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Fios de aranha e voos de borboleta

Por Mohanad Shuraideh

Que força é essa? Que força é essa?
Que trazes nos braços?
Que só te serve para obedecer?
Que só te manda obedecer?
(Sérgio Godinho, Que Força É Essa. Os Sobreviventes, 1972).

Pouco ou muito coloridas, as nossas sociedades toleram cada vez menos o voo das borboletas. Imprevisível, importa discipliná-lo, dar-lhe moldura geométrica, à semelhança, por exemplo, do alinhamento das formigas ou da formação dos gansos.

Na justiça, palaciana ou popular, a presunção de inocência conheceu melhores dias. A corrente incontinência de regras, procedimentos e controlos parece assentar no primado do mal e na bênção exorcista. Para prevenir qualquer hipótese de falhas ou desvios, as leis e os procedimentos desconfiam de tudo e de todos. Tentam acautelar, em particular, os “efeitos borboleta”, os pequenos nadas aleatórios suscetíveis de subverter a arquitetura impecável do conjunto, porventura uma gaiola dourada.

As regras e as normas visam menos a orientação ou a coordenação e mais a restrição e a filtragem. Multiplicam-se e complicam-se os postigos e as chaves. Não obstante, com tamanha urdidura, profilaxia e purga, há cada vez menos notícia de pessoas, gestos e obras decentes. Sem um mínimo de confiança, as relações humanas resultam perversas e penosas. Enquistam, definham e degradam-se.

Entretanto, as borboletas continuam a voar como se não existissem teias de aranha.

Willie Nelson. Butterfly. God’s Problem Child. 2017
Bénabar. L’effet papillon. Infréquentable. 2008
Sérgio Godinho. Que Força É Essa? Os Sobrevivente, 1972

Notável e notório. A formiga e a cigarra, o galo e a galinha

Moledo, domingo. Proporciona-se um mergulho no adubo humano.

Notável é aquilo que é “digno de nota”, “merecedor de consideração e apreço”; notório, o que é notado, “conhecido por um grande número de pessoas”. Pode-se ser notável sem ser notório; e notório, mas não notável. Numa sociedade da imagem, da rede e do artifício, prevalece o notório. Chegados a esta encruzilhada, apetece reequacionar a fábula de La Fontaine: hoje, quem morre de fome não é a cigarra, notória, mas a, a formiga, notável. A cigarra polariza o reconhecimento. Sendo esta a verdade mundana, importa refundar as pragmáticas, as éticas e as teodiceias.

A propósito da cigarra e da formiga, acode-me a relação entre o galo e a galinha, cantada, com inspiração e humor, por Sérgio Godinho.

Sérgio Godinho. O Galo é o Dono dos Ovos. Pano-Cru. 1978. Ao vivo no Centro Cultural de Belém.

Publiquei, em 2011, uma fábula no ComUm, boletim da Universidade do Minho, com o título “Fábula comUM” (contemplada no Tendências do Imaginário com o título “Fábula das formigas sabichonas”). A Universidade tinha a virtude da homeopatia: sabia digerir o “mal”, a adversidade, expondo-se à crítica mordaz e sarcástica. É certo que as farpas se afogavam na gordura académica. Destilada e delirante, a escrita enferma de um vício que não me larga: discorrer sem explicitar o assunto. O leitor que adivinhe e o resto reverbere. O “segredo” remetia para a implementação da política dos rácios alunos/docentes consoante os cursos, depressa extrapolada, abusivamente, para os departamentos. Um veneno que as universidades, em particular a do Minho, devoraram. Este desvio de uma fórmula de financiamento para uma forma de governo desvirtuou o mundo académico, resultando numa legitimação e num reforço dos interesses e privilégios instalados ou em vias de instalação. Uma deformação que, a par do controverso processo de Bolonha, contribuiu estruturalmente para o atual desequilíbrio institucional das universidades portuguesas.

