A música na publicidade

Quando a música e, eventualmente, a dança são estrelas, o resto perde brilho. São exemplo os anúncios Dairy Dancing, da Pump e Little Angels, da Hyundai. O motivo e a marca podiam mudar, o impacto e a promoção mantinham-se. Repare-se, por último, que a música produz um efeito de união: em Dairy Dancing, as pessoas sintonizam-se; em Little Angels, a música pacifica e gera comunhão dentro e fora da família.
Umbigos flácidos

Dizem que o mundo está líquido, como a lama. Pois, deixá-lo estar. Mas duvido. Continuo a dar cabeçadas. E se está mole, depressa fica vertebrado: atente-se na experiência do confinamento; até aos cemitérios e às urnas chegou o decreto de Estado. Isto anda mole? Se essa é a vossa opinião… Quando brilham os faróis, escurecem os pirilampos. A ser verdade, esta história da moleza tem consequências. Sem verticalidade nem consistência, não há lugar para pessoas firmes e hirtas, “feitas de uma peça só”. Onde vamos pendurar a honra? Neste mundo de plasticina estaladiça e identidades fugidias, hesita-se em firmar compromissos com quem quer que seja, cara de roleta ou pés de barro. Numa sociedade sem honra nem narrativa, assiste-se ao milagre da multiplicação dos umbigos flácidos. Só quebra quem não torce. Kurt Cobain partiu.
Mocidade académica. O amor burocrático

Com tantos regimentos, regras, normas, modelos e procedimentos, criar resume-se a um jogo de colorir imagens. Um projecto é um projecto, conforme o regulamento. As referências bibliográficas, também. Nada como encurralar o pensamento em 2 000 palavras… Esta é a arte, esta é a bênção. Tudo deliberado, consignado e disponível em documento próprio, para instrução de alunos com experiência académica e percursos profissionais notáveis. Se pretende saber, saiba connosco, saiba como nós! Percorra o caminho batido.
Na escola primária, há mais de cinquenta anos, entoava-se, no início, a seguinte canção:
Vamos cantar com alegria
E começar um novo dia
Para nós o estudo só nos dá prazer
Faremos tudo, tudo para aprender.
Não há muitas opções: ou se ensina o caminho ou se aprende a caminhar (Antonio Machado). É sensato confinar os alunos numa redoma de regras e normas? Para colher réplicas? Para conseguir a quadratura do círculo? Apesar da minha costela anarquista, admito a necessidade de normas e de regras. Incomoda-me o excesso de amor e de zelo burocráticos. Regulamente-se, regulamente-se até ao cinzento final. “Pim!”

A abertura do tolo

Quando a morte ronda, que fazer? Abater-se? Reagir? Há quem tente enganá-la (figura 1); outros nem sequer a pressentem (figura 2).

Alguns esmeram-se a arrumar a vida, outros trespassam sem zelo. Não é fácil trocar o mundo pela eternidade. Não há preparação nem ars moriendi que nos assista.

Talvez o tolo nos ensine. Na dança macabra (figura 3), ao contrário dos demais, só dá uma mão e a um ser humano. Parece não saber onde está nem para onde vai, o que pouco o incomoda.
Sucesso

“Encarrega-se os homens, desde a infância, do cuidado da sua honra, dos seus bens, amigos e ainda do bem e da honra dos seus amigos. Enchemo-nos com problemas, com a aprendizagem das línguas e com exercícios, e faz-se-lhes entender que não podem ser felizes sem que a sua saúde, honra, a fortuna e a dos amigos estejam em bom estado e que basta falhar uma só coisa para os tornar infelizes. Assim, atribuem-se-lhes cargos e questões que os inquietam desde o despontar do dia. Direis que esta é uma estranha maneira de os tornar felizes! Ora, o que se poderia fazer de melhor para os tornar infelizes” (Pascal, Pensamentos, Artigo XXI: Miséria do Homem).
Tenho um amigo que, desde os trinta anos, tem receio do sucesso. Produz, o melhor que sabe, livros, artigos, comunicações… Enterra-os como as tartarugas os ovos. Trinta anos depois, continua a evitar o sucesso. Nunca mo disse, mas creio que, para ele, o sucesso é coisa pouco saudável.
A parábola da garrafa de plástico

