Parece aguardar Adónis.
Afrodite apaixonou-se por Adónis ainda este era criança. Guardou-o num cofre que entregou a Perséfone, que também se apaixonou pelo belo Adónis. Ambas as deusas reclamam Adónis. Zeus, chamado a pronunciar-se, é salomónico. Divide o ano em três partes iguais: durante os meses de inverno em que as sementes estão soterradas, Adónis vive no inferno com Perséfone; na primavera, quando as sementes germinam, Adónis vive com Afrodite; Os quatro meses restantes ficam à escolha de Adónis, que opta por Afrodite. Adónis é o deus da morte e da ressurreição, um deus ctónico, associado à vegetação. Durante a sua estadia no inferno, a terra é estéril. A partir da Primavera, a terra torna-se fértil. A vida enterra a vida, a morte dá à luz a vida. Sem tréguas, nem dramas. Uma tragédia.
As sociedades têm uma costela de Adónis. Mudam de lugar e de espírito consoante as estações do ano. O estudo dedicado por Marcel Mauss às “variações sazonais” dos esquimós é um clássico (” Essai sur les variations saisonnières des sociétés eskimo”, l’Année Sociologique, tome IX, 1904-1905). Na Primavera, os esquimós separam-se, partindo cada um com a sua família, a sua tenda e a sua canoa. Aproveita-se o degelo. Mal o Inverno se aproxima, os esquimós concentram-se em grandes acampamentos fixos. De fase para fase, tudo muda: a arquitectura, a vida religiosa, a economia, o direito, as relações de poder, as relações de parentesco, o convívio e a interacção social. Passa-se de um oposto ao outro.
Quase todas as sociedades conhecem variações sazonais. Algumas, à semelhança de Adónis, trocam de lugar; outras, alteram-se sem se deslocar.
Em Castro Laboreiro, no século XX, muitas famílias residiam , durante o Inverno, no vale, nos lugares conhecidos por “inverneiras”; durante o Verão, viviam nas terras altas, no planalto, nos lugares conhecidos por “brandas”. Tudo e todos transitavam de um lugar para outro, incluindo os animais (Polonah, Luís, 1987, Comunidades camponeses no Parque Nacional da Peneda Gerês, SNPRCN). A vida dos emigrantes portugueses dos anos setenta também era pautada por variações sazonais acentuadas (Gonçalves, Albertino & Gonçalves Conceição, “Uma vida entre parênteses: tempos e ritmos dos emigrantes portugueses em Paris”, Cadernos do Noroeste, vol. 4 (6-7), 1991, pp. 147-158). Há povoações, incluindo cidades, que se transfiguram durante a época balnear ou durante os “desportos da neve”. Tanto mudam os territórios “receptores”, por exemplo, as praias, como os territórios “emissores”, por exemplo, as cidades do interior. A vida parisiense torna-se irreconhecível durante o mês de Agosto. “É em Setembro que a vida começa a sério” Gilbert Bécaud).
Nestes casos, as variações sazonais estão associadas a dinâmicas demográficas internas ou externas. Existem, porém, sociedades em que as variações sazonais ocorrem sem qualquer movimento de população. Nas sociedades camponesas, as pessoas permanecem, mas o mundo roda com o tempo. Santo António, dos casamentos, São João, do solstício, São Miguel, das colheitas, São Martinho, dos magustos, o Natal, da generosidade, o Carnaval, da esperança, a Páscoa, da ressurreição… A cada festa corresponde uma realidade e um imaginário específicos. São versões de comunidades em constante reconfiguração. Não há grande plano ou instantâneo que as reduza ao mesmo. Talvez depois de mortas, como Adónis que, ferido mortalmente por um javali, passou a viver, para sempre, no inferno.
Gerontofobia
Neste anúncio da prevenção rodoviária belga, o paraíso parece saído de um filme do Fellini. Nada a ver com a placidez dos eleitos celestes enfileirados nos paraísos das pinturas medievais do Juízo Final. No novo “paraíso”, há luxúria, gula e depravação. E velhos, só velhos! “Le paradis est super. Quand on est vieux”.
A minha sensibilidade é mesquinha. Uma vez que o Paraíso está pejado de velhos, o melhor é esperar. Esperar o quê? A velhice? Eis uma forma bem humorada de discriminar e segregar. Não há lugar para jovens no “paraíso dos velhos”? É repulsivo? Este anúncio tem laivos de gerontofobia. Se, em vez da idade, estivesse em causa o género, e em vez de velhos, tivéssemos homossexuais, já se teriam ouvido os sinos em Marte. Apetece-me ouvir Neil Young.
Anunciante: IBSR (Institut Belge pour la Sécurité Routière). Título: Le paradis c’est super. Quand on est vieux. Agência: Saatchi & Saatchi. Direcção: Pavel Dundas. Bélgica, 2010.
Neil Young. Old Man.
Gozar até morrer
Este anúncio é uma pérola, o cúmulo do disparate. Ao arrepio das conveniências, Do Faster in 17 Minutes é grotesco até à medula: brinca com a morte (um tabu), diverte-se com os idosos (uma idade respeitável) e belisca a religião do nosso tempo, a medicina. A morte e a velhice aparecem risonhas, palpitantes de vida, a lembrar as danças macabras e o folclore mexicano: “O Mexicano (…) frequenta [a morte], ridiculariza-a, provoca-a, dorme com ela, festeja-a, é um dos seus divertimentos favoritos e o seu amor mais fiel” (Octavio Paz, Le labyrinthe de la solitude, Gallimard, Paris, 1972, p. 55). Hoje, tudo é mais fácil graças aos amuletos digitais.
Marca: Do.com. Título: Do Faster in 17 Minutes. Agência: MUH-TAY-ZIK | HOF-FER, USA. Direção: Paul Trillo. USA, Setembro 2013.