Para aceder à “Fábula das formigas sabichonas”, carregar na imagem seguinte ou no endereço https://tendimag.com/2011/11/13/fabula-das-formigas-sabichonas/

Desequilíbrio fórmico

Que bom ser bom

Tintoretto. The Murder of Abel. 1551-52

Que bom ser bom

Proteger as pessoas e os animais

É tão bom ser bom

Preocupar-se com os outros

Mais do que os próprios

Que bom ser bom

Salvar os impenitentes

E resgatar os náufragos

Que bom ser bom

Subir pelas escadas do bem

Até ao cume da bondade

E converter de altas alturas

Os rebanhos cevados a erva daninha

Que mau ser banal

Sem chamamento, missão ou apostolado

Que mau ser mau (AG)

Sérgio Godinho. O Novo Normal. O Novo Normal. 2020.

O exílio da responsabilidade. Frases batidas

Francis Bacon. Crucificação. Fragmento. 1950.

Em vénias malabares à luz do dia
Lambuzam da saliva os maiorais
E quando os mais são feitos em fatias
Não matam os tiranos pedem mais
(José Afonso. Os Eunucos. Traz Outro Amigo Também. 1970).

Sentir o poder é um prazer. Apontam nesse sentido as noções de libido dominandi, de Santo Agostinho, e vontade de poder, de Nietzsche. O resto é acessório. Parafraseando Gil Vicente, mais vale uma decisão estúpida que nos carregue do que uma sábia que nos derrube. Assim caminhamos, de soberba em soberba e de disparate em disparate. O rei nunca vai nu. É agasalhado por oportunistas, néscios e bajuladores. Uma pirâmide de lambe-botas. Quanto mais em baixo, maior a língua. E assim por aí acima. Neste coro de línguas sem papilas, é mais execrável quem suporta o poder do que quem o detém. É o exílio da responsabilidade.

Estas palavras não passam de uma catarse. Não possuem, substantivamente, nenhum valor. São frases batidas (Sérgio Godinho). De vez em quando, apetece descarregar. Um desabafo! Ninguém gosta de desabafos. Prefere-se o abafo, prefere-se abafar numa orgia de poder.

Está um bom dia para ouvir o Sérgio Godinho: O Primeiro Dia (álbum Pano-cru, 1978) e Os Vampiros, uma versão ao vivo da canção homónima de José Afonso (álbum Os Vampiros, 1963).

Sérgio Godinho. O Primeiro Dia. Pano-cru. 1978
Sérgio Godinho. Os vampiros. Ao vivo. Versão de José Afonso (Álbum Os Vampiros, 1963).

Nostalgia do Futuro

Ontem, fiz anos! Não fiz nenhuma proeza. Mas faz-se de conta. O importante é o resto. Os anos passam. Mais complicado do que ser velho é envelhecer. Inteirámo-nos, a cada momento, que já não somos quem éramos, nem podemos o que podíamos. Envelhecemos, sem pausas, até ao último momento. É a nossa condição.

“E agora que vou fazer / com todo este tempo que será a minha vida?” (Gilbert Bécaud). Renascer todos os dias? “Hoje é o primeiro dia do resto da tua vida” (Sérgio Godinho). O que fazer? Nada, como de costume, um nada muito bonito. Com o passado a pesar no presente, não dá para andar para trás. Cumpre-nos encarar o futuro até ter saudades:  saudades do futuro sonhado. Equívocos de um  viciado em  palavras.

Agradeço os vossos votos de aniversário. Fizeram-me sentir mais humano. Entre o peso do passado e a nostalgia do futuro, é bom contar com os amigos no presente.

Gilbert Bécaud. Et maintenant. 1962.

Sérgio Godinho. O primeiro dia. Pano-cu. 1978.

 

 

 

Amaiai-vos uns aos outros

Vinvent Van Gogh. Noite estrelada sobre o Ródano. 1888.

Vincent Van Gogh. Noite estrelada sobre o Ródano. 1888.

“Desejo tudo de bom”! Para ser estrela, não é preciso entrar em órbita, basta “um brilhozinho nos olhos”.