O que uma pessoa não faz por uma garrafa de plástico! Só um prodígio consegue resgatá-la do fundo de uma lixeira.
“Qual é a mulher que, possuindo dez dracmas e, perdendo uma delas, não acende uma candeia, varre a casa e procura atentamente, até encontrá-la? E quando a encontra, reúne suas amigas e vizinhas e diz: ‘Alegrem-se comigo, pois encontrei minha moeda perdida’” (Lucas, 15).
Talvez seja uma boa ocasião para investir em garrafas de plástico, porque em breve vão ser peças de museu leiloadas na Sotheby’s. Atente-se: “by 2025, Sodastream will eliminate 67 billion single-use bottles on this planet. So we won’t have to go looking for a new one”. Afigura-se mais fácil ver-se livre das garrafas de plástico do que dos “endemoninhados gadarenos”:
Quando ele chegou ao outro lado, à região dos gadarenos, foram ao seu encontro dois endemoninhados, que vinham dos sepulcros. Eles eram tão violentos que ninguém podia passar por aquele caminho.
Então eles gritaram: “Que queres conosco, Filho de Deus? Vieste aqui para nos atormentar antes do devido tempo?”
A certa distância deles estava pastando uma grande manada de porcos.
Os demônios imploravam a Jesus: “Se nos expulsas, manda-nos entrar naquela manada de porcos”.
Ele lhes disse: “Vão!” Eles saíram e entraram nos porcos, e toda a manada atirou-se precipício abaixo, em direção ao mar, e morreu afogada.
Os que cuidavam dos porcos fugiram, foram à cidade e contaram tudo, inclusive o que acontecera aos endemoninhados.
Toda a cidade saiu ao encontro de Jesus, e, quando o viram, suplicaram-lhe que saísse do território deles” (Mateus 8: 28-34).
Amanhã, dia 2 de Fevereiro, será o Super Bowl, o delírio da publicidade.
Liberdade sem freio

Numa sociedade que se diz avessa a grandes narrativas, proliferam grandes teorias omnívoras. Temos profetas! Profetas como, a seu tempo e a seu modo, Karl Marx ou Auguste Comte. Só não falam o mesmo idioma. Trata-se de um negócio intelectual interessante: vendem-nos armaduras como se fossem t-shirts (Albertino Gonçalves).
O escocês Alexander Sutherland Neill (1883-1973) foi um escritor e educador visionário. Entendia que os alunos deviam ser livres e responsáveis. Livres de aprender o que, quando e como desejassem e responsáveis do seu destino, participando ativamente nas decisões da escola. Estava convencido que a falta de liberdade e de responsabilidade é atrofiadora. À semelhança de alguns utopistas do século XIX, passou da teoria à prática, realizou a ideia. Criou uma escola pioneira; Summerhill. O livro, publicado em 1960, advoga esta Liberdade sem medo (Summerhill: A Radical Approach to Child Rearing). Curiosamente, o prefácio foi escrito por Erich Fromm, autor do livro O Medo à Liberdade (Escape from freedom, 1941).

O livro Liberdade sem Medo acertou na minha costela anarcoide. Quando leio um poema de Jacques Prévert, vejo um filme do Jacques Tati, percorro as tiras da Mafalda ou oiço o Another Brick in the Wall dos Pink Floyd, penso no Alexander S. Neill.
Uma criança, um aluno, não é uma tábua-rasa, para retomar o termo de Émile Durkheim.
“A educação tem como objetivo sobrepor ao ser individual e associal que somos ao nascer um ser inteiramente novo. Deve conduzir-nos a ultrapassar a nossa natureza inicial: é nesta condição que a criança se tornará um homem” (Émile Durkheim, Éducation et Sociologie, 1911).
A criança não é papel mata-borrão. A sua vocação não se resume ao processamento de informação. Quer-me parecer que nos últimos tempos temos cultivado essa falácia. Muito modelo, muita multiplicação.
“Uma educação capaz de desenvolver o julgamento e a vontade é perfeita, quaisquer que sejam as matérias ensinadas. Com estas qualidades, o homem sabe orientar o seu destino. Vale mais compreender do que aprender » (Gustave Le Bon. Hier et demain: pensées brèves. Paris, Flammarion, 1918).
Por falar em Jacques Tati, junto um vídeo com alguns excertos do filme Les Vacances de Monsieur Hulot (1953).
A sociedade do medo. O riso e a morte.

O espetáculo é o mau sonho da sociedade moderna acorrentada, que acaba por exprimir apenas o seu desejo de dormir (Guy Debord, La société du Spectacle. 1967).
Há uma eternidade que não ria tanto com um anúncio. Aberta e espontaneamente. Uma empresa de electricidade malaia ridiculariza as novas tecnologias da realidade virtual. Importa rir.
A sociedade actual menospreza o riso. Aposta, em contrapartida, no medo, na catequese da ameaça, a modos como a santa inquisição, o nazismo, o estalinismo e outros guardadores de homens. Receamos tudo, até a água que bebemos e o ar que respiramos. Novos pastores, novos rebanhos, novos lobos, novos fantasmas, novos cavaleiros do Apocalipse.

Morre-se um pouco todos os dias. Nada escapa, tudo prejudica, tudo mata. Perdi a conta aos catastrofismos políticos e mediáticos a que sobrevivi. Acrescento uma bandeira à procissão: a vida precede a morte, viver pode matar! Mas, apesar da proliferação de infortúnios, só se morre uma vez. Parece que estamos pendurados num rosário de mortes. Se tudo mata, o riso ressuscita! É o que interessa. Convém reconhecer que os nossos pastores, ao contrário dos inquisidores, não nos conduzem a uma vala comum, satisfazem-se com o comboio fantasma. Não tenho emenda. Este comentário não faz jus ao anúncio. No meio de tanto humor, atravessou-se um espantalho.
Voulez-vous coucher avec moi ce soir?

« A censura, qualquer que seja, parece-me uma monstruosidade, uma coisa pior que o homicídio. O atentado contra o pensamento é um crime de lesa-alma (Gustave Flaubert, Correspondance, à Louise Colet, 9 décembre 1852).
Inspirado na Lady Marmalade, de Patti LaBelle, quase incorria numa inverdade. Precise-se que a falsidade pode ter tanto efeito quanto a verdade. Acresce que, sempre que o diabo dorme, o efeito de uma coisa má pode ser bom. Muitos recordarão o refrão “voulez-vous coucher avec moi ce soir?” Entrava pelos ouvidos, saía pela boca e circulava nas discotecas. Um gadget de libertação ritual. Não posso, no entanto, sustentar que os anos setenta foram menos propensos à censura do que os nossos dias. Esmiuçando a memória, vi sedes assaltadas e jornais ocupados. Já em Paris, a partir de 1975, andei tão distraído que não dei pela censura.

Hoje a censura grassa, sobretudo, no quotidiano. Anda à solta, vadia. É a sua vertente mais nefasta. Sobram motivos e alavancas: o altar, o cetro, o género, o vegetal, a decência, a sensibilidade e o planeta. Censuras ora monstruosas, ora miudinhas, como no caso do tabaco e do telemóvel. “Ambos matam”. O tabaco presta-se a uma infinidade de censuras diárias. Pobre do fumador, não lhe basta ter um desconto no crematório e um aumento nos impostos? Tendemos a ser condescendentes com a censura banal, sobremaneira quando veste boas intenções. A censura é prima da morte. Apaga a diferença e mortifica o outro, a criatividade e a vontade alheias. O censor é um coveiro do espírito. Quanto a mim, I ramble on my own.