Prendas, abraços e elfos
Com duas palavras se escreve a expressão espírito de Natal: prendas e abraços. O anúncio Holiday, da Amazon, prescinde do Pai Natal. Encomendas animadas e efusão humana. O espírito de Natal pede magia. O Pai Natal foi preterido pela maioria das grandes marcas. Como substituto, o elfo. El Corte Inglés retoma a figura do elfo: em 2018, o anúncio chamava-se O pai do El Corte Inglés é um elfo, este ano o anúncio A magia do Natal muda tudo continua a apostar na figura do elfo. O Natal de 2019 ficará na história da publicidade como o Natal dos elfos.
O Pai Natal. Questões de género

Falta visionar dois dos dezasseis anúncios de Natal seleccionados. Ambos evidenciam a sensibilidade de género. No primeiro, da Macy’s, uma rapariga quer ser pai Natal e, no segundo, da Virgin Media, a protagonista é uma drag queen. Esta sensibilidade representa, porventura, a maior ameaça à figura do Pai Natal. Promove a desconsensualização de uma hegemonia.
Nos anos setenta, Alain Touraine e Pierre Bourdieu, entre outros, vaticinaram um futuro auspicioso aos movimentos feministas, ecologistas e regionalistas, alternativos aos movimentos tradicionais, designadamente de classe. Não se enganaram. Estes “novos” movimentos conquistaram poder e influência. Censuram palavras, gestos e símbolos, entre os quais o Pai Natal. Numa crónica do Expresso, Nelson Marques ilustra claramente aquilo que me transcende. Segue um excerto.
“Querido Pai Natal, / Espero que não te importes que te trate assim. Afinal, para mim continuas a ser o velho barrigudo de barbas bancas que não cabe nas chaminés e que se multiplica pelos centros comerciais de todo o mundo, ouvindo os pedidos das crianças que se sentam no teu colo. Não sei durante quanto mais tempo te poderei tratar assim. Parece que a tua existência é uma coisa muito heteronormativa. O futuro, defendem alguns, pertence à Mãe Natal. Ou, melhor ainda, à Pessoa Natal, porque se queremos ser politicamente corretos o melhor mesmo é que o género seja neutro. / Não é coisa que me apoquente, devo confessar. Por mim, até acabávamos com esta tradição, que enganarmos as crianças desde pequenas não é um grande ensinamento para a vida. E talvez não fosse má ideia acabar também com as religiões, que estão na base de tantos males no mundo. É possível que milhões de pessoas se ofendam com a ideia, mas se não quisermos ser tão radicais podemos ao menos discutir o género do Menino Jesus? Porque é que não pode ser uma menina? Porque é que tem sequer de ter um género? E porque é que Deus há de ser um homem? E o Papa? Não está na altura de ser uma mulher?” (Nelson Marques, #género Está na hora de nos despedirmos do Pai Natal?, Expresso, 16.12.2018, excerto; https://expresso.pt/sociedade/2018-12-16-genero.-Esta-na-hora-de-nos-despedirmos-do-Pai-Natal-).

E o diabo? É verdade que não faltam diabas. Tanto em Amarante (ver Crónica dos Diabos de Amarante; https://tendimag.com/2014/05/28/cronica-dos-diabos-de-amarante/ ), como no inferno (ver imagem do Museu Nacional de Arte Antiga). Em suma, somos pessoas, substantivo feminino neutro.
Isto corrói a imagem de um santo, quanto mais do Pai Natal. A influência da sensibilidade de género na comunicação social, mormente na publicidade, é indubitável. O Pai Natal está em apuros. E não há quem lhe acuda.
Publicidade. Alternativas ao Pai Natal
Continuo a desfiar a amostra de 16 anúncios do Natal. Visualizámos anúncios com o Pai Natal em pessoa e com pessoas disfarçadas de Pai Natal. Nos próximos oito anúncios, as marcas prescindem do Pai Natal. Enveredam por alternativas típicas do imaginário atual: ET, Guerra das Estrelas, dragões, animais e, naturalmente, crianças, muitas crianças. Incorporo cinco dos oito vídeos. Os links dos três vídeos restantes aparecem no fim do artigo. Basta visionar dois ou três anúncios para ter uma noção das figuras alternativas ao Pai Natal. Palpita-me que a tendência aponta no sentido da erosão e da substituição da figura do Pai Natal. Entre outros motivos, a figura do Pai Natal acusa o desgaste da figura da prenda. Não que não se dê mais prendas. Não que elas não sejam mais caras. Perderam, simplesmente, parte da magia da dádiva, de que fala Marcel Mauss (Ensaio sobre a dádiva, 1925). É ao nível simbólico, subjetivo e afetivo que a falha se cava. A prenda desprende-se paulatinamente do imaginário fabuloso.
Apple. The Surprise. Estados Unidos. Nov. 2019.
O Pai Natal na publicidade. Glória e crise.

A maior mentira dos pais aos filhos não se refere à existência do pai Natal mas à promessa tácita de que as suas prendas os tornarão felizes (Laurent Gounelle, L’Homme que voulait être heureux, 2008).
Tenho andado ausente. Encalhei na Ilha de Sísifo. Perde-se tempo e não se ganha alento. Este artigo é gordo como o Pai Natal. O texto é esquelético mas os exemplos são muitos.
O Pai Natal mágico, risonho e rechonchudo, com barba branca e roupa vermelha, de trenó e na chaminé, é uma enorme fantasia da humanidade, que se espelha na publicidade. Mas tenho a impressão que cada vez menos. Perfila-se uma certa erosão.
No início de Dezembro, identifiquei 16 anúncios de Natal. Todos de grandes marcas. O Pai Natal propriamente dito aparece apenas em três: Coca-Cola, Oreo e Orange. Em outos três anúncios, Rema 1000, Bouygues e NOS, o Pai Natal resume-se a uma pessoa disfarçada. Oito anúncios (Globe Telecom, McDonald’s, Holiday, Migros, Admas Day, John Lewis, Fedex e Posten) recorrem a figuras alternativas ao Pai Natal. Por exemplo, o ET ou o dragão. Os dois anúncios restantes, da Macy’s e da Virgin, envolvem questões de género.
Do conjunto de anúncios, só encontrei três com a presença do Pai Natal original: o anúncio positivo da Coca-Cola, marca de que o Pai Natal é “embaixador”, o anúncio da Oreo, em que o Pai Natal quase não se vê, sendo o protagonista um duende, e no anúncio dúbio da Orange em que o Pai Natal é armadilhado e capturado por um grupo de crianças.
“En el spot [de Coca-Cola] se ironiza con cariño la conducta de Papá Noel, un hombre extraño que llega de una tierra misteriosa y entra a las casas sin ser invitado, pese a lo cual las personas siempre eligen ver su bondad por encima de todo” (https://www.adlatina.com/publicidad/preestreno-regional-de-la-campa%C3%B1a-navide%C3%B1a-global:-santo-coca-cola-y-santa-claus-proponen-aceptar-las-diferencias).
Graças às bolachas Oreo, nasce uma amizade entre um duende e um empregado de uma loja de conveniência que culmina numa viagem no trenó do Pai Natal.
O anúncio da Orange coloca o Pai Natal numa situação, no mínimo, embaraçosa. Graças às conexões electrónicas, um grupo de crianças, enfants terribles, sequestra o Pai Natal. A crise da imagem do Pai Natal começa a esboçar-se.
Os três anúncios seguintes convocam o “espírito” do Pai Natal, mas o protagonista é um ser humano disfarçado. No anúncio da Rema 1000, o “pai Natal” não consegue entrar na casa inteligente, submetendo-se a uma série de infortúnios. No anúncio da Bouygues, o pai, que imita ao telemóvel o Pai Natal, é surpreendido pela própria filha. No anúncio da NOS, uma rapariga acredita que uma determinada pessoa é o Pai Natal. Esta última acaba por se disfarçar de Pai Natal. Uma “predição criadora”.
A figura do Pai Natal na publicidade. Preâmbulo.

“Ontem, um anúncio com o ET, hoje, com o Ferrão. Será que o Pai Natal vai ter que rivalizar com os heróis infantis dos adultos?”
Hipótese: a figura do Pai Natal está a sofrer uma erosão ao nível da publicidade. Os anúncios apontam nesse sentido. De dois modos:
– Depreciação da figura do Pai Natal;
– Substituição da figura do Pai Natal por outros heróis do imaginário infantil: dragão, E.T., Ferrão, Guerra das Estrelas…
O anúncio J’ai Tant Rêvé, do Intermarché, indica, em 2017, a tendência: a imagem do Pai Natal precisa ser retocada. Tem defeitos. Está muito gordo, não cabe nas chaminés. As crianças submetem-no a uma dieta vegetariana. E resultou. O Pai Natal entrou pela chaminé e levou a alcachofra.
Os óculos do Pai Natal
Estamos na estação da generosidade. Começa lá para o Halloween e acaba com o S. Brás, senão com o Carnaval. Quanto o calendário se pautava pelos trabalhos agrícolas, este era, com escassas colheitas, um período de alguma miséria, logo de partilha. As sociedades camponesas quase desapareceram, mas continuamos a trocar prendas. O Pai Natal continua incansável a cruzar a noite com o seu trenó de renas. Mas acontece confundir-se para desconcerto das crianças e dos adultos. O Pai Natal não envelhece, mas está a perder a visão. Baralha os pedidos. Precisa de usar óculos. A Générale d’Optique oferece os óculos. A ele e a mais 25 000 pessoas. Mas o Pai Natal não tem óculos? Uma pesquisa relâmpago sugere que quando é uma pessoa, como no anúncio, costuma usar óculos. Sucede o contrário quando é um desenho. Não percebo.