Em conversas com velhos da minha paróquia, aprendi que, outrora, existiam grupos de “amaiantes”. Digo “velhos” porque, na altura, os velhos ainda eram velhos. Não eram pessoas de idade, como toda a gente, nem a terceira ou a quarta idade, nem seniores que senilizavam, nem pessoas maiores cada vez mais pequenas. Eram velhos que envelheciam. O Primeiro de Maio é o Dia do Trabalhador. Ironicamente, Maio era, antigamente, o mês de maior azáfama na agricultura. A lavoura requeria cooperação. Eram raros os agricultores que possuíam juntas de bois, arados ou grades. Um grupo de “amaiantes” congregava várias “casas” que ajustavam entre si a actividade de todos. Uns disponibilizavam os bois, outros a mão-de-obra… Os campos eram lavrados com o contributo de cada um à data combinada.

Em Maio, “amaiai-vos” uns aos outros!

Terence Tren D’Arby. Wishing Well. Introducing the Hardling Accor. 1987.

Sérgio Godinho – Com Um Brilhozinho Nos Olhos. Canto da Boca. 1980.

Marca: giffgaff. Título: Free to go. Free to stay. Reino Unido, Abril 2017.

Com a cabeça entre as pernas

Honda faces

Ulisse Aldrovandi's 1642 book, History of Monsters (Monstrorum Historia)

Fig 1. Ulisse Aldrovandi’s 1642 book, History of Monsters (Monstrorum Historia).

É difícil, porventura incerto, corrigir um perfil. Pior ainda quando se ajusta sempre o mesmo, do mesmo modo, no mesmo sítio.

Amassa-se a miséria, embala-se e empurra-se para baixo.

Como no monstro da Figura 1, a cabeça desce quase até aos pés. De tempos em tempos, talvez dê para bater as asas e pôr um ovo (Figura 2).

Mas, equacionados todos os pontos e todos os ângulos, equilíbrio redondo, provavelmente, só ao volante de um crossover Honda HR V.

Marca: Honda. Título: Give and Take. Agência: RPA. USA, Junho 2015.

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Fig 2. Ulisse Aldrovandi’s 1642 book, History of Monsters (Monstrorum Historia)

Imagine-se um desfile de monstros acompanhado pelo “Coro das Velhas”, de Sérgio Godinho, “a caminho de Caminha”.

Sérgio Godinho. Coro das Velhas. Era uma vez um rapaz. 1985.

 

 

A ascensão das galinhas

SergioGodinho-Pano-CruAs aves cantam ou chilreiam. Diz-se: “quando te vejo, o meu coração canta”. Com menos frequência, também se diz: “quando te vejo, o meu coração chilreia”.

Atente-se nos seguintes versos do poema A Omeleta de Egito Gonçalves:

Respiro-te. A voz do frigorífico
entoa sobremesas com a arte da poesia.
O poema leveda no trigo dos olhares.
Ao transcrevê-lo
direi que o nosso coração chilreia
no ar do jardim
como se fosse um pássaro no mais alto
ramo.

Egito Gonçalves, A Ferida Amável,
Porto, Campo das Letras, 2000.

Mas ninguém diz “quanto te vejo, o meu coração cacareja”. Os melros cantam, os pardais chilreiam e as galinhas cacarejam. Sendo a língua um bom indicador, a nossa consideração pelas galinhas é mínima. Degustamos os ovos, afagamos os pintainhos e menosprezamos as galinhas. Mas assiste-se, nos últimos tempos, a um chicken turn, uma revolução na imagem das galinhas. Irradiam um novo potencial cívico, ético e estético. O filme A Fuga das Galinhas e a série Cow & Chicken são apenas dois exemplos. A publicidade tem abraçado esta revalorização simbólica das galinhas. Neste anúncio da Reebok, dirigido por Noam Murro, a protagonista é uma galinha amante da liberdade. Um dia correrá com sapatilhas Reebok e será um expoente do sex appeal galináceo. Entretanto, as galinhas ao poder! Os galos já chateiam. A dialéctica da capoeira é contudo complicada. As galinhas põem os ovos, “os galos são os donos dos ovos” e os pintos só pensam em ser galos no lugar do galo (ver Sérgio Godinho, O galo é o Dono dos Ovos).

