As mui ricas horas
O Tendências do Imaginário dedicou dois artigos ao modo como a vida no campo é retratada na arte: a obra de Jean-François Millet (Pintar o Campesinato: Jean-François Millet) e o Luttrel Psalter
(Pintar o Campesinato: O Luttrell Psalter). Chegou a vez das Très Riches Heures du duc de Berry. “Um expoente dos livros iluminados”, que levou 77 anos a concretizar. Os autores foram os Irmãos Limbourg, entre 1412 e 1416; Barthélemy van Eyck (?), na década de 1440, e Jean Colombe, entre 1485 e 1489. O livro contempla, entre outras iluminuras, os doze meses do ano com as respectivas actividades típicas.
Sobreviveram milhares de livros de horas. Provenientes, principalmente, das oficinas de Paris e de Flandres, a sua produção resultava cara e demorada. Acontecia, como no caso do Très Riches Heures, o destinatário falecer antes da conclusão do livro. A obsessão pela salvação da alma convivia, nesses tempos, com o “amor pela imagem”. Mas não vivemos nós na era da imagem? Somos, graças a Deus, a era de tudo. Olhar para trás é capaz de fazer bem ao pescoço e à cabeça!
Durante a Idade Média e o Renascimento, o valor dos livros de horas era de tal ordem que as pessoas faziam questão de os colocar nos retratos. Um símbolo de piedade, mas também de estatuto. No célebre quadro O banqueiro e sua esposa (1514), de Quentin Massys, a esposa tem um livro de horas nas mãos.
Galeria de imagens. Les Très Riches Heures du duc de Berry. Meses do ano.
A Menina Bexigosa
São raras as canções que abordam a discriminação estética. A Menina Bexigosa (1973), de Manuel Freire, consta entre as excepções. Nunca, como hoje, a fealdade foi tamanho fardo e a beleza tanto capital. Numa sociedade rendida à aparência, a beleza é a primeira e a mais eloquente carta de recomendação. No Discurso Sobre as Paixões do Amor (1652-1653), Blaise Pascal constata que “há um século para as loiras, outro para as morenas (…) A própria moda e os países regulam aquilo que se chama beleza”. A moda passa, mas permanece. A beleza justifica uma violência simbólica exacerbada. Os ismos e os pós ismos, tão cheios de razão, têm ignorado esta desigualdade. Não há nada a fazer? Talvez ver com outros olhos, o que não se resume aos óculos.
Para aceder ao vídeo, carregar na imagem (Quentin Massys. Matched Lovers, c. 1520-1525).
Manuel Freire. A Menina Bexigosa. 1973.
A Menina Bexigosa
A menina bexigosa viu-se ao espelho
soltou-se do vestido e viu-se nua
está agora vestida de vermelho,
inerte, no passeio da ruaAntes fora alegria e alvoroço
mas num baile ninguém a foi buscar
morreu o sonho no seu corpo moço
passou a noite a chorarTanto chorou que lhe chamaram louca
cada qual lhe levava o seu conselho
mas ninguém ninguém ninguém lhe beijou a boca
e a menina bexigosa viu-se ao espelhoDepois, fecharam a janela
vieram os vizinhos: ´Pobre mãe…´
vieram os amigos: ´Pobre dela…´
era tão boa e simples tão honesta,
… portava-se tão bem´
E dão-lhe beijos na testa
beijos correctos pois ninguém, ninguém
soube em vida matar a sua sede´A menina bexigosa portava-se tão bem´
O espelho continua na parede.Sidónio Muralha
Campanha pedagógica
Os seguidores do Tendências do Imaginário são exigentes. Sustentam que a antevisão da “campanha de prevenção contra o ensino”, inspirada nas campanhas contra o consumo de tabaco, não está correta (https://tendimag.com/2015/05/31/futura-campanha-sanitaria/). Devia ser a cores, como no Canadá, desde 2001, ou em Portugal, a partir de 2016. Para me penitenciar, segue um protótipo bem colorido. com a Duquesa Feia, de Quentin Massys (1525-30). Acrescento um painel, em alta resolução, com imagens de embalagens brasileiras de tabaco.
O Encanto do Feio
Quentin Massys (1466-1530) foi um pintor flamengo fundador da Escola de Antuérpia. Com ele trabalhou o pintor Eduardo, o Português (ver Museu Nacional de Arte Antiga). Para além dos temas religiosos, dedicou vários quadros a ofícios relacionados com o dinheiro, bem como a situações e personagens caricatos, ao jeito do realismo grotesco de que fala Mikhail Bakhtin. Na obra de Quentin Massys, destacam-se dois quadros: O Cambista e a sua Mulher, uma obra-prima universal (Figura 2) e a Duquesa Feia (Figura 1), a quintessência da “estética do feio”. Quentin Massys antecipa, deste modo, pintores tais como Diego Velasquez, Adriaen Browver, William Hogarth ou Francisco de Goya.
Segue uma galeria com algumas obras de Quentin Massys. Para acompanhar, um excerto com danças do Renascimento interpretadas pelo Clementic Consort.
Clementic Consort. Danses. Danses de la Renaissance. 1992.
- 03. Quentin Massys. The Tax Collectors
- 04. Quentin Matsys. Suppliant Peasants in the Office of Tax Collectors.
- 05. Quentin Massys (atribuido a). Le marché de dupes.
- 06. Quentin Massys (atribuido a). Vieja mesándose los cabellos. 1525-1530.
- 07. Quentin Massys. Matched Lovers, c. 1520.
- 08. Quentin Massys. Marriage Contract. 1525-1530.
Bobos
Para além da leveza, ando a pesquisar outro assunto ainda menos sério. Nestas andanças, deparei com dois retratos de bobos, um mais encantador do que outro.
Anónimo. The Laughing Jester. Art Museum of Sweden, Stockholm. Séc. XV
No retrato mais antigo, de autor anónimo do séc. XV, o bobo ostenta um traje colorido com as tradicionais orelhas de burro e um bastão esculpido. Uma mão cobre parte do rosto, aludindo, porventura, à missão de mostrar as duas faces da realidade.
Quentin Massys. An Allegory of Folly. Início do séc. XVI.
O segundo retrato é da autoria de Quentin Massys (1466-1530), um dos pintores mais surpreendentes da história da arte. Apresenta um louco com os respetivos símbolos: um galo na cabeça e a pedra da loucura na testa. Digno de atenção é o remate do bastão com uma figura humana, bastante realista, a mostrar o rabo.