Marca: Générale d’Optique. Título: Un Noël presque parfait. Agência: La Chose. Direcção: Hugues de la Brosse. França, Novembro de 2018.
Oração II
Reza-se de joelhos e de pé, de cabeça baixa ou erguida, de pé atrás ou à frente, de olhos fechados ou abertos, de cor ou de improviso, em silêncio ou não. Nem sequer é fácil saber quando se está ou não a rezar (Marcel Mauss, “La prière”, 1909). Nina Simone, Don’t Let me Be Misunderstood, ao vivo.
Nina Simone. Don’t Let Me Be Misunderstood. 1964. Live 1968.
Querido Pai Natal!
Carregar na imagem para aceder ao anúncio.
Marca: Auxmoney. Título: Poet. Agência: Aimaq von Lobenstein. Direcção: Park Ellerman. Alemanha, Dezembro 2015.
Querido Pai Natal!
Como consegues dar tantas prendas? No meu país, o dinheiro não chega para os bancos.
O anúncio é bonito, não é? Mas faz-me confusão. Um barco tão belo afundava-se neste país alagado!
E aquela corrente de pessoas de mãos abertas? Prontas a disponibilizar dinheiro. No meu país, os bancos estão dispostos a pedir. Mas, a fazer fé nos discursos das entidades competentes, os desmandos dos bancos não são problema, são apenas tabu. As autoridades desvalorizam o assunto. Deve ser isto a magistratura do silêncio seletivo. BNP? BPP? BES? Banif? Um ar que se varreu. Milhares de milhões de euros? Uma irrelevância. Como ensinou Deu-la-Deu Martins, o melhor é dar aos outros o pão que não temos.
Os diagnósticos são consensuais: os bancos não são problema. A autoridade máxima explicou. A autoridade máxima segunda, também. Tal como as autoridades máximas terceiras. Mais os peritos e os comentadores nacionais e internacionais. Acrescem os banqueiros. Ficam na memória os rostos do silêncio a desfilar de sobrolho franzido fora e dentro da televisão. Não há dúvida, pelo menos assim reza a cartilha, que a responsabilidade pela crise radica na função pública e nas famílias que vivem acima das suas possibilidades. Quanto ao resto, vai pagando que a procissão ainda vai no adro!
No caso do Banif, o “custo das operações” ultrapassará os 2 000 milhões de euros. Os cortes nos salários da função pública ascenderam, em 2014, a 1 700 milhões de euros. Não chega a tampa para a panela. Pelos vistos, 2 000 milhões de euros é uma quantia irrisória. Uma gorjeta de Estado. Segundo os timoneiros da nação, o que prejudica o país, o que dificulta o equilíbrio orçamental, são os médicos e os professores “a mais” na saúde e no ensino, sem esquecer outros excessos e desmazelos do género.
Existe uma nova autoridade máxima segunda. Talvez fosse corajoso e pedagógico comunicar quanto custou ao Estado, nos últimos quatro ou seis anos, o apoio aos bancos, o ninho dos “empresários heroicos”, sem esquecer o anexo com o montante dos empréstimos. Por estranho que pareça, são os funcionários e as famílias que vivem acima das suas possibilidades quem está a pagar esta soltura do Estado e do capital financeiro. Os contribuintes têm direito à informação, tanto mais que se compram ruínas, ou seja quase nada, a preços desproporcionados.
Querido Pai Natal! Consegue, por favor, algumas palavras válidas e lúcidas. E se te der jeito, no regresso, leva contigo os sábios que imputaram a crise às gorduras da função pública e às famílias imprudentes. Leva-os! Se calhar, dão boas renas. Voltando ao anúncio, convém ter alguma cautela: neste rectângulo, tamanha legião de gente com dinheiro pode lembrar aos carneiros uma nova tosquia.
Querido Pai Natal! Para o próximo ano, vou pedir que me ajudes a convencer as autoridades máximas a fazer o balanço dos custos e dos benefícios do acordo ortográfico. No que me diz respeito, escrevo mais devagar e dou mais erros.
Querido Pai Natal, gosto muito de ti! Gosto cada vez mais do que não existe…
Albertino Gonçalves
Moda, sexo e violência
Moda, sexo e violência. Depois da Benetton e da Agent Provocateur, a Coach. Nem o Pai Natal escapa. A moda não se coíbe de maltratar os símbolos. Não fosse a moda o “império do efémero” avesso à tradição, a modos como uma tradição de mudança (Gilles Lipovetsky).
Marca: Coach. Título: A Holiday Film by Coach. Agência: Droga5. Estados Unidos, Novembro 2015.