Marca: Reebok. Título: Live Free Range. Agência: Venables Bell & Partners. Direcção: Noam Murro. USA, Janeiro 2015.

Galináceos

Cow and Chicken.

Cow and Chicken.

Este artigo não acerta uma. É um disparate. Nem método  tem, só abre caminho. Não releva da doxosofia (Pierre Bourdieu), mas da metanóia (Philippe Tacussel). Assim se vê como se pode escrever caro e obscuro sem dizer nada de jeito. Chamo a isso o efeito da língua morta, como nas missas em latim (Mikhail Bakhtin). É uma arte que se aprende nas oficinas do saber. Este artigo é um albergue espanhol.
But I like it!

As galinhas da horta

Toca a esgaravatar! Esgaravatar com as patas inquietas e a crista a abanar… Que as asas só servem para correr rente ao chão.

Doidas, doidas, doidas, andam as galinhas
Para pôr o ovo lá no buraquinho
Raspam, raspam, raspam
P’ra alisar a terra
Bicam, bicam, bicam
Para fazer o ninho
Raspam, raspam, raspam
P’ra alisar a terra
Bicam, bicam, bicam
Para fazer o ninho…
(canção infantil  – excerto)

Em França,  existe uma canção infantil semelhante:

Une poule sur un mur
Qui picotait du pain dur
Picoti, picota,
Prends tes cliques et puis t’en va !

Psycho-Chicken Geocoin

Psycho-Chicken Geocoin

Esta canção infantil encerra boas lembranças. Olivier Revault d’Allonnes, falecido em 2009, foi um filósofo da estética do tempo de Lucien Goldman, Jean Duvignaud e François Châtelet. Revault d’Allonnes propôs aos alunos a interpretação do  texto desta canção, ensaiando diversas metodologias: a história literária tradicional, o estudo das fontes, a etnografia, o estruturalismo, a psicanálise, a crítica marxista… Resultou um texto incisivo e divertido: “Sur un art des “masses enfantines” (L’art de masses n’existe pas, Union génerale d’éditions, col. 10/18, Paris, 1974). Tive o livro, raro, mas emprestei-o. Procuro-o há anos, para sensibilizar, com criatividade e humor, os alunos para a diversidade de abordagens nas ciências sociais. Encontrei-o hoje, graças às galinhas, que andam doidas, doidas, doidas. Para aceder ao pdf do texto de Revault d’Allonnes, carregar aqui: Olivier Revault d’Allonnes. Sur un art des masses enfantines.

A galinha vai ao palácio

Mudando de género musical,convide-se a galinha ao palácio. La Poule, de Jean-Philippe Rameau (1583-1764), é contemplada com imensos vídeos na internet. Alguns com animação interessante. A interpretação de Grigory Sokolov alia a qualidade do artista a um movimento de mãos que dispensa qualquer outra forma de animação.

Jean-Philippe Rameau. La Poule. Piano: Grigory Sokolov.

 E o galo treme no poleiro

Na Quinta dos Animais, para além da galinha e dos porcos, vive, naturalmente, o galo, o dono dos ovos (Sérgio Godinho: O galo é o dono dos ovos – Pano-cru, 1978).

Sérgio Godinho. O galo é o dono dos ovos. Ao vivo no CCB. Lisboa.

Amalgamámos, num único artigo, música popular, música erudita e música de intervenção. Deveras inconveniente, senão de mau gosto. Mas é uma tentação aproximar o que está separado (comparare, comprehendere). Que se abrace quem tanto se afasta! Juntar o que está separado não é menos gratificante do que separar o que está junto (disparare, discernere).

 

A Força

Star warsSe tens a força, poupa o fôlego. A força é uma miragem da humanidade. Pode estar dentro de ti, pode estar fora. Até se pode concentrar num lego. Por sua vez, o recurso a ícones populares é uma tentação do minimalismo. Que a força esteja contigo!

 

 

Marca: Lego. Título: Happy Birthday Lego Star Wars. Internacional, 2014.

E porque há forças e forças, Sérgio Godinho: