It’s the Music, Stupid!

Não se consegue a harmonia quando todos cantam a mesma nota (Doug Floyd).
O anúncio The best moments are those we spend together, do Palácio das Artes Müpa, em Budapeste, coaduna-se com a vocação musical da Hungria. Acrescento dois excertos do filme O Violinista do Diabo (2013), dedicado a Niccolò Paganini.
Ecos medievais

Escutamos e estimamos pouco a música medieval, pelo menos, não tanto quanto vale, na sua originalidade e diversidade em várias áreas:
- Ancoragem social: religiosa, trovadoresca, popular, mourisca…;
- Géneros: cantigas, motetos, missas, conductus…
- Cantos: gregoriano, cantochão, polifónico…
- Espaços: igrejas, castelos, praças, banquetes, tabernas…
- Eventos: festas, feiras, procissões, desfiles, bailes, banquetes…
- Instrumentos: rebecas, cítolas, harpas, vielas, saltérios, alaúdes…
- Danças: carolas; tripudium, estampidas, saltarelos, folias…

É verdade que, nos nossos dias, réplicas e sucedâneos nos interpelam, intermitentes, nos eventos e simulacros (e.g. as feiras medievais), no cinema (e.g. os filmes de fantasia) ou na música (e.g. o folk power metal, como os Blind Garden, ou os trovadores contemporâneos, como o Angelo Branduardi). Sublinhe-se que a música medieval é precursora e inspiradora de muitas composições dos séculos seguintes. Atente-se, por exemplo, nas Cantigas de Santa Maria, do século XIII, da corte de Afonso X, escritas em galego-português.
A minha ignorância da música medieval é avassaladora. Felizmente, tem-se manifestado notável o estudo e a recuperação do legado medieval. A ignorância comporta uma virtude para quem prefere descobrir a confirmar: proporciona mais hipóteses de encontrar, com espanto e prazer, por acaso ou pesquisa, novidades, sejam contextos ou obras. Seguem cinco exemplos:
Outras músicas

Música na corte de Alfonso X.
Temos, hoje, acesso a uma infinita diversidade de músicas. Multiplicam-se as fontes, os instrumentos e os géneros, ora mais distantes, ora mais distintos. Apraz-nos contrapor, por exemplo, uma música eletrónica japonesa (1978: no auge dos Kraftwerk) e uma canção medieval em galego português (Alfonso X, o Sábio, século XIII). Como seria a música eletrónica dos Yellow Magic Orchestra interpretada com instrumentos antigos? Os ouvidos adaptam-se numa acústica imaginária. E as imagens? Não é maior a sua infinita diversidade? As imagens são tantas que se tapam umas às outras. Às vezes, a aproximação de duas realidades desvaloriza-as. Será o caso destas músicas? Dialogam? O que é humano dialoga.
Clemencic Consort. Cantiga 166 (Como Poden). Cantigas de Santa Maria. Alfonso X, o Sábio. Clemencic Consort, Les Cantigas de Santa Maria Vol.2. 1976.
Yellow Magic Orchestra. Computer Game (Theme from the invader), Yellow Magic Orchestra. 1978.
Deserdados do futuro

Reservei a música medieval Polorum Regina para cartão de boas festas. Mas não consigo guardar nada para o futuro. Colide com a minha identidade: não deixes para amanhã o que podes fazer hoje. Sou uma aberração. Se não consigo guardar o futuro, tão pouco acerto no presente. As datas baralham-se. O meu calendário é de borracha: estica, encolhe e dobra. Polícrono (Edward T. Hall), não me dou com a agenda. Nunca usei. O que me prega partidas. Um dia, vou de Braga a Melgaço para a inauguração do Espaço Memória e Fronteira. Encontrei apenas alguns trabalhadores. A inauguração era na semana seguinte. Noutra ocasião, fui à inauguração de uma exposição na Casa Museu de Monção. À porta, apenas o funcionário: Então Senhor Professor o que o traz por cá? Era, também, na semana seguinte. Já aconteceu preparar-me para dar aula num feriado. Isto é o pão nosso de cada dia, mas continuo sem agenda e pouca memória. Não tem piada, mas é o meu lado Peter Pan, “a criança que nunca cresceu”. Acabei uns textos para o livro que, se não acelero, vai ser póstumo. Insiste em não se fazer sozinho. A publicação desses textos é uma tentação. Aposto que sairão um dia, antes da hora, nem que seja numa rotunda.

A música Polorum Regina integra uma compilação de canções, o Llibre Vermell, do final do séc. XIV, guardada no Mosteiro de Monserrat, perto de Barcelona. É com respeito e admiração que imagino os peregrinos a cantar a Nossa Senhora: “Antes do parto, virgem fecundada por Deus, sempre permaneceste inviolada, estrela matutina absolve-nos”. Gente rude que não teve o privilégio de conhecer a civilização e a racionalização do Ocidente, nem a modernidade, a pós-modernidade, a hipermodernidade, a sobremodernidade, a modernidade tardia, a globalização, o pós-colonialismo, a sociedade de massas, a sociedade de consumo e a sociedade digital. Com a aceleração, depressa seremos pós-virtuais. E, no entanto, “os deserdados do futuro” mostram-se estranha e magistralmente humanos. Encaro-os com consideração e ternura. Deixo a ironia e o cinismo para os meus conterrâneos estacionados à porta do amanhã. Resquícios meus de um romantismo retrógrado.
Existem muitas interpretações da canção Polorum Regina. Algumas lembram mais um concerto do que uma canção de peregrinos. Outras são cantadas por uma única voz; atrevo-me imaginar os peregrinos a cantar em coro. Optei pela interpretação do Ensemble Obsidienne.
O papa-moscas

Na areia, o sol queimou os fusíveis e desactivou a censura. Mau presságio.
Quando a imaginação ultrapassa, pela realidade, o imaginável, arriscamos colher frutos inesperados tais como o anúncio The fly, da Mio Digiwalker: um disgusto ao jeito dos gracejos da Idade Média, propensos ao humor grotesco e escatológico . As três iluminuras inseridas no artigo testemunham esta inclinação.

Figura 1. O protagonista (um monge?) apresenta-se numa postura despudorada. Parece esperar, porventura, uma mosca.
Figura 2. O músico toca dois instrumentos de sopro ao mesmo tempo. Por cima e por baixo. Lembra a polémica introdução da música polifónica durante a Idade Média.
Figura 3. O corpo humano é percorrido por túneis: o digestivo e, segundo o adágio popular, o auditivo. Num túnel pode-se entrar pelos dois lados, bem como sair.

À lei de conservação da matéria de Lavoisier (1743-1794), “na natureza nada se cria, nada se perde, tudo se transforma”, convém acrescentar o princípio da dinâmica do realismo grotesco: nada está parado, tudo se move.
O rei vai nu!

Fig 1. Efígies dos cadáveres do rei Luís XII (1498-1515) e da rainha Ana de Bretanha (1477-1514). Escultura da autoria de Jean Juste (1485-1549)
Vira o ano, toca o mesmo! Iniciei em Outubro um artigo aprazado para o Dia dos Mortos. Ainda não acabei. À medida que o vou cinzelando sobram algumas arestas como é o caso desta escultura mortuária de Jean Juste (1485-1549) com as efígies do rei Luís XII e da rainha Ana de Bretanha. São raros os túmulos em que os corpos de membros da nobreza ou do alto clero se mostram nus. Desvelam a humildade e o despojamento da morte após uma vida de excessos. A nudez íntima do morto (Figura 1) e a opulência pública da vida (Figura 2) num túmulo tão contraditório quanto o destino humano.
Creio não ter colocado nenhuma música dos King Crimson. Chegou o momento. Acrescento a música e a letra da canção Epitaph, do álbum In the court of the Crimson King (1969), numa versão quase só vocal. Reconsiderei: acrescento também a versão instrumentada do álbum de 1969.

Túmulo de Luís XX (1408-1515) e Ana de Bretanha (1477-12514). Basílica de Saint-Denis, Ville de Saint-Denis. Esculpido por Jean Juste (1485-1549)
King Crimson. Epitaph. Álbum In the court of the Crimson King (1969). Quase vocal.
King Crimson. Epitaph. Álbum In the court of the Crimson King (1969).
Epitaph
The wall on which the prophets wrote
Is cracking at the seams.
Upon the instruments of death
The sunlight brightly gleams.
When every man is torn apart
With nightmares and with dreams,
Will no one lay the laurel wreath
When silence drowns the screams.
Confusion will be my epitaph.
As I crawl a cracked and broken path
If we make it we can all sit back and laugh.
But I fear tomorrow I’ll be crying,
Yes I fear tomorrow I’ll be crying.
Yes I fear tomorrow I’ll be crying
Between the iron gates of fate
The seeds of time were sown
And watered by the deeds of those
Who know and who are known.
Knowledge is a deadly friend
If no one sets the rules.
The fate of all mankind I see
Is in the hands of fools.
The wall on which the prophets wrote
Is cracking at the seams.
Upon the instruments of death
The sunlight brightly gleams.
When every man is torn apart
With nightmares and with dreams,
Will no one lay the laurel wreath
When silence drowns the screams.
Confusion will be my epitaph.
As I crawl a cracked and broken path
If we make it we can all sit back and laugh.
But I fear tomorrow I’ll be crying,
Yes I fear tomorrow I’ll be crying.
Yes I fear tomorrow I’ll be crying
Crying..
Crying…
Yes I fear tomorrow I’ll be crying
Yes I fear tomorrow I’ll be crying
Yes I fear tomorrow I’ll be crying
Crying…
Pintar o campesinato: o Luttrell Psalter
À São.

Luttrell Psalter
Faço parte duma equipa do CECS (Centro de Estudos Comunicação e Sociedade) que está a investigar a Festa da Bugiada, de Sobrado. Uma das componentes da festa contempla várias “danças” e representações relativas à “vida no campo”. Alguns traços parecem ser muito antigos. Demandei, assim, músicas, danças, imagens e relatos medievais.
O Luttrell Psalter (cerca de 1325-1335), encomendado por Sir Geoffrey Luttrell, sobressai entre os livros iluminados medievais pela criatividade e pela originalidade. Ao longo das 309 páginas em pergaminho, sucedem-se imagens sagradas, monstros híbridos e cenas da vida quotidiana, sobretudo, agrícola.
Fiz, há algum tempo, uma apresentação com uma selecção de páginas do Luttrell Psalter. Foi difícil encontrá-las e combiná-las em forma de livro. Para fazer download (13,4Mb) da apresentação (imagem e música), carregar no seguinte endereço:
Acrescento uma galeria de imagens do Luttrell Psalter dedicadas à vida campestre.
A morte à flor da pele
“[Os jovens que fazem piercings e tatuagens] procuram “autonomizar-se” do olhar dos pais. Têm o sentimento de não ser eles próprios, mas uma espécie de bem que pertence aos pais. Daqui esta frase repetida inúmeras vezes: “Eu reapropriei-me do meu corpo”, como se o corpo lhes tivesse sido roubado a um ou outro momento. Ao nível simbólico, o facto de fazer uma tatuagem ou um piercing é uma maneira, para o jovem, de assinar o seu corpo, uma maneira de dizer que é só dele” (David Le Breton, “Les jeunes prennent leur autonomie par le piercing”, jornal Le Monde, 25 de Março de 2004).
Há três fenómenos culturais que vieram ao arrepio das minhas expectativas teóricas. As tatuagens, os piercings e a moda da barba apanharam-me desprevenido. Centram-se no corpo: marcam-no e demarcam-no, mas não para o polir ou isolar. Configuram “sinais de identidade”, introduzindo uma nova modalidade de semiose social.
Seleccionei cinco tatuagens, góticas, alusivas à morte. As duas primeiras copiam, literalmente, as danças macabras do séc. XV.
A terceira, lembra, no traço, A Noiva-cadáver de Tim Burton e, na postura, o Zé Povinho de Rafael Bordalo Pinheiro.
Na quarta, a caveira aparece tatuada na parte do corpo mais apropriada: a cabeça.
A quinta tatuagem apresenta um espelho da morte, tema recorrente nas imagens medievais e barrocas (Michel Vovelle, “A História dos homens no espelho da morte”, in Herman Braet & Wermer Verbeke (eds), A Morte na Idade Média, S. Paulo, Edusp, 1996, pp. 11-26). O corpo assume-se como suporte do espelho da morte.
Por último, depois do espelho da morte, termino com a vanitas nos lábios de uma tatuagem. Original. Uma versão contemporânea do beijo da morte?
Um fim-de-semana bem preenchido. Gosto de jogar ténis de mesa com os meus rapazes. São os únicos que me aturam. Gosto, também, de jogar pingue-pongue com a história. Em momentos de lazer, é um prazer visitar a história como quem descasca castanhas. É um desporto que não emagrece. Dá a ver o presente sob outra luz: muita ganga e pouco minério.
Abraços
Esgotam-se as fontes de carinho. De tanto correr, secam. Convertem-se em cruzes. Um gesto, um olhar, uma palavra… Um abraço. Como são imateriais os abraços da saudade! Solos de alaúde sem cordas… Na Idade Média também conheciam o prazer do abraço. Tanto corpo contra tanto corpo! Seguem um solo de alaúde com cordas e três abraços medievais. Um lembra o Beijo de Klimt. Todos davam belos postais ilustrados.
- Codex Manesse Herr Conrad von Altestetten. C. 1340.
- Master of Guillebert de Mets. Decoração marginal. 1425
- Giacomo Jaquerio (c. 1375-1453). A Fonte da Vida (detalhe).
O Natal de São José
É véspera de Natal. Apetece-me celebrar São José. Em muitas iluminuras medievais aparece afastado de Maria e do Menino, à margem, encolhido, fatigado, quase alheado. Mais espectador do que actor, ao contrário de Maria e dos reis magos, São José não tem direito a coroa nem, por vezes, a auréola. Desde o episódio da vara florida até ao nascimento de Jesus, tamanha passividade comove-me.
Para além destas duas iluminuras, dos séculos XIV e XV, acrescento um anúncio português, História do Natal Digital, produzido em Dezembro de 2010 pela agência Excentric, de Lisboa.
Votos de um feliz Natal e de um ano novo atento aos vossos méritos e desejos.